2 abr 2021

Democracia e direitos humanos (I)

    A democracia significa poder do povo, do «demos», mas o povo não é uma entidade abstrata, senão uma pessoa moral concreta formada por todos e cada um dos indivíduos, e, por conseguinte somente existe democracia se todos e cada um dos indivíduos podem participar na ação política em pé de igualdade, se todos podem falar, ser elegidos, eleger, se cada cidadão vale por um e não se um vale por milhares e milhares de pessoas valem menos que um. E isto que dizemos dos indivíduos devemos estendê-lo também aos povos, pois também estes devem poder expressar-se como tais povos, autogovernar-se, eleger o seu futuro, controlar os seus recursos, falar a própria língua, cultivar a sua cultura, ser reconhecido como sujeito político... E portanto, só existe autêntica democracia se se respeitam os direitos humanos, tanto individuais como coletivos. Em consequência, quando na CE se fala de que a soberania reside no povo espanhol, e se silenciam os demais povos que convivem no Estado espanhol, aqui temos um problema apesar de que, como fruto duma política absorvente e uniformizadora das diferenças, muitas vezes se considera como normal. Outro dos requisitos para que exista democracia é que exista uma autêntica divisão de poderes, ou seja, que os poderes legislativo, executivo e judicial sejam independentes entre si.

    No Estado espanhol os líderes políticos do sistema imperante difundem profusamente que Espanha é uma democracia plena, mas uma cousa é a propaganda e outra a realidade, e incluso estas estão entre si inversamente relacionadas. A quanta mais propaganda, menos democracia real.  É evidente que esta separação de poderes na Espanha não se dá, como o está a demostrar o compadrio entre PP e PSOE sozinhos para a sua renovação, a negativa do PP a renová-lo por interesses partidistas, a crítica do grupo GRECO do Conselho de Europa contra a corrupção já em 10/10/2016 pola falta de independência do poder judicial em Espanha e vários artigos que eu escrevi sobre este tema.

    Examinemos os demais requisitos. Existe liberdade de expressão? O 22/03/2021 a comissária de Direitos Humanos do Conselho de Europa, Dunja Mijatovic manifestou-lhe a Espanha a sua preocupação polas “recentes condenas” de prisão a artistas e ativistas os últimos anos. “Várias disposições do Código Penal espanhol têm um impacto negativo, incluído um efeito dissuasório, no exercício da liberdade de expressão, um direito fundamental para o debate público livre e plural”, e reclama uma reforma dos delitos de injúrias à coroa, enaltecimento do terrorismo, ofensas religiosas, discurso de ódio e difamação. Ou seja, que se elimine a couraça com a que se protegem a monarquia, o mundo sagrado, as elites e o espanholismo.

    A Comissão de Venécia, órgão consultivo do Conselho de Europa, demandou o 22/03/2021 que se reforme a Lei de Seguridade Cidadã, de 2015, alcunhada como Lei Mordaça, redigida para limitar a liberdade de expressão, polo seu «potencial repressivo». Pede que se revisem as avultadas penas que contempla e as multas excessivas que prevê, que “podem ter um efeito dissuasório sobre a liberdade de expressão”. A esta onda condenatória de Espanha uniu-se também a Comissão Europeia, que, por meio do porta-voz de justiça, manifestou o 23/03/2021 que quer que se reformem os delitos limitam a liberdade de expressão. “Entendemos que o governo espanhol fará modificações no seu marco jurídico em relação com a liberdade de expressão”.

    O 24/12/2011 o rei Emérito pronuncia a célebre frase: «a justiça é igual para todos», na que se condensa todo o cinismo duma Coroa corrupta, imposta pola ditadura franquista e protegida pola censura e polas formações políticas dinásticas: PSOE, PP, C’s, VOX, que se negam em redondo a que se submeta ao veredito das urnas e que se investiguem os seus delitos já perpetrados e que se arbitre uma fórmula que impeça que tais delitos se reproduzam, consagrando a maior impunidade na cimeira do estado, porque a proteção deve estar limitada ao exercício do cargo e nunca deve ser licença para matar pessoas impunemente. O nosso Curros diria: Se esta é uma democracia plena, que o demo me leve!

5 mar 2021

A animalidade e a impunidade na cúspide do Estado

                 A regulação da monarquia na CE de 1978 volve em grande medida à Constituição de 1876 e supõe um retrocesso sobre a de 1931. O do rei emérito é um exemplo claro do que nunca se deve fazer com nenhum político nem com nenhuma instituição. Na transição meteram-nos um rei dentro dum paquete e sem alternativa nenhuma e ou o tomas ou o vazio; um rei considerado como inviolável tanto no seu cargo como na vida privada, consagrando a impunidade como norma procedimental penal; isto completou-se com uma opacidade total no relativo ao funcionamento da monarquia e com uma conivência dos diretores dos grandes jornais para silenciar todo o relativo à casa real; foi protegido desde o primeiro momento pola censura; todo o mundo a rir-lhe as «graças», o exalçamento desmesurado da sua intervenção o 23 F agora já posto baixo suspeita sobre todo porque por algo se impede que se desclassifiquem os documentos e se investigue; uma vida privada descontrolada, na que demonstrou sobradamente os seus dotes como macho ibérico que parecia ser o que mais lhe interessava; o cobro de comissões por realizar trabalhos em benefício doutros países e que encareciam as exportações dos produtos das empresas espanholas e rebaixavam os seus ingressos; uma política de marketing exitosa, que foi capaz de lograr que fosse considerada polos espanhóis como a instituição mais valorada durante décadas; uma dissonância total entre a sua atuação e a «moralina» com que nos obsequiavam cada dia de Noite Boa como regalo antecipado do Pai Natal. Todo mentira, engano e decepção. Mas eu pergunto-me: quando este senhor se enriquecia deste modo, onde estavam os presidentes do Governo espanhol e que fazia o seu CNI? Não se inteiravam ou olhavam para outro lado? Eram incompetentes ou coniventes?

                 Todo o mundo que lesse os meus artigos sabe que eu não são monárquico, e uma das razões é porque a monarquia está baseada no princípio da animalidade sobre a do mérito e a capacidade. É sabido que «Juanito», ou seja o emérito, era muito frouxinho nos seus estudos, enquanto que o seu irmão a quem matou, Afonso, era muito mais competente, mas o princípio de eleição não distingue o mérito e capacidade do demérito e a incompetência e o elegido sempre será quem nasça primeiro, independentemente de qualquer outra consideração, mas sempre que seja macho, outro princípio da animalidade. Agora Felipe VI, o «preparao», descobre-se que, além de ser muito frouxo nos estudos, sofre duas doenças raras: onicofagia, ou seja, o hábito de roer compulsivamente as unhas, que provoca problemas nos dentes, verrugas e infeções, que o obrigam a levar tiritas nas mãos ou que apareça com elas sangrando; e narcolepsia, ou seja. a tendência a quedar dormido em qualquer momento e lugar, sem poder controla-lo, doença incurável ainda que sim se podem controlar os sintomas com estimulantes do sistema nervoso central. Não nos alegramos deste facto, mas é claro que uma pessoa com estas características não seria elegido chefe do Estado em nenhuma sociedade que se guie, na eleição dos seus líderes, por princípios distintos dos da animalidade. São casos que tem que solucionar os serviços sociais, mas nunca discriminá-los positivamente regalando-lhe por herança o posto mais importante dum país.

                A inviolabilidade tanto no desempenho do cargo como na vida privada consagra o princípio de impunidade nas mais altas esferas do Estado e converte em irrisórias, sarcásticas e burlescas frases como «a justiça é igual para todos». É difícil não só justificar, senão incluso entender que a uma pessoa suspeitosa de cometer delitos importantes não só não se castigue, senão que incluso não possa ser investigado. E é difícil de entender que um presidente do governo de Espanha lecione a cidadania para que aceite a CE integramente, incluso no referente a um rei inviolável e chefe das forças armadas, que supõe um retrocesso muito importante sobre o estipulado para o Presidente da República de Espanha de 1931, na que somente se determina que os deputados são invioláveis no exercício do seu cargo, e o presidente da República somente tinha esta mesma proteção.  

 

11 feb 2021

Do nacional-catolicismo à nacional magistratura (II)

 Dado que a conivência com o poder eclesiástico e a propaganda, também nos problemas de relações intercomunitárias, não podem dar visos de legalidade e de estado de direito às suas atuações, o espanholismo recorre, como grande talismã, à justiça «amiga», uma justiça que eles mesmos elegem e que sempre sentença a favor dos que os nomeiam, e quase sempre em contra dos nacionalistas periféricos. As CCAA não tem órgãos de justiça próprios, pois os tribunais superiores de justiça de Galiza, Catalunha, etc. são em realidade tribunais superiores de Espanha na Galiza, Catalunha, etc. Trata-se duma justiça politizada em prol do espanholismo, num sistema político no que não existe divisão de poderes. Os chefes do jacobinista PSOE e do também hiper-centralista PP são quem copam a nomeação de todos os membros do poder judicial. Apesar de ser um feito patente esta politização, reconhecido polo Conselho de Europa, no informe Greco de 13/11/2019, é muito frequente ouvir os políticos espanholistas, incluso os que participam na nomeação, afirmar «não há que politizar a justiça», «em Espanha existe divisão de poderes», «a justiça em Espanha é independente», e demais lindezas com as que pretendem entreter-nos.  

A consequência disto é, em primeiro lugar, a corrupção, a todos os níveis, porque os seus implicados sempre confiam em que os políticos «amigos» os saquem de qualquer apuro com os juízes, porque eles não são mais que uma peça do sistema de corrupção. Está bem claro polas declarações que acaba de fazer Barcenas, de que vai declarar a verdade, porque prometeram-lhe libertar a sua mulher da cadeia, e não cumpriram a palavra. Também polas declarações de Cosidó, porta-voz do PP no Senado que disse: «Controlaremos desde detrás a Sala Segunda». Como não está bem visto, controlar por diante, porque há que manter a farsa da independência judicial, controlá-la-emos sem que se note, ou seja, mediante pressões, sugestões, intercâmbio de favores, etc. Em segundo lugar, a cativa democracia de que gozamos.

A instauração da política unionista leva-se a cabo, além de polas suas sentenças, polo traspasso ao poder judicial, de caráter fortemente conservador e espanholista, por algo os seus membros são filhos de quem são, da resolução dum problema político, como é o catalão, encomendando-lhe a execução das políticas de repressão antinacionalista, por ter celebrado um referendo totalmente pacífico, à vista de toda a cidadania, que se saldou com malhadas a eito pola polícia de velhinhos que iam depositar o seu voto numa urna e com umas condenas totalmente desproporcionadas, fundamentadas num relato dos feitos totalmente distorcido e por delitos inventados expressamente para condená-los dando-lhe um forte escarmento para que não ousem atentar nuca mais contra o dogma da sagrada unidade da pátria espanhola, que têm como resultado o descrédito total do régime e do próprio tribunal nos foros jurídicos e diplomáticos internacionais. Tanto os juízes alemães como os belgas não viram os delitos de sublevação e sedição que se lhes imputam, e incluso podemos dizer que não viram delito de nenhuma classe, mas não há quem livre estes políticos das severas condenas e de ser acusados de golpistas, rebeldes, sediciosos, etc., 

O TS declarou-se competente para julgá-los apesar do que dispõe o artigo 117.3 da CE, e o 70.2, do próprio Estatuto de Autonomia de Catalunha que dispõe: “Corresponde ao Tribunal Superior de Justiça de Catalunha decidir sobre a inculpação, processamento e ajuizamento do Presidentes ou Presidenta da Generalitat e dos Conselheiros. Fora do território de Catalunha a responsabilidade penal é exigível nos mesmos termos perante a Sala do Penal do Tribunal Supremo”. Como os factos aconteceram em Catalunha, correspondia-lhe julgar ao TSJC, mas pretextando que algum incidente se produziu em território espanhol, o TS declarou-se competente. Este foi o motivo polo que a justiça belga, com muito bom critério determinou que o TS não é nem pode ser o "juiz natural", o "juiz ordinário predeterminado pola lei para julgar as condutas de setembro-outubro de 2017 em Catalunha. Em consequência, o TS não é o juiz competente para solicitar a extradição de Lluís Puig. Por esta razão alguns juristas já vaticinam que todo o juízo do process vai ser declarado nulo de pleno direito.  

Do nacional-catolicismo à nacional magistratura (I)

                 A história do Estado espanhol pode e deve entender-se e descrever-se como o fruto duma colaboração estreita entre o poder econômico-político e o poder religioso e nunca como um poder político-econômico com um sector marginal que seria o religioso. O poder político e o religioso foram sempre como as duas caras duma moeda, que, por uma cara aparece como poder político e pola outra como poder ideológico-mítico-religioso. O poder político necessita sempre ser assumido pola cidadania, e uma das maneiras mais eficazes para lográ-lo é obter a benção divina da sua gestão dos assuntos públicos que os vice gerentes de Deus na terra se encarregam de fornecer. O poder religioso necessita as receitas necessárias para manter a ponto a sua imensa maquinaria ideológica, pois de responsos não se vive, que lhe procura o poder político. É totalmente falsa a imagem que alguns propalam duma divisão de competências entre dous poderes distintos: o religioso e o político. O poder político participou na definição dos principais dogmas do cristianismo, e na imposição da moral cristã, entre eles, por exemplo, o da divindade consubstancial de Jesus, carpinteiro e filho de carpinteiros, com o Deus pai, por parte do imperador Constantino, e o celibato sacerdotal com a decisiva intervenção de Justiniano no mundo antigo e de Felipe II na Idade Moderna; e o poder religioso susteve todos as políticas repressivas dos governos que contribuíssem generosamente a encher os seus cepilhos, por muito que tivessem conculcado os direitos humanos, como foi o genocídio de América e a ditadura de Franco, Pinochet,... Salvo na etapa do reino suevo sempre o poder religioso e o poder político marcharam ao uníssono.

                A contribuição da igreja católica com o levantamento militar de 1936, declarando a sublevação contra a ordem estabelecida como uma cruzada, implicou para a igreja um ingente financiamento econômico e privilégios a eito em todas as ordens, ao que correspondeu a igreja levando ao ditador baixo pálio durante toda duração do seu dilatado régime e apoiando-o incondicionalmente, salvo nos seus derradeiros anos.  Entre os privilégios figuram as facilidades dadas polo régime de Franco para inscrever bens a seu nome, atuando os próprios bispos como notários, e as enormes isenções fiscais incluídas na concordata de 1953, sacralizada pola transição política de 1978, dum modo fraudulento e de costas à cidadania, e sem que os governos do período, fossem da UCD, do PSOE ou do PP, fizessem nada para corrigir esta anomalia democrática. Em 1998, o governo de Aznar concedeu-lhe à igreja a faculdade de inscrever a seu nome templos que foram incorporados ao patrimônio nacional em 1931, e como gesto de gratidão, a igreja, perante a insatisfação dos nacionalistas periféricos pola deficiente reestruturação do Estado espanhol, a desnaturalização dos estatutos de autonomia, já de por si cativos,  a centralização de competências e a carência de instrumentos para realizar as políticas que demandam os seus cidadãos, sai à palestra em 2006 para defender a unidade de Espanha como bem moral, e contra da autodeterminação dos povos, convertendo assim a sua defesa em suspeitosa de imoralidade.

                Perante a falta de atualização da mensagem cristã fundamentada em textos arcaicos de faz quatro mil anos, com um deus cristão belicoso, zeloso, arbitrário, despótico e misógino, e uma vez que as ameaças do inferno, que dizem que é de enxofre fervendo, deixaram de surtir efeito e que já não pode recorrer ao terrorismo inquisitorial como fez a eito até 1834, a igreja está numa crise enorme e perdendo fiéis a mãos cheias, o qual implica que já não impera ideologicamente sobre a sociedade. Aliás, o incremento e disparidades das ideias que se transmitem a nível mundial e estatal faz que surjam novos campos em que cumpre atuar para procurar legitimar as próprias políticas. Surgem assim os enormes instrumentos de propaganda da própria realidade; para propalar as políticas a nível mundial, surge a Marca Espanha, mutada em 2018 em Espanha Global. Ambas entidades desapareceram com muita mais pena que glória. A nível estatal, incrementa-se a propaganda na mídia espanholista e bota-se mão da reserva dos seus corifeus, porta-vozes  doutrinários e tertulianos com a finalidade de afogar a dissidência.

 

 

                     

20 ene 2021

Iglesias está brincando com fogo

 Hoje não está aceite impor a censura governamental dos mídia, que na Espanha foi um recurso frequente incluso em tempos da República de 1931, nem se pode acudir ao auxílio da mensagem cristã, sempre disposta a colaborar com o poder, para difundir a «verdade» oficial que deve ser propalada para que seja assumida polas mentes da cidadania, mas não por isso a «veritas hispana» da indissolúvel unidade da nação espanhola, entendida como soberania única e indissolúvel, carece de valedores menos potentes e abundantes recursos: os meios de comunicação tradicionais: rádios, televisões, jornais impressos, a grande maioria dos jornais digitais, os partidos políticos da transição, junto com Vox, e um tropel de jornalistas que se encarregam de instruir a cidadania sobre a verdade que deve imperar em cada caso. Esta verdade e legalidade hispana não só se defende no Estado espanhol, senão que também se pretende que a assuma toda a UE. De modo que, em vez de procurar que se estendam e cumpram os direitos dos povos, incluído o direito de autodeterminação e o direito a defender os seus sinais de identidade, se pretende que se implantem os direitos inversos: o direito dos estados a dominar os povos que convivem no seu âmbito e o direito de impor-lhe a língua, usos e costumes do povo dominante, do que tanto sabia Felipe V.

Iglesias atreveu-se a dizer algo que discrepa da consigna imperante, não sei se somente tácita, que consiste em desprestigiar a todos os líderes dos partidos independentistas e nacionalistas e as suas políticas, especialmente o seu intento de estruturar doutra maneira o poder no estado espanhol. Antes essa teima centrava-se nos que recorreram à violência para conseguir os seus objetivos e afirmava-se que todo se podia defender numa Espanha sem terrorismo, mas, uma vez desaparecida a violência de grupo, à que o poder espanhol retrucou com a violência institucional, como foram os Gal, já não só se ataca o terrorismo, senão as organizações que defendem posições independentistas. especialmente aos chefes e de ai que se lançassem contra ele sem piedade nenhuma todos os partidos e mídia que se movem no âmbito do artigo 155 e à sua direita.

Iglesias disse que Puigdemont não está em Bruxelas por roubar dinheiro a ninguém, como sim fez o rei emérito, e que se fodeu a vida para sempre polas suas ideias políticas. Quiçá seja difícil retrucar isto. Mas o que sim causou muita poeirada é que dissesse que crê que Puigdemont era um exilado como foram muitos que se exilaram durante a ditadura de Franco. Isto é difícil de aceitar porque esfuma o narcisismo espanhol propalado aos quatro ventos de que Espanha é uma democracia exemplar, uma democracia avançada, e que não admite comparação coa a atuação dum régime ditatorial. Mas, se bem é certo que não se pode comparar com o régime de Franco, que tampouco Iglesias o fez, sim se pode dizer que é uma democracia com muitas eivas: politização da justiça, carência duma autêntica divisão de poderes, ter um rei imposto por um ditador, e que o povo espanhol, que é o soberano teórico, nem votou nem pode sequer investigar, que um órgão da soberania popular como é o Governo se atreva a afirmar que quer que pactuar com o monarca a renovação da monarquia, sem consultar nada com o povo espanhol,...

   Parece evidente que Puigdemont é um exilado, ou seja, segundo a RAE Alguém expulso do território; expatriar-se, geralmente por motivos políticos. Quem pode negar que Puigdemont Marta Rovira, etc. se expatriaram por motivos políticos? Não fizeram isto mesmo muitos exilados republicanos, entre eles o grande Castelão? Ou temos que corrigir a história para que encaixe nos moldes dos espanholistas? Os exilados do franquismo são muitos e muito diversos, e muitos marcharam dum modo semelhante a Puigdemont. A ministra Montero afirmou que a diferença entre Puigdemont e os republicanos está em que o primeiro quebrantou a lei. Mas que lei? A norma que impedia celebrar um referendo foi derrogada. A justiça europeia falhou que não se respeitaram, parece que adrede, os seus direitos a ter um juiz predeterminado por lei, é evidente que os falhos judiciais pretenderam dar-lhes um escarmento e que os mantêm na prisão por falta de arrependimento, segundo a confissão de juízes e fiscais, ou seja, por ideias heterodoxas.

 

 

Viva Amâncio Ortega!

 Faz alguns meses que se levantou uma grande polêmica a propósito duma doação de 320 milhões de euros para a sanidade espanhola, que certos comentaristas e organizações políticas consideraram improcedente porque implica viver da caridade, ao tempo que outros demandaram praticamente um desagravo a esta magnânima personagem.

                Vai já para alguns anos, numa campanha eleitoral acercou-se a mim um militante de SAIN (Solidariedade e Autogestão Internacionalista), um partido meramente testemunhal de inspiração cristã, e que se move nas coordenadas da sacristia e da esquerda antimarxista e centralista, nisto último muito em consonância com a sua procedência. Dissera-me que era intolerável a exploração que estava praticando Amâncio Ortega. A minha resposta foi perguntar-lhe porque centravam a sua fobia neste empresário galego, e creio lembrar que me falaram das empresas que destruía e da deslocalização da produção a outros países. Eu disse-lhes que isso é próprio de todo o capitalismo transnacional e se estavam tão interessados em lutar contra isto, não devem focar o problema numa pessoa, que iniciou os seus exitosos negócios nesta terra, senão no que está a acontecer com a dinâmica dos grandes capitalistas.

                 Amâncio Ortega não é nenhum ladrão, que eu saiba, senão que aproveita, em benefício próprio, as facilidades legais de apropriação de plus valor que lhe dá o sistema político espanhol, europeu e mundial, que permite uma acumulação de capital nunca antes conhecido na economia. Se um empresário não aproveita estas vantagens, estaria jogando em desvantagens frente aos seus competidores, que o levariam progressivamente à sua desaparição como empresa. Portanto, todas as empresas têm que procurar não jogar em desvantagem com as demais, por necessidade de subsistência. Este não é um problema ético de bondade ou malícia das pessoas, senão um problema econômico e político.  

                 Creio que cumpre reconhecer que as desigualdades sociais são em certo modo naturais no sentido de que ainda que todos valhamos para algo não todos valemos para o mesmo, mas todos devemos ter garantidas as necessidades básicas elementais. Umas pessoas podem realizar-se no trabalho, e eu conheço pessoas que estão mais contentos na sua empresa que numas vacações na Galiza, na Espanha ou num país estrangeiro. Outros gostam de viajar quando lho permitem os seus ingressos e não ter problemas, etc. etc. Ora bem, o que é, a todas luzes improcedente são as diferenças abismais que existem a nível mundial entre umas pessoas e outras, muito prejudicial à longa para o próprio sistema.   

O número de multimilionários incrementou-se escandalosamente nas últimas décadas: de 423 que havia no ano 1996 passou-se a 2095 em março de 2020, e a sua riqueza equivale ao 12 por cento do PIB de todo o planeta, enquanto que em população somente representam o 0,00003 por cento. Aliás, o patrimônio dos mais ricos não deixa normalmente de agrandar-se, ainda que em 2020 tiveram um retrocesso, como todas as demais capas da população, devido ao coronavirus. É evidente que se os demais lhe compram menos, eles vendem menos e ingressam menos. E isto serve-nos para tirar a conclusão seguinte: se os consumidores são quem os engrandecem, algum direito terão a ser recompensados em contrapartida da sua contribuição á riqueza dos empresários. Temos, em consequência, que pôr em valor o status de consumidor reforçando o seu valor e o seu contributo à viabilidade do sistema. Os empresários mais ricos, entre os quais figura Amâncio Ortega neste momento no posto 9º, costumam fazer doações muitas vezes muito generosas, para o standard duma pessoa do comum, que têm como consequência, independentemente da intenção pessoal, provocar uma reação de agradecimento por algo que se considera não-devido. Mas uma sociedade deve fundamentar-se nos direitos das pessoas, e não nas esmolas, porque uma sociedade de esmoleiros não é uma sociedade digna.

Muitos destes grandes ricos, aproveitam-se da engenharia fiscal em benefício próprio pagando menos em termos porcentuais que uma pessoa de classe média baixa e da deslocalização de empresas para incrementar os ganhos; recorrem à fabricação de produtos kleenex, muito presente no caso de Amâncio Ortega, em conflito com a luta em prol da saúde do planeta e ao recurso aos paraísos fiscais para manter o seu dinheiro a bom recato, ou acodem também à obsolescência programada para converter os clientes em contribuintes periódicos para incrementar as suas ganâncias, incrementando o consumo além da razoável, etc. Temos ainda que humilhar-nos e reverenciá-los porque nos dão uma esmola de vez em quando?