13 nov 2018

Mulheres, sexo e matrimônio no Alcorão


O Alcorão, inspirado na Bíblia judeu-cristã, amostra também uma doutrina que é profundamente assimétrica no tocante as relações homem mulher. Em muitos versículos de diversos capítulos expõe o Alcorão a normativa referente às mulheres, dos que citaremos os que consideramos mais representativos. Sublinha-se a inferioridade da mulher a respeito do home e esta é a tônica de todo o Alcorão, fundamentada na afirmação bíblica de que a mulher foi feita a partir do varão (Surata 4ª, 1). O homem pode repreender a mulher, mas não ao revês, e, em caso de conflito pode castigá-la, suspender as relações sexuais ou golpeá-la. “Os homes são superiores às mulheres, porque Deus lhe outorgou a preeminência sobre elas e porque as dotam com os seus bens. As mulheres devem ser obedientes e guardar os secretos dos seus esposos, pois o céu confiou-lhes a sua custódia. Os maridos que sofram desobediência das suas esposas podem castigá-las, deixá-las sozinhas nos seus leitos e incluso golpeá-las” (Surata IV, 34 (38); Cf. Surata 2ª, 228). Se utilizarmos o valor dos bens a que têm direito na herança os homes e as mulheres como critério, duas mulheres teriam o mesmo valor que um home. (S. 4ª, 12). A legislação alcorânica favorece a drenagem de recursos das mulheres para os homens. Ademais de herdar o dobre que a mulher, o homem herda a metade dos bens da mulher morta, enquanto que a mulher somente pode herdar a quarta parte dos bens do seu homem morto. Esta drenagem de recursos leva aparelhada a obrigação de dotar as esposas e, consequentemente, a criação duma sociedade patriarcal.

Em caso de dissensão entre homem e mulher, a solução deixar-se-ia em mão dum juiz de cada parte. (4ª Surata, 35) Se a mulher teme a aversão e a violência do seu marido, ninguém faz mal se se compõem amigavelmente, o qual é preferível à separação (Surata 4ª, 127 (128)). O marido não pode amar a todas as mulheres por igual, e, para evitar conflitos entre as esposas, não deve entregar-se totalmente a aquela que ama, abandonando a outra (Surata 4ª, 128 (129)).

            Igual que no judaísmo e cristianismo, o islamismo considera que o comércio sexual é algo impuro, e isso explica que os crentes têm que purificar-se depois das relações sexuais (Surata 5ª, 7; Cf. Surata 4ª, 46 (43)); no caso da mulher, volve-se impura pola função fisiológica da menstruação da mulher, e, por isso, necessita também purificar-se depois dela. “Consultar-te-ão acerca da menstruação; dize-lhes: É uma impureza. Abstende-vos, pois, das mulheres durante a menstruação e não vos acerqueis delas até que se purifiquem; quando estiverem purificadas, aproximai-vos então delas, como Deus vos tem disposto, porque Ele estima os que se arrependem e cuidam da purificação” (Surata II, 222).

O islamismo consagrou a prática da poligínia, vigorante na sociedade hebreia, mas abolida por Jesus, e, portanto, não aceita a limitação do Gênesis de que Deus os fez macho e fêmea. Um muçulmano poderá casar com uma não muçulmana nas mesmas condições que com uma muçulmana, mas uma muçulmana não poderá casar com um não muçulmano porque o seu status religioso se veria afetado porque a esposa tem que seguir o status do esposo. (Surata 5ª, 6 (5)).  O número de esposas somente vem limitado pola capacidade econômica, polos sentimentos humanitários a respeito dos órfãos e viúvas como resultado das guerras, e pola possibilidade de dar-lhe a todas elas um trato equitativo. “Se temerdes ser injustos no trato com os órfãos, podereis desposar duas, três ou quatro mulheres de entre as que vos aprouver. Mas, se temerdes não poder ser eqüitativos para com elas, casai, então, com uma só, ou conformai-vos com as escravas que tendes à mão. Isso é o mais adequado, para evitar que cometais injustiças” (4ª Surata,  3). A pessoa que não seja bastante rico para desposar mulheres livres, tomará por esposas a escravas fieis (Surata 4ª, 25 (29)).

O profeta tem um trato privilegiado no referente ao número de esposas. No versículo 49 da Surata 33ª estabelece uma isenção ou privilégio na limitação do número de mulheres para o profeta, que somente se vê limitado polo facto de tê-las dotados. Portanto, o número de esposas vem determinado, em primeiro lugar, polas disponibilidades econômicas, facto que alguns justificam polos seus sentimentos e compaixão para com as viúvas e à ajuda delas para com o seu dever de liderança junto às mulheres, mas se estes são os motivos seria uma irresponsabilidade não permitir que todos possam cumprir com os citados motivos. Também pode tomar como esposas as cativas, as coirmãs que migraram com ele e as crentes que se dedicam ao Profeta. “Ó Profeta, em verdade, tornamos lícitas, para ti as esposas que tenhas dotado, assim como as que a tua mão direita possui (cativas), que Deus tenha feito cair em tuas mãos, as filhas de teus tios e tias paternas, as filhas de teus tios e tias maternas, que migraram contigo, bem como toda a mulher fiel que se dedicar ao Profeta, por gosto, e uma vez que o Profeta queira desposá-la; este é um privilégio exclusivo teu, vedado aos demais fiéis” (Surata 49 (52)). Além deste número fixado de esposas, não lhe está permitido desposar outras nem trocar umas mulheres por outras. “Alem dessas não te será permitido casares com outras, nem trocá-las por outras mulheres, ainda que suas belezas te encantarem, com exceção das que a tua mão direita possua. E Deus é Observador de tudo” (Surata 33 ª. 54).

A mulher, dado que é pensada em função do varão, deve procurar agradar-lhe e mostrar-se casta em todo momento, e tampouco tocante a isto se impõe nada parecido para o varão. “Ordena às mulheres baixar o rosto, conservar a sua pureza, não mostrar os seus corpos senão a aqueles que devam vê-los” (Surata 24ª, 31). Nas relações sexuais, as mulheres do Profeta ficam ao seu arbítrio. “Ti fazes esperar à que queiras de entre elas e ti acolhes contigo a que queiras. Tampouco se te faz nenhuma queixa se convidas à tua casa a uma das que tinhas descartado. Eis o que é mais acertado para alegrá-las, para evitar-lhes toda pena e para lhe fazer aceitar do bom grau o que lhes destes a todas” (Surata 33ª, 51). Tampouco poderá o profeta cambiar as suas mulheres por outras (Surata 33ª, 52)

A frequência das relações sexuais marca-as o home unilateralmente e a mulher tem que estar disponível para quando o home o deseje. A mulher é comparada com um campo de lavoura à que o homem pode ir quando lhe apraz, sem limitações de nenhuma classe, e a mulher tem a obrigação de mostrar uma disposição total e o único preceito que se lhe impõe ao homem é que faça antes boas obras. “Vossas mulheres são vossas semeaduras. Desfrutai, pois, da vossa semeadura, como vos apraz; porém, praticai boas obras antecipadamente, temei a Deus e sabei que compareceis perante Ele” ( Surata, 223). Os que não mantêm relações sexuais com a sua mulher têm um prazo de quatro meses para revocar a sua decisão ou decidir divorciar-se (Surata IV, 226-227). Nos dias de jejum, somente se podem ter relações sexuais pola noite. (2ª Surata, 183).

Da desigualdade entre os membros da parelha deduzem-se direitos e deveres dispares. Uma vez visto como se constitui uma família, imos ver como se pode desconstruir. Também, neste âmbito, toda a iniciativa lhe corresponde ao varão. O repúdio somente pode ser exercitado polo varão, e está limitado a duas vezes (Surata 2ª, 229). Quem a repudie três vezes somente pode volver a tomá-la depois de passar polo leito doutro esposo (Surata 2ª, 230). A mulher repudiada tem que deixar três meses antes de tomar novo marido (Surata 2ª, 228, e 232). O marido pode repudiar livremente à mulher e não se prevê no Alcorão uma medida simétrica da mulher a respeito do homem. Se um home repudia uma mulher antes de ter relações sexuais com ela, a mulher pode casar sem estar limitada polo prazo de três meses, além de ter que dar-lhe um donativo, que não se precisa, e sem travas à sua liberdade. “Ó fiéis, se vos casardes com as fiéis e as repudiardes, antes de haverde-las tocado, não lhes exijais o cumprimento do término estabelecido; dai-lhes um presente, outrossim, e libertai-as decorosamente” (Surata 33, 48ª; verso 228 da 2ª surata). Neste caso, se tampouco lhe tiver assinado nenhum dote, o marido não está submetido a nenhuma pena (Surata 2ª, 237).

            Outra das possibilidades de ruptura da convivência é o adultério da mulher. “Se alguma das vossas mulheres cometeu adultério, chamai a quatro testemunhas. E se os seus testemunhos são unânimes contra ela, encerrai-a na vossa casa até que a morte ponha fim aos seus dias, ou Deus lhe proporcione algum meio de salvação” (Surata 4ª, 19 (15)). Um castigo desproporcionado à falta cometida e que não se aplica ao home que comete a  mesma falta. Os adúlteros só podem casar com outra pessoa adúltera ou com uma idólatra (Surata 24ª, 3). Os que acusem de adúltera a uma mulher virtuosa são fortemente punidos. “E àqueles que difamarem as mulheres castas, sem apresentarem quatro testemunhas, infligi-lhes oitenta vergastadas e nunca mais aceiteis os seus testemunhos, porque são depravados” (Surata 24ª, 4). Se não acarretam quatro testemunhas jurarão quatro vezes, no nome de Deus, que o seu testemunho é autêntico,e a mulher livrar-se-á dos castigos com o mesmo juramento. (Suratas 6 e 8), e o quinto juramento será uma imprecação sobre eles mesmos se são perjuros (Surata 24, 7 e 9). 

14 oct 2018

Mulher, sexo e matrimônio nos escritos apostólicos (II)


Inferioridade e submissão da mulher

            Uma das ideias mais recorrentes do Novo Testamento é a do submissão da mulher ao homem, a qual, depois de enorme insistência e repressão, terminou por ser interiorizada tanto polos varões, convertidos em repressores, como pola mulher, que viu anulada a sua personalidade. São Paulo quer que as mulheres de Corinto evitem assistir sem véu à igreja, que ele considera um abuso que se opõe às tradições ou ensinança catequética que ele lhes transmitiu. Aproveita esta prática para deixar bem assentada a inferioridade da mulher com respeito ao varão que ele fundamenta em considerações místicas, à margem de qualquer fundamentação racional e, com esta finalidade, elabora um sistema piramidal, para dar uma forma mais claramente misógina ao relato do Gênesis incorporando a ele a Cristo, na que os elos de major a menor perfeição e hierarquia são: Deus-Cristo-homem-mulher. “Quero porém, que saibais que Cristo é a cabeça de todo homem, o homem a cabeça da mulher, e Deus a cabeça de Cristo” (I Cor. 11, 3). Esta hierarquização, com a conseguinte subordinação e dependência da mulher, obedece, pois, a desígnios divinos e, portanto, não se pode quebrantar, como sucederia se o homem assistisse à igreja com a cabeça coberta e a mulher com ela descoberta, pois, neste caso, a mulher ousaria fazer-se igual ao varão, o qual é totalmente inadmissível, para Paulo. Nesta mística paulina, totalmente gratuita e infundada, a mulher fica descabeçada, sem pensamento próprio, reduzida a uma cabeça de «chorlito», que somente pode pensar pola mente do varão.

            A seguir realiza o apostolo Paulo toda uma série de afirmações para apoiar as suas teses, carentes do mais mínimo rigor, a respeito da desonra da sua cabeça, pois o que desonra não são as vestes, mas a atitude perante a divindade ou perante os outros seres humanos e todo o demais são convenções sociais criadas polos que dominam para distinguir-se dos demais e sacralizar o seu sistema de dominação sobre eles, labor que, neste caso, é realizada polos relatos bíblicos do Gênesis, que agora adquirem em Paulo uma nova ratificação. O apóstolo considera que se o homem se cobre e a mulher se descobre não mostrariam o plano hierárquico de dominação estabelecido por Deus que é o citado: Deus-Cristo-varão-fêmea. O homem, se se cobrisse não refletiria a glória de Cristo, e a mulher, se não se cobrisse, pretenderia igualar-se ao varão. O homem é imagem e glória de Deus e a mulher é imagem do homem, um reflexo sempre pálido da autêntica realidade. A razão de todo isto é que a mulher proveu do homem, enquanto que o homem proveu de Deus; este foi criado por si mesmo, enquanto que a mulher foi criada a causa do varão, o qual lhe permite concluir que somente o homem é imagem e glória de Deus, enquanto que a mulher é glória do homem, e, por isso, deve cobrir-se em sinal de submissão ao varão, que é já o paroxismo da misoginia, ou senão rapar-se. “Todo homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta desonra a sua cabeça. Mas toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a sua cabeça, porque é a mesma cousa como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também; se, porém, para a mulher é vergonhoso ser tosquiada ou rapada, cubra-se com véu. Pois o homem, na verdade, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus; mas a mulher é a glória do homem. Porque o homem não proveu da mulher, mas a mulher do homem; nem foi o homem criado por causa da mulher, mas sim, a mulher por causa do homem. Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de submissão, por causa dos anjos” (I Cor. 11, 4-10). Em vez dos anjos deveria dizer em interesse dos misóginos celibatários. O Gênesis não precisa claramente se a mulher é ou não imagem de Deus, cousa que sim faz agora o apóstolo Paulo, limitando a imagem de Deus ao sexo masculino.

            Para intentar remendar o seu discurso profundamente misógino e consolar a mulher acrescentando que “nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher. pois, assim como a mulher veio do homem, assim também o homem nasce da mulher, mas tudo vem de Deus” (I Cor. 11, 11-12), mas pouca independência pode ter um ser que está totalmente submetido a outro e carece de total autonomia. A seguir, Paulo dá-lhe voz aos coríntios para que julguem se convém que a mulher ore com a cabeça descoberta, pretendendo inclinar o seu juízo polo não em base a que já a natureza nos ensina que é uma desonra para o homem ter os cabelos longos enquanto que é uma desonra para a mulher não tê-los longos. “julgai entre vós mesmos: é conveniente que uma mulher com a cabeça descoberta ore a Deus? Não vos ensina a própria natureza que se o homem tiver cabelo comprido, é para ele uma desonra; mas se a mulher tiver o cabelo comprido, é para ela uma glória? Pois a cabeleira lhe foi dada em lugar de véuI Cor. 11, 13-15). É evidente que a natureza não ensina nada, senão que somente adquire sentido mercê à atividade avaliadora do ser humano. O que desonram são as condutas e atitudes incorretas para com os demais seres humanos, os restantes seres vivos, a natureza inerte, mas nunca os cabelos longos ou curtos. Se a cabeleira lhe foi dada por véu, por que ao homem, que também tem cabeleira, se não se rapa ou lhe cai o pelo, também lhe seria dada por véu. Aliás, se a cabeleira lhe foi dada por véu à mulher, por que precisa outro véu a maiores?

            De acordo com as pautas acima estabelecidas, Paulo atua coerentemente exigindo que as mulheres calem na igreja, obedeçam e perguntem-lhes aos maridos se querem aprender. “as mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas estejam submissas como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma cousa, perguntem em casa a seus próprios maridos; porque é indecoroso para a mulher o falar na igreja” (I Cor. 14, 34-35). É uma mágoa que não precise Paulo por que para ela é indecoroso falar na igreja, enquanto que para o homem não.

            Tanto nas cartas atribuídas erroneamente a Paulo como nas epístolas denominadas católicas, mantém-se esta tendência misógina de clara subordinação da mulher a respeito do homem. Na carta pseudoepigráfica dirigida aos efésios no ano 62, o seu autor insiste no tema da submissão da mulher ao marido «em todo» e, a câmbio, aos homens aconselha-lhe que as amem. “Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o Salvador do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres o sejam em tudo aos seus maridos. Vós, maridos, amai a vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela” (Ef. 5, 22-25). A expressão «em tudo» deveria desaparecer de qualquer relato em que se fale da relação dum ser humano com outro. Se o homem lhe indica que tem que matar a outro ser humano, deve ela obedecer? Estaria ela eximida do delito de homicídio ou assassinato alegando que atuou por obediência devida? Isto é totalmente inaceitável. O home deve amar a mulher e esta reverenciar ao marido (Ef. 5, 32), e as mulheres idosas devem ensinar as jovens a amar os seus maridos (Tit. 2, 4-5). Também se insiste na submissão na Carta aos Colossenses, escrita no ano 62 e de autenticidade duvidosa. “Vós, mulheres, sede submissas a vossos maridos, como convém no Senhor. Vós, maridos, amai a vossas mulheres, e não as trateis asperamente” (Col. 3. 18-19).

            O autor da I Carta a Timóteo, escrita arredor do ano 100, amostra-se mais rude e imperativo e justifica a inferioridade da mulher no facto de que Adão foi criado primeiro e em que Eva atuou como sedutora para induzi-lo a pecar . A mulher aprenda em silêncio com toda sujeição. Porque não permito à mulher ensinar, nem exercer domínio sobre o home, senão estar em silêncio“ (I Tim. 2, 11-12), e justifica-o aludindo ao invento do pecado do paraíso e oferece-lhe como saída parir filhos e ser boa. “Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, no amor e na santificação” (I Tim. 2, 13-15) . E postos a ordenar, também lhe prescreve como devem vestir. “que as mulheres se ataviem com traje decoroso, com modéstia e sobriedade, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos custosos” (I Tim. 2, 9). Tanto os bispos como os diáconos devem ser maridos de uma só mulher, e as mulheres devem ter as virtudes dos subordinados: “sérias, não maldizentes, temperantes, e fiéis em tudo” (I Tim.  3, 11). Não se deve eleger nenhuma viúva menor de sessenta anos, porque “quando se tornam levianas contra Cristo, querem casar-se; tendo já a sua condenação por haverem violado a primeira fé; e, além disto, aprendem também a ser ociosas, andando de casa em casa; e não somente ociosas, mas também faladeiras e intrigantes, falando o que não convém. Quero pois que as mais novas se casem, tenham filhos, dirijam a sua casa, e não dêem ocasião ao adversário de maldizer” (I Tim. 5, 11-15).

            Na I Carta de Pedro, pseudoepigráfica, escrita arredor do ano 65 e.c. insiste-se também na submissão das mulheres aos homes para que “se alguns deles não obedecem a palavra, sejam salvos pola conduta das suas mulheres, considerando a vossa vida casta em temor” (I Ped. 3. 1-2). Imitando as mulheres dos patriarcas, o seu adorno não deve ser o enfeite exterior, senão o íntimo do coração. E a conduta do marido deve ser a da compreensão, tratando-as como vaso frágil.

            Estes são os relatos bíblicos que os clérigos ousam afirmar que foram inspirados por Deus, por mais que não exista neles nenhum indício sério que indique que é assim. Estes relatos, esclerosados e convertidos em imutáveis e, pretensamente, na expressão da autêntica verdade, acarretaram enorme dor, sofrimento e alienação a mais de meia humanidade que viveu no mundo cristão e de algumas outras religiões. Esta cosmovisão deve mudar-se por outra que reconheça que as religiões positivas são também produtos humanos, criados para iluminar, dirigir, submeter, consolar e dar esperança aos seres humanos, úteis quiçá nalgum momento passado, mas que hoje são uma rêmora para a sua libertação e reconciliação consigo mesmo.

Mulher, sexo e matrimônio nos escritos apostólicos (I)


O sexo e matrimônio
            O apóstolo Paulo, cidadão romano, nasceu no seio duma família religiosa ligada ao farisaísmo e tinha por ofício fabricante de tendas. De personalidade rígida, desequilibrada e intransigente e de tendência misógina, a sua doutrina vai converter-se no eixo da ideologia do cristianismo triunfante, que assumiria várias das suas teses, entre elas o desprezo pola mulher e polo sexo.

            Na I Carta ao Tessalonicenses, 4, 3-6, escrita no ano 50 e.c., Paulo dá-lhe vários preceitos, entre eles, o primeiro relativo à pureza e à santidade, que implica abster-se da fornicação, ou seja, de toda relação sexual fora do matrimônio, favorecer a santidade e honra da própria mulher, preservando a castidade conjugal, e não fazer injúria ao próximo procurando satisfazer os desejos carnais com a mulher deste. “Porque esta é a vontade de Deus, a saber, a vossa santificação: que vos abstenhais da prostituição, que cada um de vós saiba possuir o seu vaso (a sua mulher) em santidade e honra, não na paixão da concupiscência, como os gentios que não conhecem a Deus; ninguém iluda ou defraude nisso a seu irmão, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como também antes vo-lo dissemos e testificamos”. A contraposição entre o mundo judeu-cristão e o mundo pagão é apresentada como a raça dos puros frente aos dominados pola paixão sexual.

            Na I Carta aos Coríntios, escrita no ano 53 e.c., Paulo responde a diversas questões que lhe fizeram os cristãos desta localidade a respeito do matrimônio, imbuídos por um rígido ascetismo com uma ideologia hostil ao sexo, que consideravam que, de ser celibatários, não deviam casar, e se estavam casados deviam praticar a continência sexual ou separar-se. Para Paulo, as relações sexuais não são boas e cumpre evitá-las, mas é pior a fornicação. Ele opta polo celibato como ideal e considera o matrimônio como um estado prescindível em si, salvo como remédio da concupiscência. “Ora, quanto às coisas de que me escrevestes, bom seria que o homem não tocasse em mulher; mas, por causa da prostituição, tenha cada homem sua própria mulher e cada mulher seu próprio marido”. (7, 1-2). Aceites estas premissas, Paulo ordena que ambos os esposos paguem o débito conjugal mutuamente, satisfazendo os impulsos recíprocos, decidindo cada um do corpo do outro membro da parelha e sem negar-se um ao outro, salvo, de comum acordo, para permitir o desempenho das tarefas religiosas. “O marido pague à mulher o que lhe é devido, e do mesmo modo a mulher ao marido. A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido; e também da mesma sorte o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher. Não vos negueis um ao outro, senão de comum acordo por algum tempo, a fim de vos aplicardes à oração e depois vos ajuntardes outra vez, para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência” 7, 3-5). Aclara a seguir, (7, 6-9) que o que disse sobre o uso do matrimônio o diz a modo de condescendência, e não como um mandado, e prefere que todos sejam como ele, ou seja, que pratiquem o celibato, que é preferível ao matrimônio, mas se não podem, que se casem. “Digo isto, porém, como que por concessão e não por mandamento. Contudo queria que todos os homens fossem como eu mesmo; mas cada um tem de Deus o seu próprio dom, um deste modo, e outro daquele. Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu. Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que abrasar-se”. A sociedade ideal é uma comunidade de monges na que não existam as relações sexuais.

            A seguir, prescreve, como o fez Jesus, o monogamia, sem que o marido abandone a mulher nem esta o marido, mas deixando a porta aberta a que a mulher abandone o marido para manter-se celibatária. “Aos casados, mando, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se aparte do marido; se, porém, se apartar, que fique sem casar, ou se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher” (7, 10-11). O matrimônio entre cristãos é indissolúvel, mas o matrimônio entre cristão e infiel pode dissolver-se se este o decide. “Mas aos outros digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula, e ela consente em habitar com ele, não se separe dela. E se alguma mulher tem marido incrédulo, e ele consente em habitar com ela, não se separe dele. Porque o marido incrédulo é santificado pela mulher, e a mulher incrédula é santificada pelo marido crente; de outro modo, os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos. Mas, se o incrédulo se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou a irmã, não está sujeito à servidão; pois Deus nos chamou em paz”. (7, 12-15).

            Num clima de preocupação apocalíptica que considerava que o fim do mundo está próximo, Paulo ordena manter-se na situação em que cada um está. A respeito da virgindade não ordena senão que aconselha ficar no estado atual de cada um, ainda que mantendo que a virgindade é superior ao matrimônio, desaconselhado por ele polas tribulações da carne que ele quer evitar aos seus seguidores. “Ora, quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, o meu parecer, como quem tem alcançado misericórdia do Senhor para ser fiel. Acho, pois, que é bom, por causa da instante necessidade, que a pessoa fique como está. Estás ligado a mulher? não procures separação. Estás livre de mulher? não procures casamento. Mas, se te casares, não pecaste; e, se a virgem se casar, não pecou. Todavia estes padecerão tribulação na carne e eu quisera poupar-vos. Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; pelo que, doravante, os que têm mulher sejam como se não a tivessem” (7, 25-29). A seguir, Paulo uma segunda razão para manter-se celibatário, que consiste em que, nesta situação, somente se cuida das cousas do Senhor, e que é ainda hoje a razão mais forte para manter o celibato clerical. “Pois quero que estejais livres de cuidado, que é o motivo principal polo que se mantém o celibato no seio da igreja. “Quem não é casado cuida das coisas do Senhor, em como há de agradar ao Senhor,  mas quem é casado cuida das coisas do mundo, em como há de agradar a sua mulher, e está dividido. A mulher não casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor para serem santas, tanto no corpo como no espírito; a casada, porém, cuida das coisas do mundo, em como há de agradar ao marido” (7, 32-34).

            No Apocalipse, 14, 3-4, livro escrito cara a finais do primeiro século, diz-se que só 144 milhares de homes celibatários, que não estavam contaminados com mulheres, foram elegidos e, portanto, serão salvados. Estes cento quarenta e quatro mil “cantavam um cântico novo diante do trono, e diante dos quatro seres viventes e dos anciãos; e ninguém podia aprender aquele cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil, aqueles que foram comprados da terra. Estes são os que não se contaminaram com mulheres; porque são virgens”. Os resgatados com o sangue de Cristo reduzem-se a 144.000 que são virgens porque não se contaminaram com mulheres. A virgindade pode entender-se como integridade física e corporal, que parece ser a autêntica, ou como pureza interior ou ausência de idolatria. Os escolhidos estão limpos já que não foram contaminados por mulheres, que é a fonte da impureza. Mas, entenda-se como pureza interior ou como integridade fisiológica, é um texto sumamente misógino.

            Paulo foi o hagiógrafo neo-testamentário que tratou mais em extenso o tema da homossexualidade, e o seu posicionamento é claramente hostil e condenatório, tanto dos gays como das lesbianas, qualificando os atos homossexuais de concupiscências dos seus corações, imundícia, desonra dos seus corpos e paixões infames por ter obrado em contra da natureza humana. Na Epístola aos Romanos, 1, 24-27, escrita no ano 60, diz dos gentios: “Por isso Deus os entregou, nas concupiscências de seus corações, à imundícia, para serem os seus corpos desonrados entre si; pois trocaram a verdade de Deus pola mentira, e adoraram e serviram à criatura antes que ao Criador, que é bendito eternamente. Amém. Pelo que Deus os entregou a paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural no que é contrário à natureza; semelhantemente, também os varões, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para como os outros, varão com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a devida recompensa do seu erro”. A pena que lhe deve ser infligida é a morte segundo estabelece o veredito divino no Antigo Testamento (Lev. 20, 13). “os quais, conhecendo bem o decreto de Deus, que declara dignos de morte os que tais cousas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que as praticam” (Rom. 1, 32). O seu destino no mundo de além-túmulo é a condena eterna. “Não vos enganeis: nem os dissolutos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbedos, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus” (I Cor. 1, 9-10). Na I Epístola a Timóteo, 1, 10, pseudoepigráfica, do ano 100, declara o seu autor que a lei é boa se se usar bem, e não foi instituída para o justo senão para os prevaricadores e rebeldes, entre eles os  dissolutos, os sodomitas, os roubadores de homens, os mentirosos, os perjuros, e para tudo que for contrário à sã doutrina”. Com estes pronunciamento fica fixada com letras indeléveis e per saecula saeculorum uma doutrina profundamente misógina que vai produzir muita dor em mais da metade da população ao longo da história e da que ainda agora as mulheres lutam por desprender-se, ao tempo que as autoridades eclesiásticas, desvinculadas da sensibilidade moral dos seus próprios fieis, vivem obsessionados em manter a toda custa.