O cristianismo em Espanha não só
pretende que o seu sistema de valores morais prevaleça, senão que pretende que
seja o único sistema de valores vigorante na sociedade, pretensão a todas as luzes
inadmissível se temos em conta que qualquer religião não deixa de ser uma
associação particular, que, numa sociedade pluralista, nunca pode representar
ao conjunto social. Por outra parte, quando alguém pretende acaparar a direção
dos valores que devem servir de guia numa comunidade, o primeiro que deve ter
presente é que os cidadãos vão ajuizar estas pretensões de acordo com o seu
passado. Neste sentido, considero que fica desqualificada uma associação que:
a) impôs a partir do seu reconhecimento oficial
polo império romano no século IV o maior sistema repressivo que conhecem os
séculos, eliminando fisicamente a todos os desviantes, fossem cristãos
desviantes, pagãos, judeus, maniqueus, etc.
b) desde finais do século XI, se lançou
a uma luta de conquista sob pretexto de recuperar os santos lugares,
provocando não menos de cinco milhões de
pessoas mortas;
c) destruiu qualquer pluralidade
cultural e só manteve em pé uma cultura de caráter religioso de índole cristã «ortodoxa» tamisada por clérigos muitas vezes fanáticos
e intransigentes.
d) Impôs um sistema inquisitorial para
apagar qualquer vestígio de dissentimento da linha oficial «católica», causando um número
de mortos que, no caso de Espanha, o ex secretario espanhol da Inquisição, Juan Antonio Llorente (1756-1823),
cifra em 32.000 queimados vivos e 300.000 ajuizados e obrigados a fazer
penitência.
e) obstaculiza a formação livre das
pessoas colocando no Índice de Livros Proibidos a milhares de livros que não
aceitavam o dogma «católico».
f) acompanhou e bendisse a conquista
espanhola de América que custou mais de 46 milhões de pessoas, e submeteu a
escravidão a todo aquele que não aceitasse a doutrina católica.
g) considerava que tinha poder do
Altíssimo para submeter aos povos a escravidão, poder que transmitia aos
governantes ao seu bel prazer.
h) Impôs o monolitismo ideológico na
saciedade espanhola por meio da limpeza de sangue para eliminar qualquer
concorrência com judeus, muçulmanos e protestantes na sua vocação por
consolidar o discurso único. Isto levou-o a revisar o historial dos suspeitosos
e a condenar ao ostracismo social a quem não fosse capaz de demonstrar que não
estava manchado com sangue de judeus, muçulmanos ou protestantes,
constituindo-se assim no predecessor do nazismo.
Ë certo que também os cristãos
sofreram perseguições nos primeiros séculos, ainda que não por motivos
religiosos senão políticos. A ninguém se lhe molestava por ter um deus próprio,
senão por não dar culto ao Imperador enquanto sustentador da ordem
sócio-política e por não defender o império participando nas forças armadas, ao
que se negavam os cristãos. Mas, não entra no nosso tema dilucidar se o código
moral dos romanos serve de base para reger a sociedade atual.
A ética é uma avaliação dos atos
humanos enquanto bons ou maus, corretos ou incorretos de acordo com um sistema
de valores vigente numa determinada comunidade, e uma proposta de penalizações
e prêmios para os que desviam ou se conformam ou realizam ações exemplares
desde o ponto de vista social. Todo ato humano, para que seja, moral, e,
portanto, responsável e merecedor de prêmio ou castigo, tem que ser:
a) pessoal, ou seja, um ato proveniente
do próprio sujeito, pois em caso contrário não pode ser credor de mérito ou
demérito. Um ato que um ser humano faz possuído e impelido por algum ser divino
ou diabólico não pode ser credor de mérito nem demérito. Isto implica que um
suposto pecado original ou qualquer outro somente poderia imputar-se aos que o
cometeram e nunca aos seus descendentes. Por outra parte, a transmissão dum
suposto pecado original é impossível porque nenhum ato físico e muito menos um
ato moral, como o pecado, se podem transmitir por geração. Somente se pode
transmitir um traço fisiológico de pais a filhos se se produz um câmbio no ADN,
no código genético, mas a malícia dum ato, que é um ato moral, não se pode
transmitir de pais a filhos.
b) responsável, e para ser responsável
tem que ser pessoal, livre e consciente, e, portanto, as gerações futuras não
devem carregar com as culpas dos seus ancestrais, porque, não puderam
participar em nenhum ato pessoal, livre e consciente antes de nascer. Segundo o
cristianismo, depois do pecado original o ser humano perdeu a liberdade e só
lhe fica o livre alvedrio, ou seja, que, de por si é incapaz de realizar nenhum
ato merecedor de mérito algum perante Deus se este não lhe dá as graças
necessárias, mas fica com a liberdade total para pecar. Segundo o cristianismo,
todo ato humano para que seja meritório tem que ser produzido pola graça divina
que obra em quem Deus quer sem ter em conta o seu esforço, pois a graça é
totalmente libérrima e gratuita e não depende das nossas boas obras nem do
nosso esforço, pois Deus opera em nós sem nós e dá-lhe as graças a quem ele
decida, independentemente dos méritos próprios. A concessão da graça divina é
totalmente arbitrária e depende só do seu bel prazer, tese própria dum sistema
despótico no que o chefe não tem que dar razão alguma do seu proceder aos seus
súbditos nem submeter-se a nenhuma norma. Pergunta-se Agostinho: quem somos nós
para pedir-lhe contas a Deus? Esta doutrina da graça, proveniente de Agostinho
de Hipona, destrui a ética, porque se um ato não provém do sujeito que atua e
se é incapaz de mérito ou demérito polas suas ações, a bondade só pode ser
atribuída a Deus e não ao ser humano.
Não só o ato tem que provir do
sujeito, senão que também toda ética que se preze tem que estabelecer um
sistema de prêmios e castigos razoáveis e proporcionados. Não pode ser que a
uma pessoa por roubar uma galinha, lhe cortem as mãos. Pois bem, os castigos no
cristianismo são totalmente desproporcionados como se constata por:
a) O castigo sofrido por toda a
humanidade por um pecado supostamente cometido polos supostos pais da
humanidade Adão e Eva, que a teoria evolucionista falsou totalmente, por ter
desobedecido o preceito de não comer as maças duma determinada árvore. Um
castigo semelhante é impróprio de qualquer ser que se chame Deus, pois
superaria sadismo a todos os castigos que os seres mais malvados puderam ter imposto
alguma vez, porque castiga a todas as gerações futuras por atos cometidos pola
suposta primeira parelha humana. É um castigo que excede qualquer
proporcionalidade, porque simplesmente por desobedecer o preceito duma prova trampa
de que não comessem uma maçã, são castigados com uma pena severíssima, que
afeta tanto aos dous membros da parelha e a todos os seus descendentes ainda
não nascidos.
b) Também é inumano e ímpio atribuir a
Deus os castigos além túmulo por pecados pessoais, e somente na mente de pessoas
sádicas e perversas se pode pensar que Deus inflige penas eternas polo fogo,
como as do inferno, porque são impossíveis fisiologicamente. Um ser humano
submetido a tais penas, de seguida se converte em cinzas, e, para que isto não
acontecesse, Deus teria que mantê-lo milagrosamente com vida para poder
castigá-lo. Esta é uma tática clerical para manter amedrontada a população e se
submeta de bom grau às suas consignas.
c) As torturas e cremação de pessoas
vivas na fogueiras por discrepâncias ideológicas e com a finalidade de semear o
terror na população. Os juízos a que se submetia os acusados eram uma pura
farsa, estavam baseados no secretismo dos acusadores para fomentar a delação,
na confissão baixo tortura dos acusados, e careciam das mínimas garantias de imparcialidade
e objetividade.
Toda ética deve partir duns
princípios claros e coerentes a partir dos quais se deduza todas as demais
proposições. Uma ética que parte de princípios contraditórios, só pode dar
lugar a um amassilho de proposições incoerentes e contraditórias. E isto é o
que sucede na ética cristã que umas vezes acode a:
a) Princípios naturais, como quando alega
que o incesto ou a homossexualidade não se pode aceitar porque vai contra as
leis da natureza e produz repulsão em quem os praticam. Sabemos que muitos reis
antigos cassavam com as suas irmãs, e a endogamia era de terceiro grão era
comum nas casas reais europeias, mas deixando o incesto de lado, porque é mais
problemático, a homossexualidade é uma prática comum em praticamente todos os
animais, tanto os que vivem em cativeiro como em liberdade. Portanto, não se
pode condenar recorrendo à natureza, salvo que digamos que os animais não
seguem as leis da natureza. A justificação a partir das leis da natureza tem
também o inconveniente de que constitui um razoamento lógico inválido porque
deduz proposições valorativas a partir de factos naturais, incorrendo na
falácia naturalista. É um razoamento incorreto porque a natureza nunca pode ser
fonte de valores; de premissas que constam de proposiç4oes fáticas nunca se
podem inferir conclusões valorativas; dum «é», nunca se pode concluir um «deve». Aliás, a partir de premissas fundamentadas
na natureza humana, que se conhece com o nome de jusnaturalismo ético, podem-se
inferir conclusões contraditórias entre si. Assim, os defensores da propriedade
privada foi considerada pola maioria dos pensadores jusnaturalistas como de direito
natural, mas os defensores do comunismo também se apoiaram nele para defender a
sua abolição.
b) Princípios sobrenaturais
provenientes da chamada revelação a partir de livros supostamente inspirados
por Deus. Somente acudindo a princípios desta classe se pode suster que o
celibato ou a virgindade são superiores ao matrimônio, pois isto somente se
pode dizer que é assim porque o diz o homófobo apóstolo Paulo. Somente mediante
princípios desta índole se pode justificar o sacrifício de Abraão, de
sacrificar ao seu filho Isaac. Estes princípios que chamamos sobrenaturais
muitas vezes colidem entre si, e assim se bem no Gênesis e em Ex. 20.5, se
condena aos primeiros pais e a todos os seus descendentes, polo menos é assim
como o interpretou o cristianismo, noutras partes, como em Ez. 18.20 afirma-se que os filhos não devem pagar polos pecados dos
seus pais. No Antigo Testamento fomenta-se a natalidade como uma benção divina,
mas Jesus recomendou a castração polo reino dos céus (Mt. 19, 12).
Pretender fundamentar a ética em
textos supostamente sagrados de faz quatro mil anos teve como consequência o
seu ancilosamento, o seu esclerosamento e a sua incapacidade para dar resposta
aos problemas éticos do mundo de hoje, como é o caso da homossexualidade, libertação
da mulher da sua situação de inferioridade a respeito do varão, práticas de
controle da natalidade, da ética animal que na maioria dos casos é
ridicularizada por docentes eclesiásticos, etc. Desde uma ética cristã não se
pode tampouco dar resposta aos problemas ecológicos, nem nunca a igreja fez
nada para resolvê-los, e isto é um falho importante. A Bíblia diz que Deus lhe
deu poder ao homem para fazer e desfazer a respeito da vida dos demais seres
vivos, ao tempo que condenou como idolátrico o culto à natureza, apesar de que
a considera como uma obra divina. As religiões ficam centradas em seres divinos
e desprezam este mundo, considerado como um vale de bágoas, e a mesma vida
humana. O cristianismo tampouco dá resposta à convivência numa sociedade democrática
e sempre esteve muito cômoda com sistemas ditatoriais e repressivos, como foi o
caso da Espanha de Franco, levado baixo pálio, do Chile de Pinochet,... sempre
fosse beneficiado com as receitas do Estado.
O apoio em princípios
sobrenaturais tem também como consequência que, como as preocupações de épocas
históricas em que se redigiram os livros sagrados são muito distantes e distintas
às atuais, agora as preocupações da ética cristã reduzem-se praticamente a
temas relacionados com o sexo, e uns clérigos, eunucos espirituais, polo menos
em teoria, misóginos e misossexuais, salvo minorias, lecionam tanto a pessoas
que se iniciam nele como aos já experimentados. Muitas vezes, obedecendo
precisamente as leis da natureza humana pulsional, quebrantam a absurda norma
celibatária que condena qualquer satisfação regrada das pulsões sexuais
humanas, e aproveitam para praticas esporádicas de sexo, para violentar as
monjas, frequentar os serviços dos bordéis, escapar-lhe com a mulher dos seus próprios
fregueses ou para abusar dos mais novos. Os problemas de sexo tampouco se solucionam
com a repressão, com a finalidade de manter uma dotação de trabalhadores totalmente
entregados e baratos, senão com o reconhecimento do direito dos clérigos a ter
uma vida sexual ordenada e formar uma família, se o desejam. Isto provoca que a
oposição visceral da hierarquia contra a ideologia de gênero se veja
desacreditada. Contudo, há que fazer constar também a conduta íntegra e
comprometida com o seu ideal de grande parte dos clérigos, ainda neste contexto.
Finalmente, se a ética é uma
avaliação dos atos humanos enquanto bons ou maus, e se toda avaliação é um
produto humano, incluída a Bíblia, a
única ética admissível é uma ética cívica, dialógica, uma ética que seja
expressão das aspirações e necessidades humanas da grande maioria dos membros da
sociedade e dos diversos grupos sociais, também dos praticantes religiosos, mas
uma ética cívica não aceita que um grupo, por muito numeroso e poderoso que
seja, goze de privilégios a eito e pretenda impor-se sobre todos os demais.