20 ene 2021

Iglesias está brincando com fogo

 Hoje não está aceite impor a censura governamental dos mídia, que na Espanha foi um recurso frequente incluso em tempos da República de 1931, nem se pode acudir ao auxílio da mensagem cristã, sempre disposta a colaborar com o poder, para difundir a «verdade» oficial que deve ser propalada para que seja assumida polas mentes da cidadania, mas não por isso a «veritas hispana» da indissolúvel unidade da nação espanhola, entendida como soberania única e indissolúvel, carece de valedores menos potentes e abundantes recursos: os meios de comunicação tradicionais: rádios, televisões, jornais impressos, a grande maioria dos jornais digitais, os partidos políticos da transição, junto com Vox, e um tropel de jornalistas que se encarregam de instruir a cidadania sobre a verdade que deve imperar em cada caso. Esta verdade e legalidade hispana não só se defende no Estado espanhol, senão que também se pretende que a assuma toda a UE. De modo que, em vez de procurar que se estendam e cumpram os direitos dos povos, incluído o direito de autodeterminação e o direito a defender os seus sinais de identidade, se pretende que se implantem os direitos inversos: o direito dos estados a dominar os povos que convivem no seu âmbito e o direito de impor-lhe a língua, usos e costumes do povo dominante, do que tanto sabia Felipe V.

Iglesias atreveu-se a dizer algo que discrepa da consigna imperante, não sei se somente tácita, que consiste em desprestigiar a todos os líderes dos partidos independentistas e nacionalistas e as suas políticas, especialmente o seu intento de estruturar doutra maneira o poder no estado espanhol. Antes essa teima centrava-se nos que recorreram à violência para conseguir os seus objetivos e afirmava-se que todo se podia defender numa Espanha sem terrorismo, mas, uma vez desaparecida a violência de grupo, à que o poder espanhol retrucou com a violência institucional, como foram os Gal, já não só se ataca o terrorismo, senão as organizações que defendem posições independentistas. especialmente aos chefes e de ai que se lançassem contra ele sem piedade nenhuma todos os partidos e mídia que se movem no âmbito do artigo 155 e à sua direita.

Iglesias disse que Puigdemont não está em Bruxelas por roubar dinheiro a ninguém, como sim fez o rei emérito, e que se fodeu a vida para sempre polas suas ideias políticas. Quiçá seja difícil retrucar isto. Mas o que sim causou muita poeirada é que dissesse que crê que Puigdemont era um exilado como foram muitos que se exilaram durante a ditadura de Franco. Isto é difícil de aceitar porque esfuma o narcisismo espanhol propalado aos quatro ventos de que Espanha é uma democracia exemplar, uma democracia avançada, e que não admite comparação coa a atuação dum régime ditatorial. Mas, se bem é certo que não se pode comparar com o régime de Franco, que tampouco Iglesias o fez, sim se pode dizer que é uma democracia com muitas eivas: politização da justiça, carência duma autêntica divisão de poderes, ter um rei imposto por um ditador, e que o povo espanhol, que é o soberano teórico, nem votou nem pode sequer investigar, que um órgão da soberania popular como é o Governo se atreva a afirmar que quer que pactuar com o monarca a renovação da monarquia, sem consultar nada com o povo espanhol,...

   Parece evidente que Puigdemont é um exilado, ou seja, segundo a RAE Alguém expulso do território; expatriar-se, geralmente por motivos políticos. Quem pode negar que Puigdemont Marta Rovira, etc. se expatriaram por motivos políticos? Não fizeram isto mesmo muitos exilados republicanos, entre eles o grande Castelão? Ou temos que corrigir a história para que encaixe nos moldes dos espanholistas? Os exilados do franquismo são muitos e muito diversos, e muitos marcharam dum modo semelhante a Puigdemont. A ministra Montero afirmou que a diferença entre Puigdemont e os republicanos está em que o primeiro quebrantou a lei. Mas que lei? A norma que impedia celebrar um referendo foi derrogada. A justiça europeia falhou que não se respeitaram, parece que adrede, os seus direitos a ter um juiz predeterminado por lei, é evidente que os falhos judiciais pretenderam dar-lhes um escarmento e que os mantêm na prisão por falta de arrependimento, segundo a confissão de juízes e fiscais, ou seja, por ideias heterodoxas.

 

 

Viva Amâncio Ortega!

 Faz alguns meses que se levantou uma grande polêmica a propósito duma doação de 320 milhões de euros para a sanidade espanhola, que certos comentaristas e organizações políticas consideraram improcedente porque implica viver da caridade, ao tempo que outros demandaram praticamente um desagravo a esta magnânima personagem.

                Vai já para alguns anos, numa campanha eleitoral acercou-se a mim um militante de SAIN (Solidariedade e Autogestão Internacionalista), um partido meramente testemunhal de inspiração cristã, e que se move nas coordenadas da sacristia e da esquerda antimarxista e centralista, nisto último muito em consonância com a sua procedência. Dissera-me que era intolerável a exploração que estava praticando Amâncio Ortega. A minha resposta foi perguntar-lhe porque centravam a sua fobia neste empresário galego, e creio lembrar que me falaram das empresas que destruía e da deslocalização da produção a outros países. Eu disse-lhes que isso é próprio de todo o capitalismo transnacional e se estavam tão interessados em lutar contra isto, não devem focar o problema numa pessoa, que iniciou os seus exitosos negócios nesta terra, senão no que está a acontecer com a dinâmica dos grandes capitalistas.

                 Amâncio Ortega não é nenhum ladrão, que eu saiba, senão que aproveita, em benefício próprio, as facilidades legais de apropriação de plus valor que lhe dá o sistema político espanhol, europeu e mundial, que permite uma acumulação de capital nunca antes conhecido na economia. Se um empresário não aproveita estas vantagens, estaria jogando em desvantagens frente aos seus competidores, que o levariam progressivamente à sua desaparição como empresa. Portanto, todas as empresas têm que procurar não jogar em desvantagem com as demais, por necessidade de subsistência. Este não é um problema ético de bondade ou malícia das pessoas, senão um problema econômico e político.  

                 Creio que cumpre reconhecer que as desigualdades sociais são em certo modo naturais no sentido de que ainda que todos valhamos para algo não todos valemos para o mesmo, mas todos devemos ter garantidas as necessidades básicas elementais. Umas pessoas podem realizar-se no trabalho, e eu conheço pessoas que estão mais contentos na sua empresa que numas vacações na Galiza, na Espanha ou num país estrangeiro. Outros gostam de viajar quando lho permitem os seus ingressos e não ter problemas, etc. etc. Ora bem, o que é, a todas luzes improcedente são as diferenças abismais que existem a nível mundial entre umas pessoas e outras, muito prejudicial à longa para o próprio sistema.   

O número de multimilionários incrementou-se escandalosamente nas últimas décadas: de 423 que havia no ano 1996 passou-se a 2095 em março de 2020, e a sua riqueza equivale ao 12 por cento do PIB de todo o planeta, enquanto que em população somente representam o 0,00003 por cento. Aliás, o patrimônio dos mais ricos não deixa normalmente de agrandar-se, ainda que em 2020 tiveram um retrocesso, como todas as demais capas da população, devido ao coronavirus. É evidente que se os demais lhe compram menos, eles vendem menos e ingressam menos. E isto serve-nos para tirar a conclusão seguinte: se os consumidores são quem os engrandecem, algum direito terão a ser recompensados em contrapartida da sua contribuição á riqueza dos empresários. Temos, em consequência, que pôr em valor o status de consumidor reforçando o seu valor e o seu contributo à viabilidade do sistema. Os empresários mais ricos, entre os quais figura Amâncio Ortega neste momento no posto 9º, costumam fazer doações muitas vezes muito generosas, para o standard duma pessoa do comum, que têm como consequência, independentemente da intenção pessoal, provocar uma reação de agradecimento por algo que se considera não-devido. Mas uma sociedade deve fundamentar-se nos direitos das pessoas, e não nas esmolas, porque uma sociedade de esmoleiros não é uma sociedade digna.

Muitos destes grandes ricos, aproveitam-se da engenharia fiscal em benefício próprio pagando menos em termos porcentuais que uma pessoa de classe média baixa e da deslocalização de empresas para incrementar os ganhos; recorrem à fabricação de produtos kleenex, muito presente no caso de Amâncio Ortega, em conflito com a luta em prol da saúde do planeta e ao recurso aos paraísos fiscais para manter o seu dinheiro a bom recato, ou acodem também à obsolescência programada para converter os clientes em contribuintes periódicos para incrementar as suas ganâncias, incrementando o consumo além da razoável, etc. Temos ainda que humilhar-nos e reverenciá-los porque nos dão uma esmola de vez em quando?