26 mar 2017

Verdade e certeza

            As noções de verdade e certeza são mui distintas como imos pôr de manifesto. Uma cousa pode ser certa, mas ser falsa e/ou verdadeira e duvidosa e incerta. A certeza é o estado da mente a respeito duma proposição, enquanto que a verdade é a conformidade duma proposição com a realidade. Quando temos uma confiança total a respeito da verdade ou falsidade duma proposição dizemos que temos certeza acerca do contido dessa proposição. Se uma proposição expressa adequadamente o que é a realidade, dizemos que a proposição é verdadeira e se não a reflete corretamente dizemos que é falsa. Por exemplo, a proposição: «os corpos estão constituídos por átomos», segundo a física atual é uma proposição verdadeira, mas se lhe perguntássemos a um filósofo medieval diria que é uma proposição falsa, e que a verdadeira é que «os corpos estão constituídos polos quatro elementos». O constitutivo dos corpos não cambiou com o tempo, mas o que mudou é o estado mental a respeito da proposição. A realidade não é verdadeira nem falsa, senão que a verdade ou falsidade é uma propriedade duma proposição. A realidade nunca foi, é ou será verdadeira ou falsa, mas si o são os juízos dos seres pensantes a respeito dela.

            A certeza pode ser lógica, física, moral e histórica. A certeza lógica baseia-se na coerência do discurso e em proposições analítica. Por exemplo: «Uma pessoa solteira é uma pessoa não casada». O sujeito da proposição «Uma pessoa solteira» já significa «pessoa não casada», e, por tanto, com o predicado somente explicamos o sujeito, mas sem acrescentar-lhe nada. Afirmar o contrário duma proposição analítica implica não só uma falsidade, que também, mas uma contradição. Por exemplo: «Uma pessoa solteira é uma pessoa casada», «Duas mais duas somam cinco. A certeza física baseia-se nas leis da natureza. Por exemplo: «Os corpos são atirados para abaixo pola gravitação». O contrário duma proposição baseada nas leis da natureza é falso, mas não contraditório. Por exemplo: «O sol rota arredor da terra». A certeza moral baseia-se nas leis psicológicas humanas: «A mãe A quere os seus filhos». No 99,9 % dos casos assim é, mas de vez em quanto topamo-nos com supressas. A certeza histórica é uma certeza baseada no testemunho, e, igual que a moral e, em menor medida, segundo a mecânica quântica, a física, equivale somente a uma grande probabilidade. Alguns dizem que este testemunho pode ser humano ou divino, segundo proceda do que nos diz outro home ou do que diz uma divindade. Eu considero que somente existe o testemunho humano e que o que se chama testemunho divino não consiste noutra cousa que em atribuir a Deus o que dizem algumas pessoas humanas.

            A certeza e a verdade estão relacionadas entre si num sentido, que é que nós temos por certo o que consideramos que é verdadeiro, mas por vezes damo-nos conta que uma proposição que creiamos que era verdadeira resultou ser falsa, como por exemplo: «A terra está imóvel no centro do universo». 

               Praticamente todo o que sabemos da religião, filosofia e ciência é produto do testemunho doutras pessoas, e dependendo da confiança que nos mereça esse testemunho consideraremos que as proposições que nos transmitem merecem mais ou menos credibilidade e dão-nos, por tanto, uma maior ou menor certeza. Tanto as religiões como a filosofia e a ciência são criaturas humanas, mas, com a finalidade de reforçar a credibilidade da sua mensagem alguns filósofos, como é o caso de Parmênides de Eleia, e praticamente todas as religiões costumaram apresentar o seu discurso como uma revelação duma divindade com objeto de reforçar a sua credibilidade ante os seus destinatários, complementando-a muitas vezes com mecanismos intimidatórios, como ser sepultado no inferno para ser queimado eternamente em enxofre fervendo, e com incentivos para os bons aderentes, como gozar com Deus no paraíso. Platão defendeu a imortalidade da alma como um mecanismo de controlo social com objeto de dissuadir os que se portam mal e incentivar os que se portam bem com um castigo eterno no Tártaros fervente ou uma vida ditosa nas Ilhas Afortunadas, e manifestou que devemos repetir essa ideia como um encantamento para terminar crendo nela, porque o prêmio que nos espera é magnífico e o castigo aterrador. Epicuro justificava que não devemos ter medo á morte da seguinte maneira: “Assim que o mais espantoso dos males, a morte, nada é para nós, posto que enquanto nós somos, a morte não está presente, e, quando a morta se apresenta, então não existimos. Com que não afeta aos vivos nem aos mortos, porque para aqueles não existe e os outros não existem já" (Carta a Meneceo, 92). Assim que não se consola quem não quer porque encantamentos não faltam.
Apresentar uma mensagem como de procedência divina tem as suas consequências, umas positivas e outras negativas. Entre as positivas estão que os seus aderentes sabem mui bem a que ater-se e que conduta se espera deles em todo momento. Além disso, ter todos os problemas solucionados de antemão com a condição de que rezes umas jaculatórias, lhe contes as cuitas a um clérigo, e de vez em quando pratiques a caridade cristã contribuindo a sanear a sua economia é uma solução muito barata, inclusive para os maiores criminais. Além disso, a morte sempre suscita interrogantes e produz a correspondente angústia, que as religiões contribuem a solucionar oferecendo um futuro idílico no mundo de ultra-tomba. Com todo, Nietzsche pensava que os filósofos não estão para propor consolos artificiais: "As nossas premissas são: nenhum Deus; nenhum fim, força final. ¡queremos guardar-nos de excogitar e prescrever aos humildes o modo de pensar que lhes é necessário!". (A vontade de poder, liv. 3º, I, 592). Uma cousa é desde logo oferecer um discurso racional e outra propor consolações frente á angústia, que, por outra parte, são muito distintas nas diferentes religiões e filosofias. 

Entre as consequências negativas citamos as seguintes: que essa mensagem se vai considerar como atemporal como é atemporal a mesma divindade e qualquer ética fundamentada nelas vai ser uma ética absolutista, no sentido de que o que Deus diz não se pode cambiar no decurso do tempo ainda que mudem as circunstâncias. Resulta-me chocante que um teólogo me tenha dito faz pouco tempo que a ética cristã não é uma ética absolutista porque já se encarregam na Cúria de buscar-lhe as voltas para acomodá-la aos tempos, porque qualquer acomodação tem que respeitar o sentido dos textos sagrados ou considerá-los, como eu defendo, como livros históricos como os demais. Disto deriva-se que os custódios desta mensagem vão ter muitas dificuldades para acomodá-la ás novas circunstâncias sociopolíticas, políticas e científicas, como vemos que sucede com os temas referidos á homossexualidade e transexualidade. Lembrando o velho Heráclito e a Nietzsche temos que dizer que a realidade muda sem cessar, e qualquer discurso deveria mudar com as circunstâncias cambiantes. Quiçá este seja o maior problema que tem as religiões, que sempre andam na procura dum aggiornamento que não chega nunca. Lembremo-nos que essa era já a finalidade principal do concílio Vaticano II. A filosofia e a ciência ou estão ao dia ou perdem o seu caráter de tais. Uma filosofia para ser filosofia tem que responder aos retos que se apresentam hic e nunc, aqui e agora, ou, em caso contrário converte-se numa repetição de filosofias que sim puderam ter sido autênticas no momento em que se desenvolveram mas que hoje não são. Isto é o que explica que na Galiza a filosofia merecedora deste nome no século XX não foi a que desenvolveu Amor Ruibal, por mui inteligente que for, senão autores como Vicente Risco, Vicente Viqueira, Losada Diéguez e Castelao. A única filosofia que se considera perene é a tomista, a filosofia hoje menos autêntica, mas que o cristianismo utiliza para veicular o seus dogmas, e que no fundo, não é outra cousa que teologia disfarçada. 

A respeito da verdade, temos que reconhecer que o imaginário mental cristão e parte dos seus dogmas foram falsados polos factos, tal como temos demonstrado no livro O cristianismo contra a ciência. e como ratificaremos noutro de próxima aparição. Uma proposição como «A Bíblica foi inspirada por Deus» ou «O Romano Pontífice é infalível», não se podem suster por mais tempo, e isso implica que esta religião tem que reformular a sua mensagem reconhecendo que os Livros Sagrados são livros históricos, merecedores de todo respeito e consideração, mas nunca livros inspirados por nenhuma divindade. Isto implica reconhecer, e creio que é uma verdade palmaria, que não há outro modo de conhecimento que o que nos subministra a razão, e que, portanto, não tem sentido pretender conciliar a razão com a fé, porque esta não é nenhum modo de conhecer, senão uma adesão cega a dogmas incompreensíveis e a confiança numa suposta revelação que não existe. O que se chama revelação não é outra cousa que um conhecimento arcaico e mítico que alguns querem vender como o conhecimento real e verdadeiro.

Para fazer mais aceitável alguns dogmas utilizaram-se vários métodos. Um foi a manipulação e deturpação do sentido dos textos bíblicos para que dissessem o que alguns querem que digam. Cumpre ter presente que alguns dos dogmas cristãos baseiam-se em textos claramente deturpados, como é o texto “em quem todos pecamos” que se utiliza para justificar o pecado original e a primazia da fé sobre a razão: “Se não crerdes não entendereis”. Outro foi o uso do sentido alegórico, que lhe faz dizer aos textos o que cada autor quer que digam, sentido abandonado a partir de Lutero, e, por isso, não deixou de surpreender-me que um leitor do livro O cristianismo contra a ciência, manifestasse que botava em falta que não falasse do sentido alegórico. A minha resposta foi que se pretendeu que fosse um livro sério e rigoroso.

Tem um efeito pernicioso manter a duplicidade de modos de conhecer porque produz esquizofrenia no ensino das nossas crianças, e, á longa, um desprestígio da própria religião. No catecismo oferecesse ao menino uma visão pueril e imaginativa do surgimento do mundo, e mais tarde, já no ensino meio e superior um ensino científico que pouco tem que ver com aquele. Este ensino primário é muito difícil de desarraigar, como no-lo testemunha Francisco Ayala com o que lhe acontece a ele em Estados Unidos, em que os estudantes lhe dizem que dirão o que ele quer, mas que não crêem na explicação científica. 

O cristianismo, como todas as religiões, oferece certezas para quem crê na sua mensagem, porque a certeza é um estado subjetivo da mente, mas não temos que esquecer que, em Europa, a terceira parte dos habitantes se declara ateia, percentagem que está a se incrementar progressivamente, e que muitos dos que se declaram crentes têm muitas dúvidas sobre muitos aspetos da sua fé. Tem verdades o cristianismo? Os que crêem nele dirão que sim, enquanto que outros o negarão. Se lhe fazemos caso a Nietzsche a resposta não teria dúvida. "«A religião não conteve nunca, nem mediata nem imediatamente, nem em dogmas nem em parábolas, uma só verdade». Pois todas elas nasceram do medo e da necessidade e fundaram a sua existência sobre os erros da razão;" (Humano, Demasiado humano, 3ª parte, nº. 110. Também nºs. 111 e 112. Eu gostaria, antes de pronunciar-me ao respeito, que alguém manifestar quais são as verdades mais salientáveis que são patrimônio desta religião e após realizar uma análise das mesmas.

Nas ciências formais, lógica e matemáticas, praticamente todas as proposições são verdadeiras, mas isso à custa de não dizer nada sobre a realidade, ou seja, são proposições vazias de contido. Em astronomia, além doutros, creio que é um logro o heliocentrismo; em química também parecem proposições definitivas as relativas á composições dos corpos em elementos mais simples, polo menos até o nível dos prótons e nêutrons. Mais problemático é o referido ás teorias científicas, pois sempre pode surgir uma nova que invalide as anteriores. O cometido de qualquer científico ou filósofo é precisamente procurar falsar as teorias anteriores para buscar uma mais acertada e/ou simples e englobante. A filosofia não é um conjunto de verdades adquiridas definitivamente senão mais bem um conjunto de problemas ou questões que nos interpelam. Os interrogantes aos que pretenderam responder os nossos antepassados devem ser re-problematizados á vista de novos dados e novas situações. A religião, polo contrário, parece ser o único saber impermeável a qualquer falsação e por muitos contra-exemplos que se aduzam quer manter-se incólume contra vento e mareia, mas isso não pode por menos de minguar à longa a sua credibilidade.
           

19 mar 2017

A santíssima trindade e a democracia na Igreja



Os que, pola nossas circunstâncias vitais estudamos em Seminário e em universidades católicas, recebemos um ensino desfasado, antiquado, carente do mais mínimo rigor, autoritário e antipedagógico. O ensino lecionava-se em latim e a grande maioria do professorado não explicava e limitava-se a perguntar a lição a uns alunos aos que não se lhe dava possibilidade nenhuma de participação. As matérias de filosofia focavam-se dum modo apologético para servir de base á teologia. 

O evolucionismo, que se estudava-se em psicologia filosófica, era considerado como uma teoria gratuita e não comprovada cientificamente. Em cosmologia admitia-se o atomismo democrítico para a composição dos corpos, junto com a teoria peripatética do hilemorfismo, ou seja, a teoria que diz que todos os corpos estão compostos de matéria e forma. Punha-se, por tanto, uma vela a Deus e outra ao diabo e assim todos contentos, sem importar que ambas teorias fossem contraditórias.

A teologia reduzia-se a uma justificação dos dogmas e com esta finalidade interpretavam-se os textos bíblicos e os escritos dos Santos Padres para que dissessem o que mais tarde disseram os concílios aceitos pola facão dominante na Igreja, porque os outros eram rebaixados á categoria de conciliábulos e não se lhe concedia o mais mínimo valor.

As vicissitudes e o devir intelectual dos que partilhamos essa formação foram mui distintos e, enquanto uns permaneceram ancorados nesse esquema dogmático e acrítico, outros, adentramo-nos em mares muito mais procelosos e abertos, exploramos alternativas que antes nos foram vedadas e construímos novos ideais e novas cosmovisões.

         Quando nos encontramos com teólogos que permaneceram nas posições que nós abandonamos e dialogamos entre nós, muitas vezes ficamos surpreendidos de certas teses que os nossos interlocutores defendem. Isto foi o que me passou a mim faz algum tempo conversando com um teólogo galego com quem abordamos, entre outros, o tema do papado e o dogma da Trindade. Entre outras teses dignas de comentário, espetou-me que o papa era elegido democraticamente, que era infalível se ele avisa que vai falar dum modo infalível e que a Trindade já estava nos evangelhos. A isto é ao que me proponho responder neste artigo.
          Parece que o meu interlocutor não se precatou de que presta obediência a um estado estrangeiro, que se chama Estado do Vaticano, que tem como modelo de Estado uma monarquia absoluta de caráter medieval, que se carateriza por ser, na atualidade, o único estado no mundo que carece da mais mínima separação dos poderes legislativo, executivo e judicial, pois estes três poderes são exercidos pola mesma pessoa que é o Chefe do Estado do Vaticano, ou seja, o Romano Pontífice. Por certo, o título de Pontífice, ou construtor de pontes, era um título que se arrogavam os imperadores romanos e que o criminal papa São Dámaso se apropriou para si, apesar de não ter nunca construído ponte alguma. Isto não é de surpreender quando vemos como se apropriam nos nossos dias de Igrejas e mesquitas, apesar de não tenham posto um cêntimo na sua construção. O Estado do Vaticano é muito pequeno e só tem jurisdição sobre a cidade do Vaticano, resto dos Estados Pontifícios medievais, cuja possessão foi legitimada pola Igreja em base a documentos falsificados, neste caso, mercê á chamada Doação de Constantino, documento inventado nos séculos VIII-IX e atribuído falsamente ao papa Silvestre I (314-335). Neste documento, além de reconhecer a Silvestre I como soberano, se lhe doava todo o Império Romano de Ocidente, incluída a cidade de Roma, para constituir o Patrimônio de São Pedro, apóstolo do que não se sabe que tivesse patrimônio algum. Deveria, pois, saber também o meu apreçado interlocutor que a Igreja pretendia criar na Idade Média uma teocracia que dominasse sobre todo o Ocidente e que constituísse a base dum domínio universal do clero vaticanista. Um Deus no céu e um Pontífice na terra, e todo ad majorem Dei gloriam.

A Igreja nunca pretendeu ser uma democracia, porque considera que lhe vai melhor guiando-se polo seu advogado, que é o Espírito Santo, que ainda que não se possa demonstrar que existe, tampouco se pode demonstrar que não existe, e então erre que erre que existe porque já o dizem os Santos Padres. Como a democracia é governo do povo, o mínimo que podem fazer os membros de qualquer sociedade para ser democrática, é que os seus membros participem na eleição dos seus dirigentes e que a autoridade destes derive dos citados membros. Pois bem, Pio VI qualificou como herética em 1794 a afirmação do sínodo de Pistoia, que dizia que “da comunidade dos fieis se deriva aos pastores a potestade do ministério e regime eclesiástico” (D. 1502). O Romano Pontífice recebe de Cristo, na pessoa de Pedro, e não da Igreja, a potestade de ministério pola que tem poder em toda a Igreja. (D. 1503). A Igreja tem poder, segundo ela, para exigir obediência coativamente incluso além das questões referidas á fé e costumes (D. 1504-1505). E se ficava alguma dúvida véu dissipá-la o concílio Vaticano I, que estabelece o primado de jurisdição universal e não só de honra do Romano Pontífice sobre todos os demais bispos, quer tomados individualmente quer coletivamente. (D. 1822-1823). Portanto, o papa tem um poder que ultrapassa ao de todos os bispos isolados ou reunidos em concílio, e pode desmontar o que neles se acorda, como fizeram João Paulo II e Bento XVI com o Vaticano II. A Igreja, pois, não só não é democrática, senão que não pode ser democrática se respeita a sua própria doutrina, mas isto que é um princípio que todos os membros de qualquer sociedade deveriam ter claro, resulta que para alguns não só não é evidente, senão que se atrevem a qualificar de democrática a eleição dum governante dum estado que é elegido por uns quantos septuagenários que não representam a ninguém. Isto é um puro masoquismo mental produzido por um itinerário intelectual totalmente acrítico.

À minha afirmação de que a infalibilidade, também nas questões de fé e costumes, do Romano Pontífice foi falsada amplamente pola história, como se desprende da sua atuação que se detalha em O cristianismo contra a ciência, da minha autoria, retruca-me o meu afável interlocutor que o papa é infalível, mas para que os seus vereditos sejam infalíveis ele tem que advertir previamente que vai falar infalivelmente, e que, de momento, somente o fez quando declarou o dogma da Imaculada Conceição. Como vemos, não se consola quem não quer e inventiva não falta, porque alguns para demonstrar algo que não tem o mínimo apoio bíblico e que repugna à razão e vai contra os dados históricos, não duvidam em inventar pretextos extravagantes para sair do apuro. Os documentos eclesiais dizem que o magistério infalível refere-se a questões de fé e costumes e exerce-se polo juízo solene ou polo magistério ordinário, e em nenhum documento se diz que tenha que anunciar a golpe de corneta que vai falar infalivelmente, o qual, por outra parte, seria absurdo e ridículo. Se fosse um exemplo de juízo infalível o dogma da Imaculada Conceição, creio que o papa integrista Pio IX faria muito melhor em ficar calado, porque para esta viagem não se necessitavam semelhantes alforjes, porque este é um dos dogmas mais questionados nos nossos dias, porque a gente resiste-se já a aceitar qualquer cousa por absurda que seja. Tenho previsto falar deste dogma num livro de próxima aparição, e já não descendo a uma análise polo miúdo.

Diz o meu interlocutor que o dogma da Trindade já figura nas Escrituras, e eu retruquei-lhe e retruco-lhe que não só não está nas Escrituras, entendendo por tais tanto o Antigo como o Novo Testamento, senão que não está tampouco na patrística pré-nicena. Foi definida pola primeira vez polo concílio de Alexandria do ano 362 e ratificada polo concílio ecumênico de Constantinopla do ano 381. Em Niceia define-se a consubstancialidade do Filho e deixou-se no limbo o status do Espírito Santo. É certo que no evangelho se fala de triadas formadas polo Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas isto não significa que se defina a trindade cristã, que é um dogma que afirma que existem três pessoas divinas numa única substância, e isto foi uma proposição da autoria do fanático e intransigente Santo Atanásio de Alexandria, que dividiu a comunidade cristã em duas facões: a dos nicenos e a dos arianos, que se saldou com um dos maiores etnocídio que recordam os séculos. As  triadas foram muito freqüentes tanto nas religiões antigas como na filosofia, surgidas polo especial apego ao número três, e a triada cristã foi  copiada dos gregos, e em concreto de Filão de Alexandria. Em nenhum caso estas triadas implicavam que os seus componentes tinham a mesma substância, como diz o cristianismo da Trindade, e isto é a novidade e, por outra parte, o que a dota de total impenetrabilidade e opacidade para qualquer mente racional. 

Contudo, se os argumentos anteriores não lhe parecem suficientes, devo dizer que no concílio de Sírmio do ano 357 somente se fala de duas pessoas porque a consubstancialidade do Espírito Santo ainda não estava definida. “E todos sabem a doutrina católica, que há duas pessoas do Pai e do Filho, que o Pai é mais grande, o Filho submetido com todas as cousas que o Pai lhe submeteu”. Este foi um concílio que imos as teses semi-arianas, se bem pretendia também contentar a Ário reconhecendo que o Pai é superior ao Filho, tal como defenderam sem exceção de nenhuma classe todos os Padres pré-nicenos, compromisso que não seria aceito polos nicenos que se consideravam em possessão da verdade plena, mas que, deixa constância, sem dúvida nenhuma que a esta altura só se reconheciam duas pessoas da divindade, tratava-se, pois, duma Bindade e não uma Trindade. Eu rogaria-lhe, pois, ao meu amável discrepante que, além dos escritos que lhe ofereciam no ensino filtrador, limitador e manipulador que recebemos, leia também os dos que nos ocultavam e/ou criticavam, e seguro que chegaremos a aproximar as nossas posições. De todo isto falo no meu próximo livro de próxima aparição e convido o meu interlocutor a que refresque a sua lembrança dos temas dogmáticos para criticar por ativa, passiva e perifrástica o que nele afirmamos. Para isto é para o que temos a mente e não para espalhar incenso aos quatro ventos.



11 mar 2017

Ética da responsabilidade



            No mundo ocidental hoje em dia seria surpreendente que alguém puser em questão que os ateus podam ter uma conduta ética igual de correta que os religiosos praticantes sejam cristãos, judeus ou muçulmanos, e incluso se observamos o que passa no nosso entorno parece que a conduta moral dos não praticantes parece competir exitosamente com os que se proclamam religiosos praticantes. Mas não sempre se considerou que os ateus, que em Europa oscilam arredor do trinta por cento, podiam levar uma vida exemplar. Dizia John Locke em 1689 na Primeira carta referente á tolerância que “não serão tolerados os que negam a existência de Deus. As promessas, pactos e juramentos, que são os vínculos da sociedade humana não podem sustentar-se sobre o ateísmo. A eliminação de Deus, incluso no pensamento, dissolve todo. Além de que aqueles que polo seu ateísmo minam e destruem toda religião, não podem pretender depois disso pôr em causa o privilégio duma tolerância. Polo que diz respeito a outras opiniões práticas, ainda que não estejam absolutamente livres de erro, se não tendem a estabelecer um domínio sobre outros, ou impunidade na Igreja na que foram instruídos, não existe razão para que não sejam toleradas”. (Awnsham Churchill, London, 1690, p. 60). 

            Pola sua parte, Voltaire perguntava-se “Que restrições podem ser impostas á cobiça, ás transgressões secretas cometidas com impunidade, distintas da ideia dum patrão divino cujo olho está sobre nós e que julgará incluso os nossos pensamentos mais privados” (MANUEL, F. E., The changing of the gods, University Press, Hanover, 1983, p. 66).

            Historicamente, independentemente do que se diz nos textos fundacionais, o cristianismo converteu-se num instrumento de classe, neste caso da classe oligárquica, e, no Estado espanhol, também de espanholismo, como se pôs de relevo no pronunciamento da Conferência episcopal espanhola em prol da unidade de Espanha e em contra do direito dos povos a decidir o seu autogoverno e o seu futuro, justificando-o em base a que a unidade de Espanha é um bem moral prioritário. A isto último não haveria nada que objetar se precisassem que a citada unidade tem que estabelecer-se desde o acordo e o pacto e não desde a imposição. Com todo é sintomático que não alegaram nada quando o Tribunal Constitucional ilegalmente constituído e politicamente ancorado cara ao bipartito PP-PSOE invalidou o estatuto de autonomia de Catalunya depois de ter sido referendado polo povo catalão. Basta com escutar os programas dos seus mídia para dar-se conta destes extremos. O facto de atuar como instrumento de classe e de espanholismo provocou que fosse abandonado polos obreiros já desde o século XIX e polos membros mais ativos do nacionalismo periférico, especialmente da esquerda.

            Tendo isto em conta, a pergunta que temos que fazer-nos é se as classes sociais, grupos e pessoas da esquerda, menos religiosos e que integram uma percentagem maior de ateus, têm um comportamento moral mais ou menos correto, justo e equitativo que as classes sociais, grupo e pessoas que se costuma ubicar á direita, mais praticantes e defensoras dos privilégios eclesiásticos. A melhor maneira de focar esta questão seria estabelecer várias variáveis de caráter ético que nos sirvam de referência para focar melhor o problema. As mais representativas seriam as referidas á paz, justiça, liberdade, igualdade, meio ambiente, humanismo, corrupção,..., numa palavra, as referidas aos direitos humanos e á honestidade na conduta. É mais pacífica a direita ou a esquerda? É mais pacífico o tandem PP-PSOE-C’s, ou Podemos, ERC, BNG? E qual deles é menos corrupto? O PSOE não pode, nestes momentos, ser considerado um partido de esquerdas porque pactua todos os assuntos importantes com a direita, do que é um exemplo bem eloquente a revisão do artigo 135 da CE e a renovação do TC. É mais pacífico Trump, Obama ou Sanders? Foi a direita ou a esquerda quem nos meteu na guerra do Iraque? Quem é o culpável do rearme atualmente em marcha? Defende uma sociedade mais justa a direita ou a esquerda? E uma sociedade mais igualitária? Defende melhor a liberdade a esquerda ou a direita? Pode-se considerar mais livre uma sociedade controlada por determinados oligopólios ou uma sociedade na que se respeite a pluralidade e que meios públicos supram as carências que a oferta de por si não corrige? Para concretizá-lo mais, é melhor o modelo de controlo dos mídia estabeleceu Zapatero, neste caso com uma política mais de esquerdas, ou a de Rajoy? Quem respeita melhor o meio ambiente e tem mais sensibilidade para legar ás novas gerações um mundo mais habitável?

            Se em vez de referir-nos ao eido político, focamos o tema desde o ponto de vista religioso, perguntamos: Defende melhor as variáveis aludidas uma religião como o budismo ateu, o hinduísmo politeísta, confucionismo moral, taoísmo, ou as grandes religiões monoteístas do livro? Quem desencadeou mais perseguições no decurso da história? Quem tem um ideal mais integral de humanidade? Quem respeita melhor os direitos humanos?

            Quando os aderentes a uma religião defendem que não é possível fundamentar qualquer ética se se prescinde de Deus têm que justificá-lo não só em princípios teóricos abstratos, senão respondendo aos interrogantes anteriores, pois somente assim pode merecer a credibilidade da gente.

            Com todo, o propósito que nos move hoje não é tanto falar dos interrogantes anteriores senão principalmente da pegada da conceição que tem o cristianismo da responsabilidade pessoal e da maneira de inculcá-la nos seus seguidores.  Desde os seus inícios, na celebração da eucaristia os irmãos confessavam publicamente os seus pecados e não existia nada parecido á confissão individual ao confessor. Mas, a partir do século V, em concreto durante o papado de Leão I o Magno (440-461), este decretou que “se bem parece plenitude laudável de fé a que por temor de Deus, não teme a vergonha perante os homes; sem embargo, como não todos têm pecados tales que quem pedem penitência não temam publicá-los, há desterrar-se costume tão reprovável... Basta, com efeito aquela confissão que se oferece primeiro a Deus e logo ao sacerdote, que é quem ora polos pecados dos penitentes. Porque se não se publica nos ouvidos do povo a consciência de quem se confessa, então si que poderão ser movidos muitos mais a penitênciaCarta 158, II, Denzinger, 145). Como vemos, um razoamento puramente consequencialista, ou seja, que o fim justifica os meios.

            A confissão tal como se praticou na Igreja em vez de fomentar a responsabilidade contribuiu a debilitá-la. Diz Helen Ellerbe que os cristãos “desenharam uma organização não para estimular a espiritualidade, senão para gerir um grande número de pessoas. Simplificaram os critérios de membrecia. A Igreja católica decidiu que é cristão “qualquer que confessa o credo, aceite o batismo, participa na adoração, obedeça á hierarquia católica e creia a única e sozinha verdade, que é transmitida pola Igreja” (The dark side..., pp. 15-16). Considerar que o mero facto de confessar os pecados exime de toda culpa e deixa expedito o acesso ao céu para os maiores criminais não fomenta precisamente a responsabilidade senão que desincentiva os seres humanos que procuram ter um comportamento correto em todo momento. É bem eloquente do que dizemos a resposta dum sacerdote italiano que se dedicava a visitar prostíbulos e contratar serviços de prostitutas. “Ninguém se mete comigo porque aqui topas-te com gente casada e prometida. Se vêm a dizer-me algo, digo-lhes que os conheço e que lho vou dizer á sua mulher. Eu logo confesso-me”. Uma conduta chantagista e pouco respeitosa com os seus compromissos de celibato fica perdoada polo simples facto de comunicar-lho a outro sacerdote e com uma penitência que pode reduzir-se ao rezo de alguma oração ritual, e sem nenhum propósito efetivo emenda.

            Um dos modos de inculcar a responsabilidade e a submissão á Igreja foi o terror sobre os cidadãos. Nós vivemos numa sociedade cristã que protagonizou o maior etnocídio inter-cristão da história e que ostenta a paternidade das matanças das cruzadas e da Inquisição, a autoria do Índice de Livros Proibidos, da proibição de ler a Bíblia, etc. Com o pretexto de salvar as almas forçaram-se conversões de povos inteiros, mas o objetivo da Inquisição não era tão elevado, se isto tem alguma elevação, senão que, como rezava o Directorium Inquisitoram, escrito por Nicolau Aymerich: “Devemos recordar que o principal objetivo do juízo e a pena de morte não é salvar a alma do acusado, senão promover o bem público e aterrorizar á gente” (GREEN, TOBY, La inquisición,  Ediciones B, Barcelona, 2008, p. 37). Isto quer dizer que se pode edificar o bem público sobre assassinato dos acusados por dissidência. O terror está profundamente está incrustado nos genes da religião judeu-cristã e, consequentemente da sua ética. A Bíblia exorta reiteradamente que cumpre temer a Deus. “Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é todo o dever do home” (Ecl. 12, 13). “Bem-aventurado todo aquele que teme ao Senhor e anda nos seus caminhos” (Sal. 128, 1). “Mas eu vos mostrarei a quem é que deveis temer; temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no inferno; sim, digo, a esse temei(Lc. 12, 5). Este parecer é compartido polos Santos Padres e foi usual na prática cristã. Como rezava no frontispício das portas do Seminário de Santiago: “Timor Dei, principium sapientiaie”, (o temor de Deus é o princípio da sabedoria). Os sermões que se pregavam aos fieis durante a Santa Missão pretendiam que a gente se atemorizasse e o confessionário também se utilizou com esta finalidade, além de para controlo da cidadania. Um dos temas preferidos para lograr atemorizar os fieis era a descrição do inferno como um castigo eterno sofrido polos condenados que são queimados em enxofre fervente e que obrigaria a Deus a mantê-los com vida milagrosamente para poder atormentá-los. A responsabilidade cristã, pois, em vez de ser resultado da persuasão e da convicção é produto do imposição e do terror, mas uma responsabilidade fruto do terror não é propriamente responsabilidade, porque esta implica que a ação seja consciente, livre e voluntária. Isto não significa que um crente não poda obrar responsavelmente, que seria um absurdo, mas si que os atos que estão condicionados polo medo ou o terror são tanto menos responsáveis quanto maior seja a míngua da liberdade do crente e/ou religioso produzida polo terror sobre a mente humana.

            Uma das maneiras de semear o terror entre a população por parte da inquisição foi o secretismo, que impedia o acusado conhecer o nome do acusador com a finalidade de fomentar as delações entre os cidadãos, de maneira que ninguém podia sentir-se seguro, salvo os acusadores. Foi um recurso mui utilizado para eliminar aos que tinham rixas com os seus vizinhos. A Inquisição papal teve no Estado espanhol uma duração de 350 anos e deixou uma profunda pegada na conduta das pessoas que tardará em desaparecer totalmente. Quiçá por influxo da Inquisição se pode explicar alguns do episódios políticos que se vivem na atualidade, como, por exemplo, o amparo prestado pola Associação da Imprensa de Madrid a uns quantos jornalistas dos que os que concedem o amparo se negam a facilitar os nomes e os cargos exatos contra a formação política Podemos, pretextando que os nomes e os cargos lhes pertencem aos denunciantes, e concedeu o citado amparo sem dar audiência ao acusado para que alegue o que creia oportuno, o qual invalida totalmente o valor moral desta acusação. É a maneira perfeita de fomentar as acusações sem fundamento contra aquele ao que se quer afundir politicamente. Conseguem gratuitamente e com total impunidade o objetivo de desprestigiar o adversário político, que é uma tática mui utilizada nos nossos dias polos que ostentam o poder. Dado que a citada associação foi totalmente negligente em amparar as numerosíssimos jornalistas que sofrem acosso e pressões no seu trabalho e não precisamente por parte de Podemos, a sensação que transmitem é que o problema do jornalismo em Espanha é a formação morada, o qual constitui uma imagem burdamente destorcedora da realidade.


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