29 oct 2017

Proibição da leitura e traduções vernáculas da Bíblia (I)

               Não saber mais do que convém

               Faz uns dias topei-me polas ruas da velha Compostela um ilustre teólogo que me perguntou que fazia. Respondi-lhe que terminara um novo livro também sobre o cristianismo. Perguntou-me o título e disse-lhe que não ia gostar; que se vai titular O cristianismo contra a razão. A sua reação foi de visceral oposição, porque dizia, o cristianismo nunca combateu a razão e não se pode desqualificar desta maneira uma instituição. Retruquei-lhe que o cristianismo proibira incluso ler a Bíblia, ao que, ante a minha surpresa, manifesta que a Igreja nunca proibiu a sua leitura. Quedei em mandar-lhe um artigo no que se demonstra que assim é, e como penso que também lhe pode ser de utilidade a outras pessoas, decidi publicá-lo para que se conheça outra história da sem razão, repressão e obscurantismo cristão.    
               A Igreja exerceu historicamente uma espécie de sequestro da Bíblia, no sentido da sua apropriação e retenção ilegítima, em benefício próprio para impor a toda a sociedade uma interpretação única e ao mesmo tempo exercer um monopólio na direção espiritual das consciências, baseado na ignorância da mensagem bíblica polos fiéis. Com esta finalidade, a partir do século 11, proibiu reiterada e persistentemente que os cristãos lessem, traduzissem e pusessem a Bíblia a disposição dos demais, incluído o Antigo Testamento, livro base da religião judia, irrogando-se também o monopólio da sua interpretação fidedigna. Polo que eu conheço, foi um caso único na história que uma religião se atrevesse a coartar a liberdade de leitura do seu livro sagrado aos mesmos fiéis aos que, teoricamente, ia dirigido por Deus. A proibição da leitura pode realizar-se direta ou indiretamente. No primeiro caso emite-se uma norma em que se contemple essa proscrição, e no segundo tomam-se as medidas precisas para que os fiéis não tenham acesso a traduções que eles possam entender, permitindo, por exemplo, só as edições em latim e proibindo que se façam nas línguas vernáculas..
               A proibição de ler a Bíblia começa já no século IX, quando Nicolau I arremete contra os que se amostram interessados na leitura da Bíblia e reafirma a proibição do seu uso público.  Será, contudo, a partir do século XI quando se acentua a proibição, num momento em que os papas intentam estabelecer uma teocracia nos países desmembrados do Império romano de Ocidente, propósito iniciado por Gregório VII (1073-1085), o grande uniformizador da liturgia na Igreja que impôs o ritual gregoriano a toda a humanidade, empobrecendo enormemente a espiritualidade cristã, convertida em mero ritualismo vácuo. O papa considerava que tinha autoridade suprema sobre todos os cristãos e que ninguém, salvo Deus, podia julgá-lo, enquanto que ele podia julgar e depor o imperador e os reis se não atuavam dum jeito cristão. O duque de Boêmia solicitou do papa Gregório VII permissão para publicar as Sagradas Escrituras em eslavo, mas o papa exortou, em 1080, o citado Duque de que não permitisse a publicação das Escrituras na língua do país1.
               No ano 1184 o papa Lúcio III fundou, pola bula Ad Abolendas,  a «Santa Inquisição», a inquisição medieval episcopal no Languedoc, sul da França, com o objetivo de combater a heresia dos cátaros e albigenses. Com esta finalidade, a Igreja decreta o monopólio da prédica, reservando para a instituição eclesial «ortodoxa» toda comunicação com os fiéis, anulando de raiz qualquer liberdade de pensamento e expressão. Esta proibição afetou aos cátaros, patarinos, pobres de Lyon, passaginos, josefinos e arnaldistas. “Mas visto que alguns de entre eles, sob a máscara de piedade, mas pervertendo o seu significado, como diz o Apóstolo, reivindicam para si a autoridade de pregar, esquecendo o que diz este mesmo Apóstolo: «como pregarão se não são enviados?», (condenamos) a todos aqueles que, bem impedidos, bem não enviados, presumissem pregar quer seja em público quer em privado, sem ter recebido autorização do bispo do lugar... Determinamos que fiquem sujeitos à mesma sentença todos os seus encobridores e defensores e todos aqueles que prestassem alguma ajuda ou favor aos mencionados hereges com o fim de fomentar neles a depravação da heresia, bem a aqueles (que chamam) consolados ou crentes, ou perfeitos, ou com qualquer dos nomes supersticiosos com que sejam denominados2.
               O papa Inocência III, na bula De contemptu mundi, expõe a sua conceição teocrática do poder como uma república cristão presidida polo papa, assistido polo imperador, os reis e os príncipes. “Dizia-se plenipotenciário de «Quem da os reinos a quem lhe parece».E por quem os vai dar e recobrar se não é pola do papa? O papa «está por cima de todos os príncipes, posto que é ele quem há julgá-los». E mais ainda: «Nós instituímos príncipes de toda a Terra»3. Natural de Agnani e sobrinho do papa nepotista Clemente III (1187-1191), acedeu ao papado quanto só tinha 29 anos de idade e levado polo seu zelo fanático religioso promoveu a IV Cruzada que tinha como finalidade a conquista de territórios egípcios, mas que posteriormente foi desviada contra os cristãos orientais de Constantinopla, provocando nesta cidade uma massacre nesta cidade. Mas ainda mais sanguinária seria a cruzada que organizou contra os cátaros, em território francês, que produziu um autêntico banho de sangue nas cidades de Béziers, Carcassone, Minerve. A consigna era matar ao maior número de cátaros possível. O catarismo, uma doutrina próxima ao maniqueísmo, condenava o mundo material por considerar que era obra demoníaca, praticavam o ascetismo e defendiam a castidade e o vegetarianismo. Foi condenada nos concílios ecumênicos III e IV de Letrão dos anos 1179 e 1215.
               O 12/07/1199, Inocêncio III (1198-1216) dirige-lhe a Epístola «Cum ex iniuncto» aos cristãos de Metz, França, na que lhe diz ter sido informado polo bispo de Metz, “que tanto na diocese como na cidade de Metz uma quantidade não pequena de laicos e mulheres, movidos por certo desejo das Escrituras, fez traduzir para si os Evangelhos, as Epístolas de Paulo, o Saltério, os livros Morais, Jó e muitos outros livros, a uma tradução feita com boa vontade, mais prudentemente? pretendendo que os laicos e mulheres presumam eructar tales cousas entre si e pregar-se mutuamente; quem também desprezam a relação com aqueles, que não se misturam com eles e semelhantes e consideram alheios os que não prestam ouvidos e sentimentos aos (seus) iguais, aos que quando algum dos sacerdotes da paróquia quiseram corrigi-los sobre estas cousas, eles se lhes resistiram, pretendendo aduzir razões das Escrituras, que segundo estes não deveram nunca ser proibidas. Alguns deles molestam a simplicidade dos seus sacerdotes; e quando se propõe por eles a palavra de salvação, murmuram ocultamente que dominam melhor os seus livros e podem falar mais prudentemente. Embora o desejo de entender as Escrituras divinas e segundo elas incitar ao estudo não se deve repreender, senão mais bem encomendar, porém nisso aparecem que com pretexto de argüir, celebram os seus conventículos, usurpam para si o oficio da predicação, eludem a simplicidade dos sacerdotes e desprezam a convivência de aqueles que não aderem a tales cousas.... Mas os sacramentos de fé não se devem expor a todos indistintamente, dado que não podem ser entendidos por todos indistintamente, senão só a aqueles que podem concebê-los fielmente.... Tanta é a profundidade da Escritura divina, que não somente os simples e iletrados, senão inclusive os prudentes e doutos não se bastam plenamente para investigar a inteligência da mesma.... Polo qual diz o Apóstolo: «Não saber mais do que convém saber, senão saber com sobriedade» (Rom 12, 3). Como existem muitos membros do corpo, porém não todos os membros têm o mesmo ato, assim há muitas ordens na Igreja, mas não todas têm o mesmo ofício, porque segundo o Apóstolo «uns deu-lhes aos apóstolos, outros aos profetas, outros não obstante aos doutores, etc. (Ef. 4, 11). Como a ordem dos doutores é quase a principal na Igreja, não deve qualquer usurpar para si indiferentemente o oficio da predicação4. Este texto transluz que, a esta altura, polo menos na diocese de Metz estava proibido ler as Escrituras, que era mal visto polos que queriam lê-las. O fundamento da proibição, apoiado polo Papa, é a pretensão dos clérigos de ter um couto reservado para si no que não se metam intrusos, especialmente aqueles que os podem deixar em ridículo. Denota também a sua ignorância, por ver-se acurralados ante os seus contraditores e receiam perder o oficio da predicação. O clérigo deve ser o profissional do culto e os demais não devem imiscuir-se no seu terreno, consistindo a solução que propõe o papa Inocêncio III, a ignorância e consequentemente que não convém traduzir a Bíblia porque isso pode desacreditá-los e, por conseguinte, o melhor é que esteja em latim, para que os fiéis não a entendam. Isto também explica porque a Igreja oficiou a Missa em latim e de costas ao povo até 1965. Não vi texto semelhante no que um Papa nada menos, neste caso, promotor de cruzadas, se atreva a aconselhar saber pouco, nesta ocasião sob o pretexto de que as Escrituras são difíceis de compreender, e, portanto, para aforrar-lhe trabalho à gente, se lhe proíbe lê-las. Chegamos à situação paradoxal de que uns livros inspirados por Deus, é de supor que não só para os hierarcas, senão para toda a gente, os seus destinatários não podem lê-los e deve reduzir o seu rol a escutar o seu sentido tamisadas pola mediação clerical.




               Presunção de culpabilidade e controlo das consciências

               Federico II Hohenstaufen (1220-1250) estava muito interessado em terminar com a heresia nos seus domínios por entender que a presença de hereges podia atrair sobre ele a ira divina, e, para lograr este objetivo, não lhe foi difícil chegar a um acordo com Gregório IX. No 1231 este papa criou, pola bula Excomunicamus, a Inquisição papal controlada polo bispo de Roma, que, portanto, passa a ser inquisição pontifícia ou papal, e executada polas ordens mendicantes, principalmente os dominicanos.  No ano 1232, pola bula Ile Humani Generis, criou o tribunal da Inquisição destinado a castigar exemplarmente aos dissidentes ideológicos. As penas aplicadas terão como objetivo atormentar os hereges e destruir as suas fontes de ingressos por meio da confiscação. Além da repressão da heresia também vão combater todas as formas de saber. Em 1249 implantou-se a inquisição no reino de Aragon, sendo a primeira de caráter estatal. Ao mesmo tempo a Igreja romana alenta o enfrentamento com os demais cristãos, com os judeus e com os muçulmanos promovendo e alentando as Guerras das Cruzadas. 
               A Igreja destruiu qualquer proteção ou garantia para poder desfrutar dum juízo justo, pois o acusado, em vez de gozar da presunção de inocência salvo que outros demonstrem a sua culpabilidade, é considerado culpável salvo que seja capaz de demonstrar a sua inocência. Ao mesmo tempo, promulgou-se um edito de fé que obrigava a todos os habitantes duma região a denunciar a todos os suspeitosos de heresia e os seus cúmplices, incluídos os familiares. O testemunho de duas testemunhas era considerado prova de culpabilidade. A sua declaração não era pública e o seu testemunho era secreto, pois tanto o delator como as testemunhas permaneciam desconhecidos. Em caso de não reconhecer a culpabilidade começavam as promessas, ameaças, cárcere e torturas. Deste modo, a Igreja criou todas as condições necessárias para que as pessoas solvessem as rixas e desavenças familiares e vizinhais delatando aos que consideravam seus inimigos ao tribunal da inquisição. Deste jeito criaram-se as condições para o desencadeamento do terror entre a população, porque ninguém se sente seguro. Por outra parte, os inquisidores dotavam-se duma couraça de insensibilidade do seu atroz proceder porque consideravam que a sua atuação estava guiada polo zelo da causa divina e pola salvação da alma dos hereges, valor muito superior tormentos corporais a que eram submetidos.  
               No Sínodo de Toulouse, celebrado em novembro de 1229, sendo papa Gregório IX, num momento agudo de perseguição contra os cátaros, obrigou-se aos arcebispos, bispos e sacerdotes a que buscassem hereges e os castigassem. Estes deviam levar como distintivo uma cruz no lado direito e outra no esquerdo e não podiam aceder a serviços litúrgicos até receber o certificado de pureza do Papa ou o seu legado. Portanto, os famosos sambenitos com os que se humilhou publicamente o povo judeu durante a época nazi, tiveram uma famosa maternidade, que não é outra que a Santa Igreja católica, igual que o medo, o terror, o racismo e a destruição de qualquer ética. Os homes, a partir dos doze anos, e as mulheres, a partir dos catorze, deviam negar toda relação com a heresia e demonstrar a sua inocência. No Cânon 14 deste concílio, estatui-se: “Proibimos também que se lhe permita aos laicos ter os livros do Velho ou do Novo Testamento, salvo um saltério ou um breviário e as horas da Virgem; e incluso não se lhes permite ter estes dous últimos livros traduzidos em língua vernácula. Cumpre que esta proibição esteja fundada no abuso que se fazia dos livros sagrados traduzidos a língua vernácula nestas províncias nas que havia um grande número de hereges que se dedicavam a dogmatizar e a explicar a sagrada Escritura à sua maneira5. Ou seja, que se lhe permite, em casos excepcionais, ter algum livro de devoção, mas só em latim, língua reservada a mui poucos e nada de Sagradas Escrituras. O objetivo, como vemos, é o controlo total das consciências por parte da Igreja, que se auto-proclamam como as únicas intérpretes fiéis dos livros sagrados. Tal era o poder da instituição eclesial a esta altura que os que ousassem dissentir do seu critério ficavam convertidos em párias sociais. “Os que são suspeitosos de heresia não exercerão a função de médico e não podem acercar-se aos doentes até depois de que tenham recebido o viático...  Proibição aos bispos e aos barões de dar os cargos que dependem deles aos hereges, e de ter como domésticos ou conselheiros pessoas suspeitosas de heresia”6. A irresponsabilidade destas normas é clara, pois se um médico não pode acercar-se ao doente até que este tenha recebido o viático, a sua morte pode ser fruto dessa demora na recepção do tratamento.
               No ano 1233 o imperador do Sacro Império Romano Germânico, Federico II Federico II de Hohenstaufen decretou que qualquer que seja condenado por heresia em todo o império, seja queimado vivo, e pede-lhe ao papa que colabore com ele para que a loucura herética seja eliminada com as suas espadas. Como é natural, neste casos, o papa não pode negar-se a colaborar numa empresa que a ambos beneficia.
               O Concilio de Tarragona, de 1234, estatuiu no seu segundo Cânon que: “Ninguém pode ter os livros do Velho e Novo Testamento na língua romance, e se alguém os possui tem que voltá-los ao local episcopal dentro de oito dias após a publicação deste decreto, de tal modo que possam ser queimados, seja um clérigo ou um laico, é suspeitoso até que fique limpo de toda suspeita7. A Igreja estabeleceu, como vemos, métodos expeditivos para evitar que se lesse o seu livro «sagrado», com a finalidade de manter, desta maneira, os fiéis na ignorância da sua religião, salvo a mensagem convenientemente filtrada pola hierarquia.
               O cânon 36 do Concílio de Béziers de 1246 diz: “Procurai completamente, segundo todo o que souberdes que é justo e legal, a que os livros teológicos não sejam possuídos, incluso em latim, polos laicos, nem em língua vernácula polos clérigos8.




1.  GREGORIO VII, "Epist.", VII, XI.
2. Lúcio III, Ad abolendam.
3.  DOMINIQUE, PIERRE, La inquisición, Luis de Caralt, Barcelona, 1973, p. 21.
4. Inocêncio III, Cum ex iniuncto, im PL 214, 696, Regestorum, Lib. II, Ep. 141.  Cf. DENZINGER, Enchiridiom Simbolorum, Herder, Barcelona, 1960, 770-771.
5. PELTIER, L’ABÉ, Dictionaire des conciles, tom. 2, Ateliers catholiques du petir Montroure, Paris, 1847, Concílio de Toulouse, cânon 14, p. 1017.
6. Ibidem, Cóncílio de Toulouse, cânones 15 e 17, pp. 1017-1018.
7. LORTSCH, D,  Historie de la Bible en France, 1910, p.14. Cf. The 1913 Catholic Encyclopedia, art. the Scripture. Bible possession once banned by the Catholic Church!.www.aloha.net/~mikesch/banned.him
8. [Catholique] Historique de l'interdiction de la Bible : Catholique ...www.forum-religion.org › Religion du Christianisme › Catholique

21 oct 2017

Eu clamo polo 155 bis



                O dia 21/10/2017 o tripartido formado polo PP, PSOE e C’s vai ativar o artigo 155 da CE que lhe permite ao Governo de Espanha obrigar a uma comunidade autônoma a cumprir as obrigações que a constituição ou outras leis lhe impõem ou a não atuar de forma que atente gravemente contra o interesse geral. Portanto, o Governo de Espanha atua como uma espécie de galo num galinheiro que se impõe a uma série de galinhas legalmente amansadas e dispostas a cumprir ordens do macho alfa e Omega. Concebe-se que este governo atua de acordo com o interesse geral e se lhe concedem atribuições para submeter as comunidades díscolas, neste caso Catalunha, que são as que se supõem que podem atuar em contra do interesse geral. O Governo atua como o representante autêntico e encarnação concreta do Estado, concebido este como uma superestrutura formal por cima e em contra dos indivíduos e  dos povos que o conformam. 

                O Estado fica concebido dum modo hegeliano como uma espécie de Deus sobre a terra que se dota duns plenipotenciários, neste caso o governo central, assistido polos partidos que o apoiam, que transmitem as suas ordens sacrossantas aos seus súbditos e os obrigam a cumpri-las, valendo-se dos seus corpos e forças de segurança, de tribunais condescendentes e duma fiscalia servil, no referente às medidas políticas, e convertida em fiscalia do Governo em vez de fiscalia do Estado. O resultado da desobediência são a imposição de fortes penas de prisão, multas, repressão, incluso no caso de que os cidadãos atuem dum modo pacífico e desarmado e não suponham ameaça de nenhuma classe para a segurança desse Estado. Todos estas medidas coercitivas e repressivas são dulcificadas por uns mídia muito manipuladores e sempre compreensivos com o poder. É uma conceição mais piramidal e autoritária do Estado que a da República federal, pátria do filósofo Hegel, pai da forma mais elaborada de idealismo, que lhe encomenda às ideias, neste caso à ideia de Estado, a reitoria da realidade, culminando deste modo o idealismo platônico-aristotélico. 

Mariano Rajoy ameaçou a Catalunha com a aplicação do artigo 155, transcrito literalmente do artigo 37 da Constituição alemã, que neste país nunca se pôs em prática e isto indica que as relações entre os länder e o governo federal estiveram baseadas na lealdade e no diálogo entre o Estado federal e os Estados federados, situação que na Espanha nunca se deu no referente ao encaixe das comunidades autônomas na estrutura territorial do Estado. Uma diferença fundamental é que os Lander têm reconhecida a sua soberania originária, enquanto que no Estado espanhol a soberania é única e o Estado, por meio do seu representante plenipotenciário, considera-se legitimado a fazer o que lhe acomode.. O problema fundamental para qualquer reforma do Estado espanhol é que as comunidades autônomas de Galiza, Euskadi e Catalunha só somam, em números redondos, uns 11 milhões de votantes dum conjunto do Estado de 46 milhões aproximadamente, dos quais ainda não chegam a 5 milhões os que votam nacionalista, e os membros do tripartido têm sempre presente os interesses das suas formações e as expectativas de aranhar, ou polo menos não perder, o voto unionista, ainda que se traduza na perda de parte do voto nas três comunidades citadas. Desta arte, não se arredarão de humilhar os nacionalistas e denegar as suas aspirações de autogoverno. A reação aos inquéritos que lhe dão a C’s um incremento de voto, Rivera manifestou que isso indica que a sua política de mão dura com Catalunha é a acertada. Esta é a maneira de proceder dos políticos unionistas serris. Se a metade da população espanhola for nacionalista desapareceria de raiz o problema catalão, basco e galego porque a política que se aplicaria seria muito mais sensata e pactuada de comum acordo entre as partes. Isto explica também a reação de Rajoy perante o problema catalão: o que há que fazer é não tomar decisões e esperar e que se cansem e pidam papas, atendo-se na prática ao que dizia Ortega, de que o problema catalão, igual que o basco, não se podem resolver e o único que há que fazer é acarretá-lo.

                Frente a esta conceição do Estado concebido como superestrutura da que emanam as ordens da cima para abaixo para uma cidadania submissa e passiva, existe a conceição do Estado como a associação de pessoas e povos, para a resolução dos problemas que lhe afetam, conceição defendida já por Aristóteles e, nos nossos dias, polo moralista britânico D.D.Raphael, que tem a sua concreção prática mais patente na confederação helvética que concebe o Estado como uma associação de indivíduos e povos, que são os que têm o protagonismo e quem decidem de todos os assuntos relevantes para a comunidade. Aqui as ordens, em vez de emanar da cima para abaixo, emanam de abaixo para a cima. Esta conceição dota este país duma enorme estabilidade porque a cidadania e os povos (cantões) participam, por meio do referendo, em todas as decisões básicas que lhe afetam. Isto já indica que o que dizem alguns tertulianos de que Espanha é um país mais descentralizados de Europa não tem nenhum sentido. No Estado espanhol, um Tribunal Constitucional pode botar abaixo um Estatuto de Autonomia previamente referendado polo povo afetado, como passou com Catalunha, o qual implica que são estatutos concedidos pola benevolência dos unionistas e carentes de qualquer garantia de que serão respeitados. O Estatuto de Autonomia de Catalunha foi reformado em contra dos requisitos que ele estabelece para a sua reforma, não respeitando, portanto, a legalidade estatutária. Isto significa que tanto a Constituição espanhola como os Estatutos de Autonomias estão totalmente esgotados e agora somente fica saber por quanto tempo temos que regular-nos por cadáveres aos que ritualmente os unionistas lhe rendem homenagem, ao tempo que promovem e secundam mobilizações para exaltar até o fanatismo as paixões primárias dum espanholismo vácuo, que se abraça a bandeiras que somente têm como objetivo negar e afogar os direitos coletivos doutras comunidades, porque os seus estão plenamente reconhecidos.

                Escrevia este artigo quando me inteiro das medidas adotadas polo governo do partido popular contra Catalunha, e fiquei estupefato e surpreendido porque não pensava que podia chegar tão longe contra uma comunidade com uma personalidade tão acusada como a catalã. Mais que aplicar o artigo 155, parece uma declaração de guerra. Eu considero também que é uma medida ilegal, porque o artigo 155 permite ao Estado: “1... tomar as medidas necessárias para obrigar à aquela ao cumprimento forçoso das citadas obrigações ou para a proteção do mencionado interesse geral. 2. Para a execução das medidas previstas no apartado anterior, o Governo poderá dar instruções a todas as autoridades das Comunidades Autônomas”. Não se contempla, pois, a possibilidade de executar as medidas por parte do mesmo Estado nem o cessamento dos membros do Govern. Diz num artigo o catedrático de direito constitucional da Universidade de Barcelona, Xavier Arbós que “o 155 não serve para convocar eleições, suporia alterar e modificar o Estatut”, ratificando assim o que aqui dizemos. Claro que estas observações valem pouco para quem se considera por cima da lei.

Dito o anterior, eu proponho que numa futura reforma da Constituição se pactue um artigo 155 bis, que faculte as comunidades autônomas a obrigar o Governo central a respeitar os deveres que a constituição e as leis impõem ao governo central e a tomar todas as medidas para efetivá-las, podendo, a este efeito, recorrer aos mecanismos coercitivos precisos. Isto segue-se da lógica de considerar o Estado como uma associação de povos e cidadãos que são os que têm ou deveriam ter o poder real nas decisões relevantes para a comunidade, o qual somente pode efetivar-se se dotamos o Estado duma autêntica divisão de poderes, que na atualidade não existe. Isto foi ratificado polo unionista de pró Afonso Guerra que disse em 1985, com motivo da reforma da Lei do Poder Judicial: “Hoje carregamo-nos a Montesquieu”, que fora quem manifestou que a divisão de poderes em legislativo, executivo e judicial é a condição imprescindível para que exista uma autêntica democracia. Na atualidade, um único partido com maioria absoluta pode controlar o poder legislativo, executivo e judicial, com a consequência de converter o órgão dos juízes num apêndice do executivo, totalmente politizado, como passa na atualidade.

1 oct 2017

“O cristianismo contra a ciência”



            O dia 30/09/2017 topei com um companheiro professor que assistiu à apresentação do livro o dia 27/09/2017, e manifestou que estava molesto com a pretensão dum dos presente no ato que defendeu que se devia cambiar o título do livro e, em vez de O cristianismo contra a ciência,q deveria ser Relação entre cristianismo e ciência. Considerava que o título era correto e que não se deve mudar de nenhuma maneira em posteriores edições. Eu saquei-lhe ferro a este tema e disse-lhe que cada quem tem direito a expor a sua opinião e isso foi o que passou no ato. Confirmei-lhe que continuaria pondo este título porque considero que é o que melhor expressa não a realidade senão também o contido do livro. As razões que se aduzem para o câmbio não são convincentes porque ainda que não todo o cristianismo estivesse contra a ciência, si o esteve o cristianismo como instituição. Se se entende por cristianismo a reunião de todos os crentes cristãos, creio que têm razão, igual que seria abusivo afirmar, aqui na nossa terra, que todos os membros do PP são anti-galeguistas ou que todo afiliados a este partido são ladrões. Que se quer dizer nestes casos? Pois que aqueles que tomam as decisões no seio do PP e/ou ocupam os cargos institucionais mais relevantes são contrários a uma promoção real da nossa língua. Nós falamos sempre da instituição cristã e não de indivíduos ou grupos concretos que não têm poder real de decidir a linha eclesial. Muitos fiéis foram vítimas da inquisição em vez de protagonistas, mas isso não impede atribuir a autoria das suas condenas, torturas e execuções ao cristianismo, e igual sucede no caso presente. Isto é muito mais acertado no caso do catolicismo por tratar-se duma monarquia absoluta verticalista e clericalista na que todas as decisões importantes procedem duma única cabeça com mais poder que o mesmo concílio, como o demonstra o facto de ser capaz João Paulo II e Bento XVI de anular o concílio Vaticano II.

            Antes da sua publicação pensamos detidamente o título que devia levar e consideramos que os títulos que utilizam outros autores, tais como Conflito entre ciência e religião ou Conflito entre cristianismo e ciência ou conflito entre o cristianismo e a razão não eram acertados porque nos primeiros alude-se a um embate recíproco entre dous que pugnam entre si, e, no caso presente, não há luta entre dous  senão um acosso constante da instituição eclesial contra os que ousavam publicar algo inovador que consideravam que colidia com o seu imaginário mental tal como se desprende das Sagradas Escrituras. Este acosso não se referia só a questões de fé e costumes, senão também a temas científicos, filosóficos, gramaticais, etc.

            Deve chamar-se cristianismo ou catolicismo? Entendo que cumpre dizer cristianismo, porque não foi uma facão determinada do cristianismo a que participou na luta contra a ciência, senão todas elas: protestantes, anglicanos, ortodoxos, etc. A condena da esfericidade da terra polo papa Zacarias data do século VIII, quando ainda não se separaram as diversas facões mencionadas, e na condena do heliocentrismo e na desqualificação do evolucionismo participaram tanto os protestantes como os católicos.

             A animosidade contra a ciência está tão incrustada nas mentes cristãs, nomeadamente nas clericais, que incluso a padecem os sectores mais progressistas dentro da instituição eclesial, que, em grande parte, invalidam os seus esforços para renovar o cristianismo. Dizia o meu companheiro, algo que eu dizia no ato, que não tem sentido falar de cientismo em sentido pejorativo e de imperialismo da ciência, quando os científicos não conformam, de por si, uma instituição que tenha poder real enquanto tal, e, como tal, não pode emitir condenas contra ninguém; e dos científicos como indivíduos particulares não se conhece nenhum caso na história de acosso ou assédio sobre nenhum outro ser humano, quer seja religioso, filósofo ou científico. Um científico pode, naturalmente, criticar uma religião e reciprocamente, mas não pode condenar, torturar, bater ou executar a ninguém. Se alguém o fizer fá-lo-ia a nível pessoal e nunca como científico. Aliás, o científico como tal rege-se polo princípio de falsação que diz que uma proposição que é falsada pola experiência deve ser abandonada e substituída por outra, e, precisamente, a função do científico está em falsar as proposições anteriores, provocando deste modo um progresso no conhecimento, como fiz Copérnico a respeito do geocentrismo. Isto é contrário ao modo de proceder de todas as religiões que sempre pretendem manter as suas proposições como sacrossantas e imutáveis apesar de ter sido falsadas reiteradamente pola ciência natural ou histórica ou responder a sensibilidades que não sintonizam com o momento presente. Que cambiou a mensagem eclesial apesar de ter sido falsada a planície da terra, o geocentrismo, a física aristotélica e o fixismo? Continuam-se lendo os mesmos textos e seguem defendendo-se as mesmas ideias, porque, como foram inspiradas por Deus e Deus é onisciente, seria temerário cambiá-las.

            Entendo que esta atitude é totalmente negativa para o mesmo cristianismo porque indica que a sua tradicional aversão contra a razão tanto filosófica como científica não mudou e fica ancora na razão imaginativa de faz milhares de anos. Observo também que esta animadversão reluz na obra duma série de autores cristãos e afins ao cristianismo que publicam obras que têm como objetivo o desprestígio dos grandes científicos, e algumas vezes chegaram a aconselhar-me a leitura de alguma delas. A uma pessoa que me ofereceu um livro desses para ler, disse-lhe que não o necessitava porque, sem vê-lo já sabia o essencial da sua argumentação, que era desprestigiar aos grandes científicos e fazer ver as suas carências, e teve que reconhecer que tinha razão, desvalorizando assim a ciência.

            Porque este rouco ódio contra a razão tanto filosófica como científica? A razão estriba em que consideram que empequenecendo aos demais se engrandecem eles e a sua mensagem profundamente irracionalista e fideísta. Este ódio tem uma raiz bíblica e agoma no mesmo relato da caída de Adão e Eva no Paraíso terreal. O seu pecado, segundo o texto bíblico foi comer da árvore da ciência do bem e do mal, pretendendo ser, como Deus, conhecedores da ciência do bem e do mal. A desobediência a este preceito produziu uma reação do irado, despótico e guerreiro Javé que reagiu impondo o maior castigo que se tem nunca produzido na história. Tanto eles como todos seus descendentes, ainda os não nascidos, foram penalizados porque, segundo a interpretação agostiniana, servindo-se dum texto de Santo Xerome mal traduzido, todos pecamos em Adão e todos temos que sofrer as consequências, pecado que se transmite, segundo este Padre da Igreja, da pais a filhos por geração, destruído assim a mesma noção de pecado que exige que a atuação seja pessoal, livre e consciente e cometendo um dos maiores dislates contra a biologia, que consiste em dizer que um ato pecaminoso que consiste num ato de pensamento contrário a uma norma moral, se pode transmitir por geração. Sendo assim também se transmitiria a ciência de pais a filhos, aforrando grandes dispêndios às arcas públicas para formar e educar desde zero as crianças. Seria de desejar que pidam análises do código genético para ver em que gene reside a pecaminosidade!

            Já quando estudava em Salamanca, alguns teólogos, também entre os progressistas, tendo em conta que nós o a evolução desmente que nós podamos provir duma parelha de pessoas, manifestam que Adão significa terra, como se assim solucionassem o problema, porque uma cousa é o significado etimológico duma palavra e outra muito distinta que esta palavra com tal significado etimológico não se aplique a pessoas individuais. Evidentemente, Adão, que efetivamente, significa terra, utilizou-se também como nome de pessoa. Em caso contrário, teríamos que dizer que Eva não surgiu da sua costela, porque a terra não as tem, nem teria sido a sua companheira, nem teria sido a que o incitou a pecar, porque a terra não cumpre nenhuma destas funções. Pedro significa pedra, mas isso não é óbice para que muitos portem este nome.

            A Bíblia defende que o ser humano foi criado a imagem e semelhança do seu criador e, por conseguinte, pareceria que o cristianismo deveria defender as grandes virtudes de que está dotado, entre elas, como a sobranceira, uma poderosa racionalidade que nos permite conhecer a realidade, e também ao pai divino, mas o terrífico deus de Israel, Javé, é apresentado por Isaías pavoneando-se de que vai fazer grandes portentos que confundirão os sábios. “Por isso eis que sigo fazendo maravilhas com este povo; perderei a sabedoria dos sábios, e eclipsarei o entendimento dos entendidos”. Esta ameaça de Javé tem como finalidade amedrontar o ser humano e assim evitar qualquer autonomia, auto-suficiência, liberdade e independência das criaturas. O temor de Javé é o princípio da ciência, como diz o livro dos Provérbios. O deus judeu-cristão é um deus despótico, um deus de escravos, que gosta de ter submetidos e constantemente pendentes dele a todas as suas criaturas, e se estas querem que os atenda têm que humilhar-se, rebaixar-se, não atrever-se a pedir-lhe contas dos seus atos, e impetrar-lhe o seu auxílio compulsivamente apesar de que ele já conhece, teoricamente, as suas necessidades. Esta noção de Deus tem que ser eliminada porque se opõe radicalmente à atual sensibilidade humana tanto religiosa como moral.

            O apóstolo Paulo amostra também uma visceral oposição à ciência motivada polo fracasso da sua predicação às capas cultivadas da sociedade romana e judia. Sublinha que, frente aos judeus, que pedem sinais e aos gentios, que exigem sabedoria, a verdadeira sabedoria está em Cristo crucificado. “Entretanto os judeus pedem sinais e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos a um Cristo crucificado: escândalo para os judeus, loucura para os gentios”I Cor. 1,22-23). Frente à sabedoria divina, a sabedoria deste mundo, que é necedade aos olhos de Deus, está chamada à destruição (I Cor. 2, 6). Porém neste caso haveria que pedir-lhe responsabilidades porque os seres humanos são obra sua e isso indicaria que é uma obra imperfeita. Não se diga que o mal e a imperfeição é obra do pecado original porque a mesma proposta desta noção é uma insânia mental.

            Entre os abundantes testemunhos do ódio da Igreja contra a ciência e a filosofia vou citar dous. O papa Gregório I proibiu o estudo da gramática. O ano 601 escreve-lhe uma carta ao bispo de Vienne, na Gália, que leva por título: “que o bispo não deve ensinar a arte gramatical”. Nela, começa manifestando que lhe transmitiram muitas boas novas acerca das suas atividades que lhe causaram alegria e que estava disposto a conceder-lhe o que pedisse, mas “após isto chegou-nos uma notícia que não podo mencionar sem vergonha, que ti explicas gramática a algumas pessoas. Cuja notícia recebemo-la tão molestamente, e desprezamo-la com muita veemência, de modo que aquelas cousas que se disseram previamente, as convertemos em gemido e tristeza, porque numa boca não cabem entoar louvores a Júpiter e a Cristo. E considera quão grave e nefando seja que os bispos cantem o que não convém a um laico religioso. E ainda que o nosso amado presbítero Cândido quando chegou mais tarde e se lhe perguntou sutilmente por este assunto, o tiver negado e pretendesse escusar-vos, ainda não se afastou dos nossos ânimos, porque quanto é execrável que se diga isto dum sacerdote, tanto convém que se conheça se é assim ou não com satisfação estrita e veraz. De onde, se, após isto, se tivessem clarificado que são falsas aquelas cousas que se nos disseram, e se tivesse evidenciado que não estudais bagatelas e literaturas seculares, damos graças a Deus, que não permitiu que o vosso coração fosse manchado com os louvores blasfemos dos nefandos, e trataremos de conceder-vos o que pedis já seguros e sem nenhuma perturbação” (Registri Epistolarum, Documenta Catholica Omnia: Gregorius I Magnus", Liv. XI, Carta LIV (latim). Gregório XIII proclamou que cumpre ensinar a pureza teológica sem fermento da ciência profana, não adulterando a palavra de Deus com invenções mundanas.