30 mar 2019

Espanha deve pedir perdão?


            Os conflitos com Latino-América sucedem-se periodicamente. Os da minha idade podem lembrar-se bem da enorme gafe diplomática do embaixador espanhol na Habana, Juan Pablo de Lojendio, marquês de Vellisca, que, considerando que todo é ourego, se apresentou nos estudos da Televisão cubana para repreender pessoalmente dum jeito visceral e impertinente ao líder máximo da revolução cubana Fidel Castro, por ter acusado ao governo espanhol e ao citado embaixador de conspiração e ajuda aos contra-revolucionários. Visivelmente irritado manifestou: «Quero falar aqui, porque se me caluniou»”. Às palavras do moderador de que tinha que pedir permisso, retrucou: «Isto é uma democracia e o senhor moderador é quem dirige», ou seja, o colmo do desatino e da impertinência. Castro, pola sua parte, também irado, manifestou: «Vai-me falar de democracia o embaixador da maior ditadura de Europa!». Os encontrões com Castro foram constantes na etapa do governo Aznar, nos que reluziu o seu ar de superioridade o governante espanhol, como quando, depois dum intercâmbio de gravatas, presumia que a sua gravata era melhor que a dele. «Fidel levou uma das melhores gravatas que se pôs nunca».

            O 21/11/207 fez-se célebre a cominação impertinente do rei João Carlos I ao presidente de Venezuela Hugo Chavez, dizendo-lhe:  «Por que não te calas?», que parece delatar um grande sentimento de superioridade sobre o mandatário de Venezuelano, e isto a todo um presidente dum país. As críticas constantes e o clima mediático adverso com esta república foi uma constante na etapa dos governos de Rajoy, que só serviu para enrarecer o ambiente entre os dous países, que repercute muito negativamente sobre os cidadãos galegos e espanhóis naquele país. Mas a fase aguda destas desavenças foi o alinhamento do governo de Sánchez com o de Estados Unidos para sacar pola força do poder ao presidente Nicolás Maduro, ao que não se lhe intui outra motivação que apoderar-se das enormes riquezas que alberga este país. Se os EEUU e Espanha querem autêntica democracia têm trabalho no seu país. O conflito catalão põe de relevo as enormes debilidades da democracia espanhola e a falta duma autêntica divisão de poderes, mas isto não é óbice para que os políticos espanhóis do 155 dêem lições de democracia a destra e sinistra. Esta míngua na divisão de poderes quer compensar-se com a propaganda, mas isto não chega, porque é impossível ter divisão de poderes quando os membros da cimeira da judicatura são elegidos polos representantes dos partidos políticos, até o momento presente do bipartito, que se pelejam ente si a ver quem nomeia um representante mais que o outro. Se é como dizem, que nos expliquem estas leias para controlar o poder judicial. Todos sabemos que quem nomeia os cargos vai ter poder para controlá-los.

            O processo de descolonizaç4ao das colônias hispanas produziu-se dum modo traumático e violento, porque o império espanhol nunca quis dialogar sobre as demandas que lhe transmitiam de América. Isto deu como resultado uma convivência difícil depois da independência, cheia de tensões e conflitos, e com uma tendência do Estado espanhol a intrometer-se nos assuntos internos dos países latino-americanos, e inclusive, nos nossos dias, de confluir com o imperialismo estadunidense para impor regimes do seu interesse, como se pôs de relevo no caso de Cuba e Venezuela. Com esta finalidade, não duvida o ex-falangista e promotor com mentiras da guerra do Iraque Aznar fazer-se passar por modelo de democrata.

            O que acabamos de relatar é pecata minuta se o comparamos com o que aconteceu durante a fase da colonização, que recebe o nome de descobrimento, que muitos consideram um autêntico genocídio, mas não só os críticos tradicionais com Espanha, senão também os próprios cronistas espanhóis, salvo que, por uma deformação intelectual, não consideremos como tais aos freires relatores da colonização de América, como Antônio de Montesinos e Bartolomeu das Casas. Alguns dirigentes políticos, como o Sr. Borrell não se lhe ocorre nada melhor que comparar o citado genocídio cometido com os índios americanos indefensos e sem capacidade nenhuma de reação com a guerra da independência de 1808 contra os franceses na que pelejavam dous exércitos profissionais. Polas mesmas razões, tampouco é comparável este caso com as guerras seculares entre cristãos e muçulmanos, que receberam o nome de reconquista.

            No processo de colonização de América atuaram ao uníssono a Igreja e o Estado para impor:
            - A redução a escravidão dos índios americanos, na que a força coativa era exercida polo estado e a ideologia era abençoada polo cristianismo. O papa Nicolau V promulgou a bula Dum diversas, o 18/06/1452, pola que autorizava o rei Afonso V de Portugal a reduzir à escravidão os muçulmanos (sarracenos), pagãos e os outros incrédulos a escravidão perpétua. O papa, após expressar a sua habitual queixa contra os inimigos da fé, que buscam eliminar a religião cristã, e declarar que o faz inflamado polo ardor da fé e fortificado com o amor divino,... escreve “concedemos-te  por este edito, devido à autoridade apostólica, poder total e livre para invadir, conquistar, dominar, subjugar os sarracenos e pagãos e outros infiéis e outros inimigos de Cristo, e onde quer estabeleceram os seus reinos, ducados, palácios reais, principados e outros domínios, países, lugares, quintas, campos e qualquer outras possessões, bens móveis e imóveis achados em todos estes locais... e reduzir as suas pessoas a escravidão perpétua e apropriar-se reinos, ducados, palácios reais, principados e outros domínios, possessões e bens de todas classes para ti e o teu uso e os teus sucessores os reis de Portugal”. Esta bula é uma clara demonstração da conivência da cruz e da espada, que pretende facilitar o colonialismo mais desapiedado de submissão doutros povos em benefício mútuo. O rei obtém novos territórios que lhe vão permitir estender o domínio temporal a mais países e incrementar os ingressos das arcas públicas, e a Igreja novos aderentes que compartam o discurso único em aras de liderar o domínio espiritual das consciências e procurar uma nova fonte de tributos para a Igreja. Esta faculdade de escravização foi ratificada e estendida a outros territórios na bula Romanus Dominus, de 5/01/1455, dirigida por Nicolau V ao mesmo rei Afonso. Consagra-se assim a redução à escravidão aos indígenas de África, que foi o início do tráfico massiva de escravos a América, bula que consagra o domínio colonial temporal de Portugal em África, que vai fundamentar posteriores reclamações territoriais de Portugal, mas que vai chocar com os interesses da outra potência colonial ibérica nesse momento, que a vai impugnar.

            - O tandem da espada e da cruz de Espanha e o Portugal também exportou a Latino-América a instituição da inquisição com a finalidade de semear o terror na população com a pretexto de que o primeiro era salvar a sua alma, e na década de 1560 a inquisição decidir trasladar-se a América, e em 1572 os membros da inquisição de México chegaram a Veracruz, ao mando do inquisidor em chefe Pedro Moya de Contreras. O terror e a hipocrisia começaram a estender-se polo continente americano, afetando também agora às fações dissidentes do catolicismo, os protestantes. O catolicíssimo rei Felipe II estava muito interessado em outorgar um poder mundial à instituição espanhola, e do que se tratava era de que ninguém estivesse livre de suspeita e que se lograsse instaurar a cultura do medo. Toby Green relata como se produzia o processo de redução as escravidão uma vez que a inquisição começou a atuar em América. Os prisioneiros nativos eram trasladados “encadeados em grupos de até mil e, uma vez que chegavam às minas eram obrigados a trabalhar sem paga e com rações exíguas. Para castigar a estes escravos podia castrá-los, derreter-lhe graxa de porco com uma vela e deixá-la cair sobre a sua pele, cortar-lhes uma orelha, uma mão ou uma perna, ou forcá-los

            - Os maus tratos que recebiam os nativos é descrito por Frei Bartolomeu das Casas num sermão pronunciado o 21/12/1511 nos seguintes termos: “Todos estais em pecado mortal e nele viveis e morreis, pola crueldade e tirania que usais com esta inocentes gentes. Dizei, com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão a estes índios? Com que autoridade tendes feito tão detestáveis guerras a estas gentes, que estavam nas suas terras mansas e pacíficas, onde tão infinitas delas com mortes e estragos nunca ouvidos tendes consumido? Como os tendes tão oprimidos e fatigados, sem dar-lhes de comer e curá-los nas suas doenças, que dos excessivos trabalhos que lhes dais incorrem e se vos morrem, e por melhor dizer os matais, por sacar e adquirir ouro cada dia? E que cuidado tendes de quem os doutrinem, e conheçam o seu deus e criador, e sejam batizados, ouçam missa e guardem as festas e os domingos? Estes não são homens? Não têm ânimas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Isto não entendeis, não sentis? Como estais nesta profundidade de sonho tão letárgico, dormidos? Tende por certo que, no estado em que estais não vos podeis mais salvar, que os mouros e turcos que carecem e não querem a fé de Jesus Cristo”

            Deve Espanha pedir perdão? A nível legal não tem nenhuma obrigação, mas outra cousa é que a obrigue a isso, mas outra cousa é se, tendo em conta a história da colonização e o exemplo dado polo Pontífice de Roma e que os excessos cometidos por Espanha forma horrendos, não lhe seria mais conveniente fazê-lo para que esse passado não assumido como o que realmente foi, não perturbe as relações com uns povos que para os ibéricos devem ser sócios fraternos enquanto ligados a nós por uma língua e cultura comum. Deve evitar-se falar de descobrimentos e de dias da raça e da hispanidade, exaltada a festa nacional e que não se sabe que bem que pode significar e que trai lembranças que estes povos não podem passar por alto. Deve também isto servir de reflexão sobre a política que se está a aplicar com Catalunha e com todos os demais povos do Estado espanhol aos que se quer obrigar a conviver conjuntamente numas condições forçadas que eles não estão dispostos a aceitar. A convivência comum é possível se se criam as condições que os conviventes aceitem voluntariamente, mas uma imposição forçada parece que não vai dar resultado.

18 mar 2019

Bravo por Greta Thunberg!


                Grandes iniciativas ficam se desativadas se não surge um ou uma líder que aglutine as vozes dispersas e lhe dê o eco que precisam para calar na opinião pública e converter-se num movimento de massas, único jeito de incidir nas consciências e propiciar um câmbio de tendência no organismo social.

                A luta contra o câmbio climático é o problema mais importante com o que se enfrenta a humanidade nos nossos dias porque se o planeta se volve inabitável todo o demais sobra, e surpreende a lentidão com a que se tomam as medidas precisas para deter essa deriva cara ao precipício da que vem insistindo a ONU desde faz já algum tempo. Num informe desta organização de data 15/03/2019 declara que o 95 por cento da população mundial vive numa nuvem tóxica, e, portanto, respira ar contaminado. Alerta que se não se incrementam drasticamente as proteções ambientais poderiam produzir-se milhões de mortes prematuras, cara ao ano 20150, nas cidades de Ásia e África, e insiste em que cumpre transitar cara a um desenvolvimento sustentável.

                O reto ao que nos enfrentamos é de primeira magnitude e continuamos caminhando a passos de tartaruga para remediar a hecatombe. A isto há que acrescentar a grande insensibilidade das elites econômicas e políticas, especialmente de países como os EEUU de América em que a Administração Trumpo se dedica a negar o problema e pretende que os outros países corram com o custo dum problema criado, em grande parte, precisamente por ela, por ser este país o segundo maior contaminante do planeta. As elites oligárquicas, por uma parte, fazem negócio a custa da venda de combustíveis fósseis que inundam a atmosfera de CO2, NO2 e metano (CH4), que é um gás que atrapa 20 vezes mais o calor que o dióxido de carbono, e pola outra, beneficiam-se da luta contra o câmbio climático que realizam os demais.

                A solidariedade inter-geracional é um conceito básico em ética, porque não é correto fazer o que à geração atual lhe acomode e às vindoiras que as parta um raio. Assim como não podemos desentender-nos dos que hoje o passam mal, tampouco podemos deixar-lhe às gerações futuras um mundo inabitável. Outro princípio que deveria abrir-se passo com presteza é o câmbio de mentalidade sobre o mundo que nos rodeia: mineral, vegetal e animal infra-humano. A ética tem que ser global ou não é nada. Os vegetais fazer possível a vida na terra e os animais são seres sencientes que são os nossos companheiros de viagem. Isto implica que é um atentado contra eles tratá-los como meros instrumentos do nosso prazer e dos nossos passatempos. A caça, as corridas de touros e as pelejas de cães e galos colidem com uma consciência ecológica lúcida e respeitosa com os direitos dos animais, especialmente dos sencientes. O cuidado das árvores, a preocupação polo equilíbrio dos elementos que constituem o meio ambiente e, consequentemente, a luta contra a degradação do solo, a contaminação, o consumo excessivo de auga, a degradação da atmosfera e a preservação da biodiversidade constituem também o eixo básico duma ética ecológica.

                Entre as medidas que propõe a ONU figura a diminuição do consumo de carne, porque a cria de gado produz anualmente uns 115 milhões de toneladas de gás metano nos processos de nutrição animal. O simples eructo duma vaca produz entre 80 e 120 quilos de metano ao dia, devido a que têm no intestino baterias que o produzem na fermentação do processo de digestão.

                A sensibilidade das pessoas continua sendo deficiente, incluso de pessoas que lecionam aulas e que pola sua profissão estão obrigadas a formar-se uma ideia desta ameaça para a humanidade. Foi especialmente sintomático que todo um catedrático de física, coirmão do anterior presidente do governo negasse o câmbio climático pretextando que se não podemos predizer o tempo que faz amanhã, como imos saber se existe câmbio climático? Em base a esse negacionismo de todo um catedrático de física, Rajoy sentenciou que “o câmbio climático tampouco o podemos converter no grande problema mundial”.

                A nível político não se tomam as decisões necessárias para preservar o planeta vivo com a rapidez que seria de desejar. Os políticos, tendo em conta que o movimento dos coletes amarelos na França se desencadeou como protesta contra um imposto ao carbono, não se atrevem a tomar as medidas precisas para procurar deter os efeitos perversos do câmbio climático: secas e inundações mais frequentes, ciclões, suba dos níveis da auga dos mares, perda de biodiversidade,... Entendo que, em realidade, a luta na França, que depois se estendeu a outros países europeus, não se deve tanto ao imposto citado senão à situação de precariedade dos trabalhadores europeus que não são capazes de levar uma vida digna, ao tempo que as elites econômicas amassam a cada passo mais dinheiro com a cumplicidade dos seus corifeus políticos. A gente assume normalmente as medidas necessárias para deter o desarranjamento do clima e do meio ambiente, mas exigem que as oligarquias também façam sacrifícios.

                Os governos do PP foram especialmente insensíveis na luta contra o câmbio climático. Implantaram o imposto ao sol para beneficiar as elétricas e não tomou nenhuma medida para implantar os veículos elétricos. Na Galiza, paralisaram o concurso eólico que atrasou o desenvolvimento das energias renováveis, enviando-lhe uma mensagem errônea à cidadania. A política florestal é insatisfatória porque fomenta a implantação intensiva de espécies pirófilas, de plantas que favorecem os incêndios florestais.

                O governo espanhol do PSOE deu-lhe um impulso à luta contra o câmbio climático: eliminou o imposto ao sol, anuncia medidas de encerramentos das centrais de carbono e também obrigaram que as gasolineiras instalem carregadores de baterias para veículos em 2020, mas não foi capaz de aprovar o decreto sobre contadores individuais de calefação apesar de ter o projeto preparado desde o mês de setembro de 2018. Suponho que será por medo a que aqui se estenda o movimento dos coletes amarelos. Isto impede que as comunidades de vizinhos não se decidam a tomar medidas de eficiência energética, por aquilo de que é melhor esperar e ver como queda.

                Greta Thunberg, uma mocinha sueca de 16 anos, diagnosticada como com o síndrome de Asperger, que se engloba dentro do Espectro de Transtorno Autista, que, no seu caso se carateriza por ver o mundo em branco e negro, ter dificuldade para fingir e mentir e desinteresse polos jogos sociais, converteu-se no ícone da luta contra o câmbio climático. Desde agosto de 2018 vem protagonizando greves todos as sextas feiras, e logrou que a sua sensibilidade se estenda-se já aos moços e moças de muitos países. Em mais de 270 cidades já se produziram manifestações secundando os seus objetivos. Não podemos por menos de transmitir-lhe os meus parabéns, ademais de pola sua inteligência e serenidade na exposição, por ter aglutinado uma parte significativa da juventude mas sensível dos nossos numa luta que merece a pena, porque é uma luta polo bem-estar da sua geração e das que lhe sucederão. Este despertar juvenil por uma causa justa e vital para o porvir do planeta, une-se ao despertar das mulheres para lograr a igualdade de direitos a nível social com o varão.

5 mar 2019

Misogínia, misossexualidade e misocósmia Tertuliano


Em solidariedade com a luta pola igualdade das mulheres

            Assistimos nos nossos dias a uma cerimônia da confusão e de impotência na igreja, incapaz de reagir perante o enorme mal-estar das mulheres pola sua situação de inferioridade, subordinação e violência que padecem frente ao sexo masculino. Esta instituição está tão condicionada polos seus documentos fundacionais, que poderíamos denominar a sua constituição, integrada pola Bíblia, o magistério eclesiástico e a escritos dos chamados Santos Padres, que corre o risco de rachar-se se toma alguma medida para remediar esta sanguinolenta situação de discriminação salarial e social frente ao homem. Hoje imos falar da misoginia, misossexualidade, misohedonismo e misocósmia, ou seja do ódio às mulheres, ao sexo, ao prazer e a este mundo e da subordinação e inferioridade da mulher num dos teólogos que exerceu grande influência no cristianismo, ainda que tecnicamente não seja considerado como um Santo Padre por ter abandonado a Igreja.
            O cartaginês e brilhante polemista, Tertuliano (ca. 160-225), chamado o pai da cristandade latina e o fundador da teologia ocidental, converteu-se ao cristianismo cara ao ano 197, que abandonaria dez anos depois para integrar-se na seita rigorista do montanismo, que também abandonaria para fundar a sua própria confissão. Como apologista, combateu diversas «heresias»: marcionitas, valentinianos, nicolaítas,... Esteve casado, mas converteu-se em ardente defensor do celibato e inclusive da castração em seguimento do que diz Jesus em Mateo, 19,12 a propósito dos que se fazem eunucos polo reino dos céus.  Segundo Shaum Tougher, Tertuliano utiliza os termos castratus, eunuchus e spado (castrado, eunuco (em grego) e eunuco (em latim) algumas vezes como  intercambiáveis. No livro Ad Uxorem, faz um panegírico da continência num contexto plenamente misossexual, de desprezo do sexo, no que este aparece como um estorvo para achegar-se à divindade. Os que não estão casados não devem casar e os que o estão devem viver como se não o estivessem, e os que perderam a sua parelha não devem volver casar. “Quantos não ha que, por mútuo consentimento suprimem os deveres do matrimônio, eunucos voluntários, para conquistar melhor o céu! Se se abraça a continência no matrimônio, com quanta mais razão cumpre impô-la quando a morte o rompeu?”. O ódio ao sexo é tal que não se recata em emendar a obra divina, tal como o cristianismo a entende, que criou seres sexuados e dotados de libido para segurar a procriação. No livro De cultu feminarum volve insistir na continência sexual, que tem uma das  suas múltiplas raízes no Apóstolo Paulo, e carga contra o ornato feminino. “Se o Apóstolo ordena aos maridos viver com as suas esposas como se não as tivessem, que pensaria dos ornatos vãos dos que se carregam? Não é por este motivo e a causa do reino de Deus que muitos se convertem em eunucos, renunciando com uma vontade tão firme e confiada a prazeres imperiosos dos que o uso puder ser legítimo?”. O que autoriza aos cristãos a obrar deste modo é a  sua predestinação por Deus para abolir os princípios mundanos, desde uma posição misossexual, misohedonista e misocósmica, de radical ódio deste mundo. “Nós somos aqueles para os que transitaram os fins dos séculos; destinados por Deus antes do juízo dos tempos, somos instruídos por Deus, como castigar e castrar, como disse, o mundo. Somos a circuncisão de todos, espiritual e carnal. Pois circuncidamos no espírito e na carne a mundanidade”. Temos condensado em poucas palavras a animadversão do cristianismo por este mundo, polas paixões, polos prazeres, porque o mundo cristão é um mundo lúgubre, um mundo de trânsito que odeia o estádio presente em aras dum futuro imaginário que seria o mundo autêntico, um mundo, em definitiva, que denigra a sabedoria e bondade do seu criador. Deus situou ao ser humano neste mundo para que o odiasse e escapasse dele e todo gozo dos escassos prazeres e satisfações que este mundo nos dá é visto como suspeitoso de pecado e de transgressão.
            No Véu das Virgens, partindo da, para ele, natural inferioridade da mulher, submetidas em todas as cousas ao homem, critica que estas não se velem e que levem marcas que as distingam das demais mulheres e a razão é que os homens não o fazem: “Polo demais, seria uma cousa bastante estranha que as mulheres, submetidas em todas as cousas ao homem, levassem como sinal de honor uma marca da sua virgindade que atraísse a atenção e o respeito dos seus irmãos, enquanto que tantos homens virgens, tantos eunucos voluntários, estariam limitados a esconder a sua virtude, não levando nada que os possa distinguir”. Podemos observar que neste texto, Tertuliano cita a submissão total das mulheres ao homem em todo, que ele considera normal e não a condena, ao tempo que acredita na existência de muitos eunucos voluntários, dos que louva a sua virtude, e, por tanto, aprova implicitamente esta prática, que confirmaria a sua adesão à mensagem de Jesus a este respeito. Estes eunucos voluntários são distinguidos claramente dos celibatários ou virgens, e, por tanto, trata-se de pessoas emasculadas fisiologicamente. Descreve outro traço que é importante como princípio hermenêutico, que consiste na ocultação da castração.
            Em Exortação à Castidade, faz um novo alegado em prol da vida de castidade, aconselhando não casar ou fazê-lo com uma esposa puramente espiritual, ao tempo que critica aos que se opõem à eleição deste modo de vida: “Eu sei com que pretextos coloreamos a nossa insaciável cobiça da carne. A necessidade duma assistência, uma casa a  governar, servidores a conduzir, armazéns e chaves a guardar, obras de lã a distribuir, gastos aos que ha que atender; eis o que alegamos. Com efeito, não andam bem administradas mais que as casas dos homens casados! Todo vai mal com os celibatários; os bens dos eunucos perecem; a fortuna dos soldados é dilapidada; os viageiros sem esposas estão arruinados! Esquecemos pois que nós somos também soldados, soldados submetidos a uma disciplina tanto mais severa quanto a nossa casa é mais  grande? Não somos nós viageiros neste mundo? Por que pois esta disposição, ó cristão, que ti não possas viver sem esposa?̋. A vida neste mundo é de trânsito e o melhor é viver sem esposa. A luta contra a carne, de por si pecaminosa, em contra do espírito, leva a este autor a optar por um amor platônico, emendando a natureza humana, da que as paixões, impulsos, sentimentos, pulsões, etc. som um constitutivo natural e propõe um modo de vida de pessoas herméticas entre si vivendo uma vida de castidade, que é a que nos faz santos já neste mundo.
            No livro primeiro Contra Marcião, escreve: “Si, Marcião, ti és mais odioso que as bestas daquela barbárie. Com efeito, que castor é mais castrador da carne que  quem destruiu as núpcias”. Em contra do que afirmava no texto anterior, neste indica claramente que quem condena ou destrui o matrimônio, como Marcião de Sinope (85-161 e,c.), é um castrador da carne. Apresenta-se, pois, Tertuliano como um defensor do matrimônio, frente ao ataque a ele de Marcião, que só batizava os que não estavam casados: virgens, viúvas, celibatários, divorciados e eunucos.
            Em Sobre a Monogamia posiciona-se entre os que chama heréticos e os psíquicos; os primeiros repudiam o matrimônio, não se casam nem uma vez; os segundos não só uma vez. Ele considera que o seu posicionamento é um justo termo médio, que ele denomina espirituais. “Entre os eunucos alheios e os teus aurigas tanto te lamentas do serviço doméstico quanto do desprezo alheio; portanto ofendem os que abusam como os que não usam. Em verdade nem a continência se deve louvar porque é herética nem defender a licença, porque é psíquica; aquela blasfema, esta entrega-se à luxuria; aquela destrui o deus das núpcias, esta ofusca-o
            Nesta mesma obra afirma Tertuliano que Jesus era um eunuco, igual que o apóstolo Paulo: “Mas se a monogamia é onerosa, também o é a descarada doença da carne; mas, se também é nova é o que imos ver agora. Dizemo-lo mais amplamente: embora que o Paracleto estabelecesse no dia de hoje uma total e sólida virgindade ou continência, de modo que não permite apaziguar com umas núpcias únicas o fervor da carne, assim também nada novo parece induzir-se, tendo em conta que o mesmo senhor lhe abriu o reino dos céus aos eunucos sendo ele também eunuco; em quem fixando-se, o apóstolo, ademais sendo ele castrado, preferiu a continência. mas deixando a salvo, dizes, o direito de casar. (ipso domino spadonibus aperiente regna caelorum ut et ipso spadone, quem spectans et apostolus, propterea et ipse castratus, continentiam mavult. 'Sed salvo', inquis, 'iure nubendi') Totalmente a salvo e veremos até onde; não obstante o destruiu naquela parte em que prefere a continência. É bom para o homem não aproximar-se a nenhuma mulher, logo é mau acercar-se, pois não ha nada contrário ao bom mais que o mau. Portanto fica (a dizer), que os que tenham mulheres obrem como se não as tivessem, e tanto mais os que não as têm não devem tê-las. Explica também as causas porque aconselha isto, que os não casados pensem sobre Deus, mas os casados que cada um se satisfaça no seu matrimônio. E podo suster que não somente é bom o que se permite, senão que o que se permite não é puramente bom, pois o que é puramente bom não se permite senão que ademais é lícito. A permissão tem alguma vez por causa a necessidade. Finalmente nesta classe não há vontade do permissivo de casar, senão que quer outra cousa: quero que vós, diz, todos sejais como eu”. Apresentamos este longo texto por crer que é indicativo do pensar da Igreja a través da sua história. Em primeiro lugar, Tertuliano opta pola monogamia, entendida como o facto de possuir uma mulher única, tanto simultânea como sucessivamente, e, por tanto, condena as segundas núpcias em caso de que lhe morra a um dos esposos o seu companheiro/a. Esta era a posição dos montanistas, mas não foi seguida no futuro pola igreja oficial, que terminou tolerando as segundas núpcias ainda que de mal grau. Em segundo lugar, assume a ideologia platonizante do ódio contra a matéria, contra o corpo, contra a carne, emendando a própria obra divina. Em terceiro lugar, apesar de reconhecer que o impulso sexual não se logra apaziguar com umas únicas núpcias, a única solução que oferece é a continência, pois, segundo ele, igual que Deus é único, o matrimônio também deve ser único. Em quarto lugar, acredita que Deus também acolhe aos eunucos no reino dos céus, como escreve o Trito-Isaías. Em quinto lugar, declara que tanto Jesus como o Apóstolo Paulo eram eunucos, no sentido fisiológico de castrados, palavra esta última intercambiável para ele com eunuco neste texto. Em sexto lugar, sustém, como tradicionalmente a Igreja, que a continência é preferível ao matrimônio, se bem permite este, não como um bem verdadeiro, senão só  em aras à procriação da espécie, que seria a única finalidade da união matrimonial. Inclusive ousa manter que os que têm mulher devem obrar como se não a tivessem, o qual poderia ser um tema para um debate dum cursinho pré-matrimonial. Em sétimo lugar, já aparecem nele a razão que fundamenta tanto o celibato como o eunuquismo, que é a dedicação total a Deus, melhor seria dizer à Igreja, que seria incompatível com as preocupações matrimoniais.
            Muitos exegetas cristãos interpretam que Jesus se refere neste texto ao celibato, à virgindade, mas isto não tem fundamento e inclusive o apóstolo Paulo parece refutá-lo claramente quando diz que “a respeito das virgens não tenho preceito do Senhor”. Por conseguinte, Jesus, segundo Paulo, não disse nada a respeito do celibato. Tampouco é verdade, como veremos, o que dizem vários exegetas que os Padres da Igreja e os Escritores Eclesiásticos entendiam o terceiro suposto dos eunucos em referência a pessoas celibatários.
            Jesus aconselhava a castração polo reino dos céus, e agora Tertuliano indica que tanto ele como Paulo eram eunucos, e deste último precisa expressamente que estava castrado. Não sabemos quais são as fontes que lhe permitem a Tertuliano afirmar que Jesus era um eunuco, se bem poderia recolher uma tradição oral presente no seio da Igreja. Alguns autores afirmam que o mesmo Jesus foi acusado em vida polos seus adversários de ser um eunuco, mas eu não achei nenhum documento dos primeiros tempos que o acredite. Creio que se pode afirmar com todo fundamento que Jesus era um eunuco polo menos espiritual, no sentido de que optava claramente, a nível ideológico, pola castração em aras do reino dos céus, e que isso era o que ele recomendava aos seus discípulos, mas é uma questão aberta se estava castrado ou não, ainda que a sua conduta a respeito do sexo com mulheres, faceta  totalmente enigmática, oculta, e inexistente segundo vários autores eclesiásticos, e o seu trato com elas, indiferente, distante, salvo os seus episódios com a Magdalena, numa sociedade que considerava ter filhos como uma benção de Deus e a eleição exclusiva de homens como discípulos, a misoginia dos essênios da que ele quiçá participou, indicam que podia ser esse o motivo, embora também é provável que Jesus for mais bem misossexual e miso-nupcial ao estilo dos essênios.
            O professor medievalista da Universidade de São Diego, Mathew Kuefler, especialista em temas de sexualidade, considera que “se Jesus estava familiarizado com os galli e as suas auto-emasculações como práticas religiosas, então é polo menos possível que as suas palavras eram tencionadas literalmente e que ele estava recomendando aos seus seguidores varões que se castrassem fisicamente a si próprios”. Tem presente este autor a animadversão que sentia o que ele chama a aristocracia romana pola auto-emasculação que punha em questão a possibilidade de penetração do cristianismo no Império Romano e que, portanto, cumpria suprimi-la, por muito que estivesse apoiada na autoridade de Jesus. A supressão consistiu em mudar o seu sentido literal polo alegórico, passando os devotos a serem uns castrados espiritualmente. Entendo que mais que de aristocracia haveria que falar das elites cultas e/ou sensíveis, pois muitas pessoas das elites econômicas altas tinham, no Império Romano, eunucos ao seu serviço. Além disso, creio que é pouco instrutivo falar de que é possível que as palavras de Jesus pretendiam ter um sentido literal, pois possível é quase todo. Creio ademais que ha um dado que o professor citado não tem em conta que é a legislação romana formalmente oposta à auto-castração, e muito especialmente ao controle da natalidade, que explica que Jesus não pudesse falar abertamente e se refugiasse nas palavras crípticas: «quem poda entender que entenda», que nenhum comentarista cristão é capaz de explicar satisfatoriamente. Se temos em conta que é polo menos raro que um no mesmo texto misture o sentido literal com o alegórico, a conduta distante, desprezativa e indiferente de Jesus a respeito do sexo, a sua crença de que o fim do mundo está próximo, e a prática eclesial no cristianismo primitivo, creio que podemos concluir que Jesus estava recomendando a auto-emasculação física, que lhe estava a inculcar o ideal do eunuquismo, e que inclusive, se ele se estava a referir-se a si mesmo no terceiro suposto de eunucos, como afirma Tertuliano, que ele fosse também um eunuco, não só no sentido espiritual, que creio que é claro, senão também no sentido físico, se bem não temos a este respeito mais que alguns elementos indiciários e não provas conclusivas.
            A razão profunda alegada por Tertuliano para a prática da emasculação é a crença, tão presente no cristianismo primitivo, recebida de Jesus, de que o fim do mundo está próximo, e isso invalida o preceito veterotestamentário «crescei e multiplicai-vos», e explica o câmbio na valoração dos eunucos, que foram convidados ao reino dos céus. “Pois depois que o fim dos tempos volveu inútil este preceito: «Crescei e multiplicai-vos»; depois que o Apóstolo disse: «Que vos queda por fazer, senão que aqueles que têm esposas sejam como se não as tivessem, porque o tempo da recoleção chegou e a uva verde, comida polos pais cessou de irritar os dentes dos meninos, pois cada um morrerá no seu pecado», desde esse momento não só os eunucos não estão já submetidos ao opróbrio, senão que mereceram a graça e foram convidados ao reino dos céus”.
            Neste mesmo livro apresenta a Cristo como o novo Adão, ao que o cristão deve parecer-se, que é um modelo tanto mais perfeito quanto mais íntegro, “Mais dada à enfermidade da tua carne, o exemplo da sua, o Adão mais perfeito, ou seja, Jesus Cristo, tanto mais perfeito quanto mais íntegro, apresenta-se ante ti, se o desejas, como eunuco na carne; mas se não tens forças suficientes, apresenta-se como monógamo em espírito, tendo a igreja como esposa  figurativamente, que o apóstolo interpreta daquele grande sacramento de Cristo e da Igreja”. Para interpretar o sentido de eunuco na carne, pode ser clarificador aduzir outros textos paralelos deste livro De monogamia. “Só encontro a Pedro como marido, pola sua sogra; pressinto que era monógamo pola igreja; que funda sobre monógamos todo o seu rango hierárquico. Aos demais não encontro que estivessem casados, e entendo que necessariamente eram eunucos ou continentes”. Distingue, pois, claramente Tertuliano entre eunucos e continentes entre os não casados, e, por tanto, isto cumpre aplicá-lo aos demais textos.