31 mar 2018

Estado de direito e direitos humanos


                Aos políticos espanhóis vai-lhes muito bem simplificar as cousas, criando estereótipos ideológicos por um processo de desprestígio social dos sectores implicados com o objetivo de combater as políticas contrárias aos seus preconceitos. Criam assim uma caricatura da realidade com a que, como quixotes,se  assanham verbal e penalmente com objeto de obter uma rendabilidade eleitoral para si próprios. Criam esquemas simplificadores e deformadores da realidade que funcionam bem entre determinados sectores pouco críticos e de baixa formação intelectual. Foi o que passou com as organizações políticas bascas da esquerda abertzale que foram qualificadas simplesmente como E.T.A. apesar de que não propugnassem a luta armada e que muitos dos seus integrantes a rejeitassem expressamente. Desta maneira conseguiram que qualquer militante destas organizações pudesse ser detido e punido como membro duma organização terrorista. Foi também o que passou já recentemente com Podemos que foi considerado polos sectores da direita como populistas e afins aos regimes venezuelano e iraniano, previamente desprestigiados sócio-politicamente. Qualquer trabalho profissional que realizassem os seus militantes com estes governos será motivo suficiente para ser acusados de estar financiados por eles.

                Quando falamos de estado de direito não falamos da forma de governo nem da sua legitimação, senão do sistema normativo vigorante em qualquer coletividade, que obriga coativamente a que todos os seus membros o respeitem e obrem de acordo aos seus preceitos, e que confere faculdade de exigir, fazer ou evitar algum ato, convertendo-se assim o direito ou sistema normativo no fundamento de direitos subjetivos. No século XIX, o sistema vigorante na Espanha era a monarquia constitucional, que se regia também por um estado de direito que concedia ao monarca o poder legislativo e executivo. Diferenciava-se do período anterior absolutista em que o monarca já não está por cima da lei senão que está submetido a ela; sendo também o mesmo monarca quem impõe as normas; é um monarca com poderes amplíssimos, mas fica submetido a elas. Nestes casos, quem infringisse a lei vai ser castigado penalmente, e se os mandatários gozam de prestígio social vão, também mediante a censura dos cidadãos. Era também um estado de direito. Hoje não se admite outra legitimação distinta da democrática e, portanto, isto vai diferenciar também o sistema normativo comunitário, que já não pode ser imposto por uma pessoa legitimada polo seu nascimento no seio duma determinada família, senão que tem que criar-se mediante uma participação dos cidadãos na sua elaboração. Em consequência, para que haja estado de direito, o decisivo é que se implantem normas de obrigado cumprimento que obriguem a todos, mas não implica que sejam iguais para todos. De facto na atualidade no Estado espanhol a monarquia goza de numerosos privilégios tanto polo seu nascimento, que faz que uma menina de 12 anos já estejá predestinada a reinar neste país polos «Padres da Pátria» que redigiram esta «sacrossanta» Constituição a e receba o toison de ouro, a máxima condecoração espanhola, sem ter mérito nenhum para isso, como polos atos que realize, que possibilita uma justiça impunitiva para os membros da Família Real, como se demonstrou fidedignamente no caso de corrupção detectado no Instituto Noos.
                O campo dos direitos humanos é distinto do âmbito jurídico, é o âmbito da ética ou da ética política na qual já não se trata do que é, de quais são as normas vigorantes numa comunidade, senão do que deve ser. Entramos assim no mundo das necessidades e aspirações humanas, do direito a exigir que se implantem umas normas jurídicas que favoreçam um ideal de humanidade. Um direito humano pode ou não estar recolhido num sistema de normas; se está recolhido, falaremos desse sistema de normas favoravelmente e, em caso contrário, criticá-lo-emos, mas o direito humano existe ainda que não esteja recolhido, por mais que não se possa efetivar. Esta distinção entre ética e direito objetivo é fundamental, porque em caso contrário corremos o risco de não entender a realidade sociopolítica. 
            A controvérsia entre os nacionalismos defensivos, no caso espanhol, os periféricos, e os nacionalismos impositivos, como o nacionalismo espanhol, obedece a que se movem em dous viveis distintos. Os primeiros no âmbito da ética, e mais em concreto da ética política, e, por conseguinte, das aspirações humanas, e concretamente nos direitos dos povos a auto-governar-se e a decidir sobre as relações que devem estabelecer com os demais povos, noutras palavras, a exercitar o direito subjetivo de auto-determinação dos povos;. e os segundos movem-se no âmbito do direito, do sistema normativo imposto por eles mesmos aos demais e muitas vezes tergiversado e adaptado ad líbitum. De acordo com o sistema normativo espanhol, está claro que os povos não podem exercitar o direito fundamental dos povos à autodeterminação, porque, apesar de que está recolhido no direito internacional, não vem recolhido e os unionistas não querem integrá-lo na legislação nem na CE, que consagra que o único povo soberano é o espanhol, e os demais povos têm que submeter-se ao que decida o povo espanhol. Se comparamos isto como o que estabelece a Constituição da Confederação helvética observamos uma diferença enorme entre ambas. Diz o seu artigo 3 da CH: “Os cantões são soberanos nos limites da Constituição federal e, como tais, exerceram todos os direitos não delegados ao poder federal”. Os espanhóis alegam usualmente que o direito de autodeterminação não se reconhece em nenhuma constituição, mas isso somente indica, por uma parte, o rol que têm os estados na sua redação e, por outra parte, porque um matrimônio não se celebra com a intenção de rompê-lo, senão de que dure muito tempo, mas sempre sem renunciar ao direito ao divórcio que concede a legislação nacional ou internacional vigorante. 
            O artigo da CE paralelo ao citado da CH, é o artigo 2, imposto polos militares, que reza: “A Constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas”. O povo espanhol é o único que se reconhece como sujeito político e os demais povos são simplesmente negados. Esta normativa constitucional tem implicações muito importantes na sistema competencial e no sistema de garantias dos direitos reconhecidos. Vexamos um caso revelador, como é o do idioma. O artigo 18 da CH determina: “Garante-se a liberdade do idioma”, entendido como o direito a que cada um utilize o idioma que queira sem imposições de nenhuma classe. O artigo 70 estabelece: “1 As línguas oficiais da Confederação são o alemão, o francês e o italiano. O retorromano é também uma língua oficial nas relações que a Confederação mantenha com pessoas de língua retorromana. 2. Os cantões determinarão as suas línguas oficiais”. Frente a esta legislação, a CE determina no seu artigo 3: “1. O castelhano é a língua espanhola oficial do Estado. Todos os espanhóis têm o dever  de conhecê-la e o direito a usá-la. 2. As demais línguas espanholas serão também oficiais nas suas respectivas Comunidades Autônomas de acordo com os seus estatutos”. O espanhol é a única língua oficial do Estado, imposta como obrigatória para todos, e as outras são somente oficiais no seu território, e com uma oficialidade de segunda, porque ninguém têm obrigação de conhecê-las nem sequer no seu próprio território. Mas, incluso esta cativa legislação está sendo combatida polo PP e C’s para restringi-la ainda mais com a finalidade de convertê-la numa opção meramente individual e nunca coletiva, como sinal identificador e diferenciador dos povos, em aras de homogeneizar a realidade social e converter os cidadãos em rebanhos de ovelhas que devem perder qualquer identidade comunitária diferente da de pertença a Espanha. 
            Se falamos da reforma da constituição não há comparação possível entre a CE e a CH. Nesta última bastam 1.100.000 assinaturas de cidadãos para obrigar a sua reforma. No Estado espanhol é impossível sem a benção de qualquer dos partidos dominantes no Estado, até o momento PP e PSOE. É uma constituição vítima da chantagem dos imobilistas e reacionários. Todos estamos fartos de ouvir a Rajoy que antes de reformá-la há que indicar-lhe quê se quer reformar e qual é o objetivo da reforma. É uma constituição que blinda a perpetuação no poder de pessoas que dão lições de democracia, mas que evitam como a peste submeter-se a elas. É uma constituição pensada para o controle dos cidadãos em vez de ser a sua via de expressão da sua vontade política; basta uma leitura superficial das duas constituições para convencer-se disso..
            No Estado espanhol produzir-se-ia um avanço qualitativo se a CE dissesse: “As nações são soberanas nos limites da Constituição republicana e federal, e como tais exercerão todos os direitos não delegados ao poder central”. Com uma constituição baseada na soberania das nações é muito provável que se terminassem as tensões das comunidades periféricas e se delineasse um futuro de muita maior confraternidades e colaboração entre todos os povos peninsulares. Um projeto destas caraterísticas seria combatido tanto polos imobilistas do PP como polos reacionários de C’s e os jacobinistas do PSOE, que querem controlar todo desde o centro e que todos obedeçam aos seus desígnios, mas deveriam perguntar-se é Espanha ou Suíça quem goza de maior estabilidade.  

 Volvendo à relação entre estado de direito e direitos humanos, podemos dizer que uma pessoa pode ser muito lúcida em direito e não ter a mesma sensibilidade em ética, e creio que este é o caso do excelente jurista Javier Pérez Royo, que numas declarações feitos à mídia o 18/03/2018 manifestava que comparava a sentença do Constitucional de 2010 como um golpe de Estado, enquanto vai modificar o sistema normativo das Comunidades Autônomas sobre a revisão estatutária fixada na CE. Mas quando foca o tema do direito de autodeterminação fracassa lamentavelmente. Disse ele: “Todo o mundo tem o direito de autodeterminação. Se uma sociedade é democrática todo o mundo exerce esse direito quando elege os concelheiros nas eleições municipais, quando elege os parlamentares autonômicos nas autonômicas, os parlamentares estatais nas eleições gerais... democracia e direito de autodeterminação são o mesmo”. É evidente que os atos aos que alude o Sr. Pérez Royo implicam atos de decisão, mas o direito de autodeterminação não se reduz a eleger os concelheiros nem os deputados autonômicos, senão que implica também e principalmente o direito a auto-governar-se e o direito a eleger o seu destino como povo e as relações que quere manter com os demais povos, sempre em pé de igualdade com eles. E isto é o que entendem tanto os nacionalistas como o direito internacional, que implica que os limites ao exercício desse direito tem que estabelecê-los o próprio povo e não corpetes impostos polas potência dominantes, e deste direito, Sr. Pérez Royo, sim que estão privados muitos povos, entre eles os que conformam o Estado espanhol. Portanto, querer a independência não é nenhum delito, como parece insinuar este autor, nem um povo tem que estar amarrado a outros para se auto-determinar e muito menos à aqueles que o aprisionam.

14 mar 2018

Justiça de alpargatas


Quando falamos de justiça de alpargatas aludimos a uma justiça de andar por casa, e que nenhuma pessoa que respeite as convenções sociais poria quando acode a atos de sociedade, neste caso concreto, quando acode a instâncias penais internacionais. Referimo-nos às instâncias judiciais que estão relacionadas com o poder político, nomeadamente a Audiência Nacional, o Tribunal Constitucional, o Tribunal Supremo, o Conselho Geral do Poder Judicial e ministério fiscal. Todos estes são órgãos que, a través da sua nomeação, vem comprometida a sua independência real na sua atuação. 

A legislação internacional dos direitos humanos estabelece as obrigações que os Estados devem respeitar. Quando um estado é parte dum tratado internacional de direitos humanos compromete-se a assumir as obrigações e deveres que se estabelecem nela e a mudar a sua legislação para que o próprio país se reja polas normas estabelecidas nos tratados internacionais protegendo os direitos das pessoas e dos povos ao seu desfrute efetivo, limitando ou impedindo qualquer obstáculo em contra, e interpretando a legislação própria de acordo com os citados tratados internacionais.

O Estado espanhol ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos promulgados pola ONU em 1966, que estabelecem no seu artigo 1: “Todos os povos têm o direito de livre determinação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e provêm assim mesmo ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. No Estado espanhol, contrariamente ao que aconteceu no Reino Unido e no Canadá, nunca se respeitou o direito de autodeterminação nem se permite que o povos possam adotar medidas eficazes para procurar o seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Como é possível prover ao desenvolvimento da Galiza quando nem sequer se permite que tenhamos uma tarifa da luz própria para o nosso país, expressão das nossas vantagens econômicas comparativas, por se ter determinado legalmente que tem que ser a mesma para todo o Estado, com o objetivo não declarado de que contribuamos à industrialização doutras comunidades, fundamentalmente de Madrid, e não gozemos desta vantagem comparativa? Para negar o direito de autodeterminação utilizam-se subterfúgios como que este direito só se aplica a contextos coloniais, como se um direito dependesse do contexto em que surgiu. Também se podia negar o direito das mulheres ao voto pretextando que este direito surgiu num contexto de luta das sufragistas em Nova Zelândia e Austrália.

Como podemos prover ao nosso desenvolvimento cultural quando, ainda no nosso território, a nossa língua nem sequer goza da oficialidade plena da que sim goza o espanhol? Agora o PP quer obrigar os catalães a ser lecionados em espanhol apesar de que este idioma já é dominante em todas as comunidades do Estado, incluída a própria Catalunya e não corre risco nenhum enquanto à sua supervivência. No âmbito lingüístico, o governo de Espanha incumpre reiteradamente os compromissos que assumiu quando o 15/09/2001 ratificou a Carta Europeia das Línguas Minoritárias. Só por pôr um exemplo, significativo a nível simbólico, no seu artigo 13 determina que as partes se comprometem a “Opor-se às práticas, encaminhadas a desalentar o emprego de línguas minoritárias dentro das atividades econômicas e sociais”. Faz uns dias o Presidente do Governo de Espanha declarou que o debate das línguas minoritárias opõe-se ao progresso, que somente se pode entender referido ao facto de que as línguas minoritárias se falem e ensinem e não de que se fale delas, porque então ainda seria mais grave. O projeto da Confederação helvética creio que deveria ser o exemplo a seguir no Estado espanhol, porque respeita muito bem a pluralidade, não gera problemas de nenhuma classe e mantêm-se muito estável no tempo. O projeto europeu concebeu-se a imitação do suíço, e, se quer manter-se fiel aos seus princípios inspiradores, deve reconhecer a pluralidade da sociedade e não pretender amoldar a realidade social a nenhuma legalidade imposta que limite os direitos dos povos a utilizar a sua língua livremente e não mediatizada por barreiras que coartem o seu desenvolvimento normal. O Estado espanhol faz muito bem em reivindicar que se utilize o espanhol em todos os âmbitos comunitários europeus, sacudindo-se a vaga anglófona, que tanto dano lhe pode produzir de cara ao futuro, mas deveria também promover em todos os âmbitos o emprego duma língua tão universal e importante como o galego-português, igual que o basco e catalão. 

Mas a inadequação entre a lei e realidade também está-se a dar dum modo flagrante no processo catalão. O artigo 472 Código Penal espanhol vigente especifica dum modo claro em que consiste o delito de rebelião: “São réus do delito de rebelião os que se alçassem violenta e publicamente para qualquer dos fins seguintes: ... 5.º Declarar a independência duma parte do território nacional”. Vimos muitas imagens do que sucedeu em Catalunya, e observamos como se proclamou a independência no Parlament, mas o que não se viu por nenhures foi esse alçamento violento. Pudemos constatar as sucessivas chamadas à calma dos líderes políticos catalães e pode que alguma pessoa isolada rompesse algum cristal, mas se isto se chama rebelião então haveria que considerar com tal centos de manifestações que se produzem todos os anos no território do Estado espanhol. 

O artigo 544 do citado Código Penal inclui a figura de sedição. “São réus de sedição os que, sem estar compreendidos no delito de rebelião, se alcem publica e tumultuariamente para impedir, pola força ou fora das vias legais, a aplicação das leis ou a qualquer autoridade, corporação oficial ou funcionário público, o legítimo exercício das suas funções ou o cumprimento dos seus acordos, ou das resoluções administrativas ou judiciais”. Segundo a RAE, a sedição é um “alçamemto coletivo e violento contra a autoridade, a orden pública ou a disciplina militar, sem chegar à gravidade da rebelião. A palavra tumulto segundo a RAE significa: “Motim, confusão, alvoroto produzido por uma multidão, confusão agitada ou desordem ruidosos”. Neste último sentido, qualquer ato de greve poderia ser incluído dentro do tumulto, e unicamente o que os diferenciaria é o fim, mas, muitas vezes também se impede aos funcionários num dia de greve realizar o seu labor. Em Catalunya, polo que eu sei, além de não produzir-se violência, a nenhuma autoridade se lhe impediu o legítimo exercício das suas funções ou o cumprimento dos seus acordos. Creio que o Delegado do governo trabalhou com normalidade e nas conselharias também os que quiseram. Não se vê, por conseguinte, uma base clara para semelhante repressão nem uma razão sólida para que se lhe aplique uma lei que está pensada para um levantamento de caráter militar e não para pessoas totalmente desarmadas e indefensas. O que sim observei claramente foi a violência institucional sobre pessoas inermes, inofensivas, desarmadas. Vim como tiravam polas escadas velhos e velhas que não eram ameaça nenhuma para ninguém. Quem tomaram Catalunya polas armas foram os outros, mas nunca os independentistas, que não têm força própria nenhuma, nem sequer os mossos d’esquadra.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem condenando reiteradamente a Espanha pola vulneração de direitos das pessoas, normalmente por abuso contra a liberdade de opinião, por situações de impunidade dos membros das forças e corpos de segurança do Estado; pola utilização da tortura ou outras formas de violência, especialmente contra militantes nacionalistas periféricos; por não investigar exaustivamente, e pola carência da dobre instância penal. No ano 2012 ditaram-se doze condenas contra Espanha por estes motivos; no 2017, cinco; 

Outro modo de atuação que ratifica o funcionamento duma justiça fechada em si mesma, foi a absolvição do presidente do Santander, Emílio Botim em base a que “se o ministério fiscal e a acusação particular tiver solicitado a desistência da causa, não poderia acordar-se a apertura do juízo oral, a instância só da acusação particular”, ou seja, que a acusação particular não basta para impedir o arquivo duma causa se não existe também acusação do fiscal; a condena do ex-presidente do parlamento vasco José Maria Atutxa, no que só existia acusação particular, e, portanto, podia aplicar-se a doutrina Botim, mas O Tribunal Supremo ditou que a doutrina Botim só era aplicável com delitos que danaram alguém em concreto, mas neste caso podia prosperar, ainda que só fosse com acusação particular porque se ia contra interesses coletivos; e o reforço da condena no caso do etarra basco-francês Henri Parot mediante a eliminação do princípio da irretroatividade das penas; em todos estes casos sentenciou-se como fruto duma doutrina ad hoc para justificar o veredito absolutório num caso, que impediu condenar o grande banqueiro, e condenatório nos noutros, que favoreceu a condena do nacionalista vasco e a prolongação da prisão no caso do etarra Parot.

O encarceramento dos políticos catalães que sempre pregaram e praticaram a via pacífica para lograr os seus objetivos políticos, sempre legítimos em democracia, frente a uma injustificável resistência do governo espanhol a mover ficha para atender as suas legítimas reivindicações, ratifica por uma parte a dobre rasoura com o que atua a justiça deste país, e, pola outra, o funcionamento duma justiça tipicamente espanhola que pretende castigar como delinqüentes violentos a pessoas que não mataram nem uma mosca, e a deixar totalmente na impunidade aos que provocaram feridas, que necessitaram assistência médica, a centos de pessoas, atiçados polo lema: «A por eles». Dá também a impressão de que se trata duma justiça governativa porque já os ministros informam do que vai acontecer nos julgados. O ministério fiscal aparenta estar totalmente pregado ao executivo e obedecer fielmente as suas consignas, atuando a modo dum lacaio, ou seja, dum servidor fiel. Não sei se este proceder prosperará perante a justiça internacional, mas já cumpriu com o objetivo de enfastiar-lhe a vida a muitas pessoas, que é o que, ao parecer, realmente se pretende para que sirva de escarmento e amedronte os adeptos ao nacionalismo.

O último episódio de atuação à espanhola da justiça está representada pola condena à justiça espanhola do Tribunal Europeu de Direitos Humanos por violação do artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que diz: “Toda pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de comunicar informações ou ideias sem que possa haver ingerência de autoridades públicas e sem considerações de fronteiras”. Este falho da produziu-se a raiz de ter imposto a Justiça espanhola uma pena de cárcere a dous manifestantes catalães que queimaram uma foto dos reis de Espanha. A Corte entende que “em matéria de ofensa para com um chefe do Estado, a Corte já declarou que uma proteção acrescentada por uma lei especial em matéria de ofensa não é, em princípio, conforme ao espírito da Convenção... Com efeito, o interesse do Estado de proteger a reputação do seu próprio chefe do Estado não pode justificar conferir-lhe a este último um privilégio ou uma proteção especial com respeito ao direito de informar e expressar opiniões referentes a ele” (35). Isto implica que a reputação do chefe do Estado com leis especiais deve subordinar-se ao respeito aos direitos humanos fundamentais, entre eles a liberdade de pensamento, opinião e manifestação. Tendo isto em conta, não se entende que o mesmo dia em que se dá a conhecer o falho do tribunal europeu, os partidos monárquicos: PP, PSOE e C’s se neguem a despenalizar as injúrias à coroa, ou seja, que, para estes partidos, o decisivo não são os direitos humanos, como já o demonstraram na atuação em Catalunya o 1O senão a proteção por meio da repressão da reputação duma monarquia que não é capaz de defender-se por si própria, com uma atuação exemplar como instituição ao serviço dos cidadãos. Continuamos com a justiça à espanhola, a justiça em alpargatas.

5 mar 2018

A misoginia no Novo Testamento



               Os essénios, seita à que provavelmente pertenceu Jesus, eram misóginos e não aceitavam mulheres na sua congregação e desprezavam o matrimônio . Como di Flávio Josefo, “Não é que eles condenem em principio o matrimônio e a procriação, mas temem da desvergonha das mulheres e estão persuadidos que nenhuma delas guarda a fidelidade a um só home1. As razões que aduzem para esse desprezo são, além da percepção negativa que têm da mulher, a dificuldade de manter os vínculos comunitários entre pessoas casadas e a sua misossexualidade. Manifesta Filão de Alexandria que “Rejeitam o matrimônio porque com toda clareza vem nele o único ou principal obstáculo para manter os vínculos da vida em comunidade, e à vez porque praticam com particular zelo a continência. Nenhum deles, com efeito, toma esposa, entendendo que a mulher é uma criatura egoísta, zelosa por demais e capaz de tender as suas redes aos costumes do home e seduzi-lo com as suas incessantes fascinações2. Com todo, algumas correntes essénias não condenavam o matrimônio nem o rejeitavam, porque “Pensam que renunciar ao matrimônio é realmente suprimir a parte da vida mais importante, a saber, a propagação da espécie; cousa tanto mais grave que o gênero humano desapareceria em pouco tempo se todos adotassem esta opinião. Tomam às suas mulheres como ensaio, e depois que três épocas sucessivas mostraram a sua aptidão para conceber, desposam-nas definitivamente. Depois de estar embaraçadas, não tem relações sexuais com elas, mostrando assim que se casam não por prazer senão para procriar meninos3.
               O pensamento e a prática de Jesus vem coincidir com esta corrente essénia, que não condena o matrimônio, por considerá-lo necessário para a procriação da espécie, mas ao mesmo tempo dá-lhe prioridade à vida de continência e de renúncia ao prazer sexual, como se manifesta em Mt. 19, 12: “Há eunucos que a si mesmos se fizeram tais polo reino dos céus”. Houve, com todo, alguns grupos gnósticos que, amparando-se no Evangelho dos Egípcios, da primeira metade do século II, diziam que Jesus rejeitou não só o matrimônio senão também a procriação, pois quando Salomé lhe perguntou ao Senhor: “«Durante canto tempo predominará a morte?» ele respondeu: «tanto como vós as mulheres gereis meninos»”4. Este é um evangelho apócrifo, mas a distinção a respeito dos canônicos sempre é muito ténue, em grande parte arbitrária e controvertida. Clemente de Alexandria que nos transmite este fragmento não duvida que é um texto autêntico, e somente se opõe à interpretação que lhe dão alguns grupos que entendem que Jesus está a condenar o matrimônio e a criança de meninos. Clemente entende que Jesus só expressa com esta resposta uma lei da natureza que é a de vida- morte.
               Esses grupos gnósticos aduzem outro texto deste mesmo evangelho que diz que o Salvador pronunciou este oráculo: “«Eu vim para destruir as obras da mulher». A mulher, quer dizer, o prazer; as obras, quer dizer, o nascimento e a morte”5. Ele não veu, segundo Clemente, destruir esta ordem, as leis naturais, senão as obras da concupiscência, avareza, amor ao dinheiro, pederastia,... Por mulher entenderia a intemperança. “Porque quando ela disse, «Eu fiz melhor não ter dado luz um menino», dando a entender que ela não teria direito a dar a luz um filho, o Senhor replicou-lhe dizendo: «Come de qualquer planta, mas não comas daquela que é amarga»6. Clemente interpreta esta resposta no sentido de que o Senhor lhe disse que podia tanto casar como não, e que o matrimônio continua a obra da criação. Claro que também se pode entender no sentido de que faça o que queira, mas que evite o que é amargo, como as preocupações ligadas á geração e criança dos filhos.  
               O apóstolo Paulo, manifesta que “Enquanto aos casados, ordeno-lhes, não eu senão o Senhor que a mulher não se separe do marido, mas em caso de separar-se que não volva casar, ou que se reconcilie com o marido, e que o marido não despida a sua mulher7. Neste caso a mulher se se separa do marido, tem duas alternativas: não casar ou reconciliar-se; para o home decreta que não repudie a sua mulher, mas, caso de fazê-lo, não se lhe proíbe que volva casar. Paulo define a mulher pola sua total referência ao varão e a esta pola sua referência a Deus e a Cristo. Na sua argumentação incorre em falácias para justificar a tradição vigente em Israel segundo a qual as mulheres deviam rezar cobertas com véu, e que ele atribui à dependência e inferioridade da mulher com respeito ao varão. A mulher deve velar-se porque, em caso contrário, desonraria o seu marido, mas sem acarretar nenhuma justificação de por que é assim, convertendo este preceito em algo totalmente imotivado e em expressão irracional do domínio do varão sobre a mulher. Como pode constatar-se polo texto que imos ver, o razoamento de Paulo ressente-se no seu rigor argumental, baseado em simbologias inconsistentes. “Pois bem, quero que saibais que a cabeça de todo varão é Cristo, e a cabeça da mulher, o varão, e a cabeça de Cristo, Deus. Todo varão que reza ou profetiza com a cabeça velada, desonra a sua cabeça, e toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua cabeça; e é como se se rapara. Se uma mulher não se cobre, que se rape, e se é indecoroso para uma mulher cortar-se o pelo ou rapar-se, que se vele. O varão não deve cobrir a cabeça, porque é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do varão, pois não procede o varão da mulher senão a mulher do varão; nem foi criado o varão para a mulher senão a mulher para o varão. Deve, pois, levar a mulher o sinal da sujeição por respeito dos anjos. Mas nem a mulher sem o varão nem o varão sem a mulher no Senhor. Porque assim como a mulher procede do varão, assim também o varão vem existir pola mulher, e todo vem de Deus. Sede vós juízes: é decoroso que ore a mulher descoberta? E não vos ensina a mesma natureza que o varão se ultraja se deixa medrar a sua cabeleira, enquanto que a mulher honra-se deixando-a crescer? E que o cabelo foi-lhe dado por véu”8. Este texto, profusamente lido nas igrejas, é a expressão teológica da misoginia paulina. Começa expondo uma simbologia hierárquica de valor decrescente: Deus, Cristo, varão, mulher, que pretende desenvolver nos versículos seguintes. O varão tem por cabeça, ou seja, por chefe ou senhor a Cristo, que só passa a ser chefe da mulher mediatamente, ou seja, por mediação do varão, que é o seu chefe ou senhor. A seguir formula toda uma série de proposições formalistas e ritualistas totalmente gratuitas e injustificadas racionalmente. O varão que reza velado desonra a Cristo, mas por que? Com a mulher passa ao revés, se reza sem velar-se desonra ao varão, mas por que? A desonra não está na vestimenta exterior senão na atitude, e o que se faz com estes preceitos é sacralizar a superioridade dum sexo sobre o outro, marginando e desprezando a meia humanidade. O varão é imagem de Deus, o qual significa que só ele e não a mulher foi criado a imagem e semelhança do criador, normalmente imaginado como um respeitável varão nalgumas representações plásticas. O varão é um ser que está mais próximo, mais cercão a Deus, ao que pode dirigir-se diretamente, enquanto que a mulher só pode fazê-lo humilhando-se ante o varão, e pondo como sinal de humilhação o véu. Para Paulo a mulher procede do varão e foi criada como ajuda para o varão. A palavra procede pode referir-se ao mito da costela de Adão da que ela seria feita, segundo o mito da criação, ou à procedência biológica individual. Neste último caso, aludiria Paulo à errônea teoria da medicina antiga que considerava a conceição sob o símile semente-terra, a primeira acarretada polo varão, e a terra pola mulher. Neste caso, a mulher só cumpre o papel de criar o que semeia o varão. A conclusão de Paulo, é que a mulher deve velar-se em sinal de sujeição ao seu marido, e esta foi a prática eclesiástica ao longo da história, e as nossas mães e avós velavam-se todas, tal como ainda hoje fazem as islamistas, neste caso, também fora do âmbito eclesial. A resposta às conclusões que formula são uma negação categórica a que pretenda o apóstolo passar por algo natural o que não é mais que misoginia enfermiça. O cabelo não surgiu para fazer de véu nem para o home nem para a mulher, ainda que sim é certo que o varão tem muita mais calvície que a mulher como consequência da maior influência das hormonas masculinas, em concreto da testosterona.  Embora o home seja superior á mulher, os dous formam um complemento, já que a mulher foi criada a partir do varão, mas é também quem o engendra.
               A mulher não pode falar na Igreja. "Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres calem-se nas assembleias, porque não lhe toca a elas falar senão viver sujeitas como diz a Lei. Se querem aprender algo, que na casa perguntem aos seus maridos, porque não é decoroso para a mulher falar na igreja9. Paulo proíbe que as mulheres falem em todas as igrejas fundadas por ele, em base a que devem viver sujeitas e isso, segundo ele, impede-lhes falar. Só lhes queda como via alternativa, perguntar na casa aos maridos, ou seja, instruir-se por intermediário e não diretamente, como pessoas subordinadas que são. Manifesta que é indecoroso que falem, mas não alega razão nenhuma que o justifique.
               Na Carta aos Efésios, repete Paulo estas ideias misóginas e prega a submissão unilateral e não recíproca das mulheres aos homes. “As casadas estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor, porque o marido é cabeça da mulher e salvador do seu corpo. E como a Igreja está sujeita a Cristo, assim as mulheres aos seus maridos em todo10. O trato que o Apóstolo estipula para o home-mulher é a dum superior a respeito do inferior, no qual este deve amostrar submissão e obediência e o superior, paternalismo, benevolência11, e discrição como se dum objeto frágil se tratasse, como diz expressamente o Apóstolo Pedro12. Como deve entender-se que a home é salvador da mulher? Se é de caráter espiritual, qual seria exatamente? Deve entender-se no sentido de que, como a mulher está condenada a buscar ao marido, satisfaz as suas pulsões sexuais? Na primeira carta ao seu discípulo Timóteo amostra-se talhante: “A  mulher aprenda em silêncio com plena submissão. Não consinto que a mulher ensine nem domine ao marido, senão que se mantenha em silêncio, pois primeiro foi formado Adão, depois Eva e não foi seduzido Adão, senão Eva, que, seduzida, incorreu na transgressão13.
               O Evangelho de Maria Magdalena, escrito no século II, de autor desconhecido, revela uma visão e um diálogo que teve com Jesus, testemunho questionado por Andrés e por Pedro, que interrogou os discípulos acerca do Salvador: “«Falou com unha mulher sem que o saibamos, e não manifestamente, de modo que devamos volver-nos e escutá-la? É que a preferiu a ela sobre nós?». Então Maria botou-se a chorar e disse a Pedro: «Pedro, meu irmão, que pensas? Supões acaso que eu reflexionei estas cousas por mim mesma ou que minto respeito ao Salvador?» Então Levi falou e disse a Pedro: «Pedro, sempre foste impulsivo. Agora vejo-te exercitando-te contra uma mulher como se fosse um adversário. Porém, se o Salvador a fez digna, quem és ti para rejeitá-la? Bem é certo que o Salvador a conhece e por isso a amou mais que a nós. Mais bem, pois, envergonhemo-nos e revistamo-nos do home perfeito, partamos tal como no-lo ordenou e preguemos o evangelho, sem estabelecer outro preceito nem outra lei fora do que disse o Salvador14. Neste Evangelho tanto Andrés como Pedro são apresentados com ares de superioridade sobre as mulheres, que seriam pouco fiáveis e de pouca credibilidade em comparação com os varões. Cumpre destacar também o grande amor que sentia Jesus por Maria Magdalena, que Levi supõe que era de todos conhecido, e que alguns entendem que teve também natureza sexual.  
               O papa Bento XVI reafirmou as bases desta desigualdade quando afirmou: se Deus se encarnou num home e não numa mulher isso tem que ter uma razão, e esta só pode ser que o home é mais perfeito que a mulher.

           


1.  FLAVIO XOSEFO, Guerras dos xudeus, Lib. II, cap. VIII, 119.
2.  FILÓN DE ALEXANDRÍA, Hipotéticas (Apoloxia em prol dos xudeus), 11.14.
3.  FLAVIO XOSEFO, Guerras dos xudeus, Lib. II, cap. VIII, 160.
4.    CLEMENTE DE ALEXANDRÍA, Stromata, Lib. III, cap. VI, 45.
5.    CLEMENTE DE ALEXANDRÍA, Stromata, Lib. III, cap. IX, 63.  
6.    CLEMENTE DE ALEXANDRÍA, Stromata, Lib. III, cap. IX, 66.
7.    I Cor. 7, 10-11
8.    I Cor. 11, 3-15
9.    I Cor. 14, 34-35
10.    Ef. 5, 22-24
11.    Col. 3,18-19
12.    I Ped. 3, 1-17
13.    I Tim. 2, 11-14
14.    Evanxelho de María Magdalena, 17-18.