25 dic 2019

Sentença do TJUE de 19-12-2019


             Que faço eu, que não tenho a carreira de direito, metendo-me a opinar nestes assuntos? Pois singelamente, eu são um afeiçoado nestas lides jurídicas, mas como professor de ética, que tinha como cometido explicar os direitos humanos, não me arredo de manifestar também o meu ponto de vista, como também sempre permiti que qualquer pessoa, incluso leigo nas matérias que eu lecionava, expressasse o seu.

            Para entender a sentença cumpre ter em conta tanto os factos, como a questão à que responde o TJUE e os princípios básicos da legalidade de que partem ou deveriam partir tanto este tribunal da UE como o TS espanhol. Enquanto aos princípios, o primeiro é o respeito aos direitos humanos, tanto individuais como coletivos, recolhidos na legislação aplicável vigente, entre eles, o direito de liberdade, reunião, manifestação, participação política passiva e ativa, o princípio político de democracia representativa tanto dos eleitores como dos elegidos, direito de autodeterminação, etc.

            No transcurso do juízo contra o independentismo catalão por ter celebrado um referendo unilateral de autodeterminação o 1/10/2017, -e foi unilateral porque não contava com a anuência do Governo espanhol apesar dos intensos e persistentes esforços dos independentistas em consegui-lo-, o vice-presidente do Govern, Sr. Junqueras, suscita a questão da sua imunidade parlamentar por ter sido elegido deputado do Parlamento europeu nas eleições do 26/05/2019, e apresenta um recurso de súplica perante o TS no que o insta a que pergunte ao TJUE se goza ou não de imunidade e a partir de que momento. Surge, portanto, uma questão prejudicial, que, como diz a LOEC (Ley Orgânica de Enjuiciamiento Criminal), se refere “a questões civis e administrativas, propostas com motivo das factos perseguidos, quando tais questões apareçam tão intimamente ligadas ao facto punível que seja impossível a sua separação”. O Tribunal aceita realizar o recurso correspondente, que foi enviado e recebido no TJUE o 1/07/2019. e recalca no seu escrito que o “não condiciona o contido do pronunciamento sobre a causa principal” (30º), quiçá para justificar a sua intenção de continuar com a tramitação da sentença, diga o que diga o TJUE, e contar com uma sentença já firme para quando este tribunal europeu se pronuncie; e que o problema suscitado é de caráter hipotético e não real. Pola contra, o TJUE entende que a “interpretação solicitada polo TS guarda relação direta com o objeto do litígio principal” (58º), e o problema suscitado no citado juízo não é de caráter hipotético senão real.

            Ao Sr. Junqueras foi-lhe permitido apresentar-as eleições, mas uma vez que resultou elegido, não se lhe permite acudir a JEC para cumprir a formalidade de prometer acatar a CE, conculcando deste modo o seu direito e exercer como deputado do Parlamento Europeu. O TS manifesta que decidiu “primar a privação provisional de liberdade do Sr. Junqueras sobre o seu direito de participação política nos trabalhos do Parlamento Europeu com o fim de preservar os fins do processo penal promovido na sua contra, que correriam perigo ireversível se se lhe autorizasse a abandonar o território espanhol” (35º), ou seja, que o TS primou garantir a repressão de Junqueras sobre a conculcação dum direito fundamental seu numa democracia, como é o direito ao sufrágio tanto passivo do Sr. Junqueras como o ativo dos seus eleitores. Ou seja, que um direito fundamental fica subordinado ao fim superior da repressão, a eficácia repressora prima sobre a ética e os direitos humanos, segundo os valores do TS, e, com esta finalidade magnífica os riscos de abandonar o território espanhol, apesar de que decidiu, como um novo Sócrates, permanecer na Espanha e não optar por acolher-se a uma justiça doutros países da EU mais garantista, como si fizera Puigdemont e os seus companheiros deputados do Parlament. O sobre este despropósito original e cardinal o TS pretende construir uma justiça punitiva num estado membro da EU.

            Ora bem, não contemplou o TS que Junqueras podia gozar de imunidade desde o mesmo momento da sua eleição polos cidadãos, sem ter que submeter-se a nenhum outro requisito por parte dum sistema político que pretende sempre controlar e vez de garantir a participação política de todas as opções, aceitem ou não a legalidade que a fação majoritária unionista impôs, que apresentam como sagrada e inviolável? Por que se quer violentar a consciência dos dissidentes, obrigando-os a utilizar diversos subterfúgios para poder exercer como deputados e para que vale uma promessa de acatamento feita nesta tessitura?  

            O TS condenou a Baltasar Garzón por “laminar direitos”, e ordenar práticas próprias de sistemas políticos já superados, ao intervir comunicações desde o cárcere dos corruptos com os seus advogados; o caso de Rosendo Naseiro foi arquivado porque as escutas telefônicas foram ordenadas para investigar unicamente o caso de narcotráfico e, portanto, a sua utilização no presunto delito de financiamento ilegal não gozava de supervisão judicial, e, normalmente basta que qualquer prova se obtenha ilicitamente para não ser considerada polos tribunais de justiça espanhóis. Por conseguinte, nestes casos priorizaram-se os direitos humanos sobre a repressão, enquanto que agora com os independentistas prioriza-se a eficácia repressora sobre os direitos humanos. A que obedece esta câmbio de prioridades do TS? Temos que contar com uma doutrina Junqueras, para acrescentá-la às de Atutxa, Parot, Botin,..., todas tendentes a criar falhos ad hoc em vez de optar por uma justiça igualitária?

            Tendo em conta o despropósito original citado, para mim está claro; o TS deve pôr em liberdade de imediato a Junqueras porque toda a atuação do TS posterior ao 13/06/2019, e sobre todo ao 30 de junho, está viciada polo facto de que o TS devia esperar o veredito do TJUE e não arriscar-se a condenar a uma pessoa que podia gozar já de imunidade, e, uma vez que se obrou imprudentemente devia pô-lo em liberdade imediatamente depois de receber o falho do TJUE, e toda permanência em prisão posterior à apresentação do recurso de súplica e sobre todo da sentença do 19/12/2019 pode considerar-se uma detenção ilegal e arbitrária e os culpáveis poderiam ser acusados de prevaricação. Isto passa por não ter uma justiça independente, senão que julga o que lhe interessa aos políticos unionistas.

16 dic 2019

Catalunha não é uma nação?


                Estes dias anda o Pablo Casado a pregoar aos quatro ventos que Catalunha não é uma nação, e que Espanha é a única nação existente no Estado espanhol. Com estas afirmações o que pretende tanto ele como em geral os partidos coligados em Andaluzia, é reafirmar até o paroxismo o nacionalismo rampante espanhol, chauvinista e intransigente, para homogeneizar a população do Estado e construir um homo hispanus novo, deslumbrado por slogans e símbolos vazios, com a finalidade de procurar adesões a custo zero e alta rendabilidade política. Para conseguir os seus objetivos, todo sinal de identidade própria diferente da espanhola e todo sentimento de pertença distinto, é visto como um obstáculo, igual que todo poder intermédio entre o indivíduo e o poder espanhol, com o objetivo de criar um indivíduo inerme perante o poder e facilmente manipulável e controlável polas consignas do líder. De ai essa fustigação constante contra as línguas próprias infringindo mesmo a CE, já de por si unitarista e jacobinista. De ai a hostilidade contra o Estado das Autonomias por parte dos partidos estatais, desde o momento mesmo em que se redigiu a constituição, que teve a sua demonstração mais palpável na LOAPA, e nos nossos dias na bendição dum 155 ilegal e na maridagem do poder político e judicial para combater ao uníssono o procés catalão e castigar exemplarmente os seus protagonistas. E não falemos já da hostilidade contra qualquer menção da palavra autodeterminação.

                Está a pregoar sem o mais mínimo rubor a tírios e troianos o Sr. Casado, que Catalunha não é uma nação e que Espanha é uma nação desde faz já cinco séculos, ou seja, desde os Reis Católicos, faltou-lhe dizer desta vez que é a nação mais velha do mundo, ad majorem hispaniorum gloriam, como dissera tão repetidamente o seu inspirador e o de Aznar, Julián Marias, autor obstinado, simplista e escudeiro de José Ortega e Gasset, que o desprezava polas suas poucas luzes. Dizia este divulgador que Espanha é uma única nação, “a primeira nação que existiu em Europa”, “a mais antiga da primeira promoção” nascida em sentido político no ano 1474, data da entronização de Isabel e Fernando como reis de Castela e Aragão, quando se supera a conceição patrimonial das monarquias. A nação no sentido histórico, diz, data de muitos séculos antes, enquanto que, pola contra, o nacionalismo surgiria com a Revolução Francesa. Estas afirmações de Maria são puro ideologismo inconsistente, mas vejamos por que.

                Este autor não oferece em nenhuma parte uma definição rigorosa de nação, mas exige a presença de alguns elementos para poder afirmar que uma comunidade não é uma nação, que são: se lhe falta “uma personalidade unitária, uma língua comum, uma história coerente, uma cultura uniforme, um repertório de usos e costumes vigentes, não digamos um projeto comum de vida coletivo, um «programa nacional» compartido polos habitantes”. Pois bem, se aceitamos estas exigências para a nação, a que não é uma nação é Espanha, porque carece dum projeto comum de vida compartido polas nações catalã, basca e galega, enquanto que si são nações tanto Catalunha, como Euskadi. Galiza é uma nação num estádio inferior de construção e com uma menor consciência nacional, mas luta e aspira também a ser reconhecida como tal. O projeto de vida existente no Estado espanhol é um projeto de vida imposto e mantido manu militari. Se Julian Marías fosse coerente deveria defender o direito dos povos da Ibéria à livre autodeterminação, precisamente para constatar a existência desse projeto compartido, e não recorrer inclusive aos mortos para negá-lo. Por outra parte, se os citados traços são os que conformam uma nação, as repúblicas latino-americanas deixariam de ser nações, porque a língua majoritária que utilizam não é uma língua própria e também compartem traços culturais herdados dos colonizadores espanhóis.

                O que sim herdou Espanha dos Reis Católicos foi o anseio inquisitorial que semeou o terror na população em aras de estabelecer um discurso único e excluir qualquer dissidência. O tandem da espada e da cruz criou um sistema de terror, um dos mais coercitivos e o menos respeitoso com a dignidade das pessoas que existiram na história da humanidade, e teve como principais vítimas os judeus, muçulmanos e protestantes, mas também as meigas e os discrepante ideológicos. Essa inquisição condenou o heliocentrismo, o evolucionismo, etc., proibiu a leitura de milhares de livros, e condenou os seus autores, chegando inclusive a proibir a leitura da Bíblia, salvo na tradução latina que o povo já não entendia. Hoje essa inquisição não existe a nível formal, mas sim existe é uma obsessão por impor o discurso único, uma simplificação da realidade política para poder destruir os adversários e a obstrução a qualquer reforma da CE, para que os discrepantes e os inovadores esbarrem e impedir assim o câmbio sócio-político e econômico. De ai as fortes campanhas contra os populismos «bolivarianos», o «comunismo», ruptura de Espanha, golpismo, etc.

                É falso que a nação começa-se com o matrimônio de Isabel e Fernando, pois um enlace matrimonial o único que pode fazer é juntar reinos, mas de por si nunca pode constituir uma nação, que é uma noção distinta. O que fizeram Isabel e Fernando foi reinar sobre dous reinos que continuaram a manter a sua soberania e as suas leis, usos, costumes e tradições próprias. Além disso, quando morre Isabel em 1504, não foi o seu marido quem ocupou o trono de Castela senão a sua filha Joana, enquanto que ele continuou a reinar em Aragão, tendo de novo dous reinos distintos e dous estados distintos, se consideramos que nalgum tempo formaram um estado único. Por conseguinte, não só não se conformou uma nação em 1474, senão nem sequer um estado com vontade de permanência no tempo. Uma nação é: a) Um sócio-sistema, um sistema social, que exclui que sejam nações os aglomerados de pessoas e os organismos sociais desestruturados. b) Com caraterísticas diferenciadas, que podem variar dumas a outras, e assim, uma nação pode compartir a língua, mas ter uma religião, ou uma cultura, ou uma idiossincrasia econômica específica, ou uma legislação distinta como aconteceu com Franza em tempos da Revolução Francesa; assim a repúblicas americanas não tem língua própria, mas sim têm uma história específica, forjada na sua luta com o colonialismo espanhol. c) É um sistema socio-biológico dotado de inteligência coletiva, que num determinado momento do tempo adquire consciência da sua singularidade, e d) Tem vontade política de autogovernar-se e de decidir o seu futuro, e, por tanto, é básico, para elas, a defesa do direito de autodeterminação. Disto desprende-se que toda nação tem um componente político essencial e falar de nações culturais, como fazem alguns no nosso país, é um sem sentido, invento dos ideólogos unionistas mesetários, liderados por Andrés de Blas Guerrero. Isso é uma etnia, mas não o que hoje se entende por nação, ao igual que é uma etnia o que Marias chama nação histórica..

                É um disparate maiúsculo afirmar que as nações políticas existem desde antigo e, por outra parte, suster que o nacionalismo surge com a Revolução Francesa. É um lugar comum já entre os historiadores do fenômeno nacionalista afirmar que não pode haver nações sem nacionalismo. A nação é uma realidade sócio-histórica que surge, se construi, se desenvolve e fenece no tempo e esta realidade somente pode surgir por obra das elites lúcidas duma determinada comunidade, que seriam os primeiros nacionalistas, que inoculam a sua consciência sociocultural, política e econômica no coletivo e impulsam um projeto diferenciado no povo ao que pertencem. Os nacionalistas erigem a nação como o novo protagonista da história em substituição das monarquias patrimonialistas ou doutros projetos personalistas, que dispõem ao seu bel prazer dos destinos da comunidade, podendo dividi-la entre os seus filhos, porque eles são os que mandam. Por isso as nações não surgem até que a maioria dos cidadãos decide ostentar a soberania, despojando de tal prerrogativa ao monarca, situação que se produz, a respeito de Holanda e Inglaterra no século XVII, e no século XVIII polo que se refere a Franza, e que se pôs de manifesto quando os revolucionários franceses enviam ao exílio a Luis XVI e deixam claro que quem manda já não são as elites, senão a nação, representada a essa altura polo Terceiro Estado. A Revolução Francesa de 1789 jogará um rol difusor do nacionalismo de primeira magnitude. No século XIX serão os proprietários quem ostente essa representação da soberania nacional, que tem, por conseguinte, caráter censitário, e já a finais do século XIX todo povo, representado, num primeiro momento polos varões maiores de idade, e no século XX por todas as pessoas maiores de idade: homens e mulheres. A nação não tem sentido sem esse protagonismo dos cidadãos, que fazem impossível que no futuro um rei possa dispor dos seus destinos, e que falem, como faziam Isabel e Fernando «destes mis reinos», ou que se intitulem como soberanos. Na Espanha ainda estamos a médio caminho, porque o rei ainda contrapõe a legitimidade monárquica com a legitimidade popular, sem querer dar-se conta de que a única soberania aceitável é a popular.

                A divisão que, no seu anseio manipulador e tergiversador, faz Julián Marias, das sociedades em plenas ou saturadas e insertivas, é puro ideologismo com pretensões imperialistas. Dessa maneira pretende já assignar-lhe o seu destino aos diversos povos que, mal que bem, convivem no Estado espanhol, que seria o de ser comunidades de segunda categoria, ou regiões, que tem que resignar-se a viver inseridas noutra sociedade, que é a sociedade plena, da que formam parte e da que se nutrem, em primeiro lugar, as entidades regionais, concebidas como deputações regionais, e, por último, os municípios. Em vez do direito de autodeterminação dos povos, propugna a necessidade de resignação das nações insertivas a viver em relação de dependência e subordinação da única nação plena, que é a nação espanhola. Uma conceição que seguro que faz sua Vox.