27 may 2020

Desilusão com Francisco


            Começa a estender-se o desânimo nos teólogos que se dizem progressistas sobre as reformas que esperam que o papa Francisco imprima na igreja, o qual é um indicativo claro de que puseram muitas mais esperanças nele que as que vem realizadas. Creio que lhe deram demasiada importância ao talante e certas declarações equívocas de cara à galeria do novo pontífice. Pola minha parte, sempre lhe manifestei a quem quis ouvir-me que não esperava quase nada dele, porque, ainda que quisesse fazer algo não lhe deixariam. Portanto, tenho que dizer que sim está cumprindo com as minhas expectativas porque sempre disse que com talante não se reforma uma instituição, ainda que sim pode criar um clima propício para afrontá-la. Para reformar uma instituição é preciso mudar a suas leis, para que mude a sua estrutura, e isso nada de nada até o momento.

            A razão pola que tinha e tenho nulas esperanças em que o papa fizesse algo é porque para reformar a igreja necessita-se um ser super-humano, quiçá um ser divino, e estes ultimamente estão tão ocupados noutras cousas que nem sequer se dignaram comparecer para botar-nos uma mão sobre a coroavirus. Mas, tampouco estou decepcionado porque não o esperava. A razão pola que os clérigos –porque a igreja na realidade são os clérigos- não podem reformar a igreja é porque a igreja é irreformável. Neste sentido, passa-lhe, e ainda em maior grau, como à Constituição Espanhola, que também é irreformável e só um estalido social pode propiciar uma reforma, salvo os câmbios que se fazem para que os de sempre continuem a história de Espanha, em palavras de Lerroux. A Constituição da igreja está constituída polas escrituras, que elevou à categoria de inspiradas por Deus, e, consequentemente, perenes e imutáveis, e as definições dogmáticas dos concílios, também inspiradas polo Espírito Santo, todas feitas nem sequer polos clérigos em geral, senão pola sua elite dirigente que são os o papa e os bispos, que decidem ao seu bel prazer sem intervenção nenhuma por parte dos presbíteros nem dos diáconos, e não digamos já do povo em geral. Portanto, a igreja, na realidade são o papa e os bispos e os clérigos subordinados não pintam nada, por mais que o meu amigo Victorino pense que ele também fala em nome da igreja.

            As grandes reformas imediatas que necessita a igreja nestes momentos são o reconhecimento igualdade da mulher, a opcionalidade do celibato clerical e da virgindade, a supressão da confissão privada com um sacerdote ou bispo e a aceitação dos valores da comunidade na que se insere. Ou seja, que se necessita que a igreja assuma duma vez os direitos humanos, tanto individuais como coletivos. Isto não se soluciona com declarações ocas e sem sentido como as feitas ultimamente por dignitários eclesiais de que a igreja se fez mulher, senão tomando as medidas legislativas precisas para propiciar o câmbio e desandar a via da imposição repressiva e obsessiva do celibato clerical, em que Espanha teve a triste sorte de ser a iniciadora decidida no concílio de Elvira de 306; a derrogação das disposições sobre o desapoderamento progressivo, tanto econômico como diretivo, da mulher e a sua subordinação ao homem tanto polas escrituras como polos concílios, e a administração ordinária da igreja, e a sua redução a ser servidora ou escrava do sistema em funções não retribuídas; a supressão da confissão privada ao confessor, que a igreja véu utilizando por vezes como instrumento de controlo da cidadania. Creio que se deveria pedir perdão por alguma medidas tomadas contra clérigos que conviviam pacificamente com as suas mulheres, das que foram separados violentamente pola igreja. O cânon 5 do oitavo concílio de Toledo, considerando que chegou aos ouvidos de todo o concílio que alguns sacerdotes e ministros se contaminaram quer com as suas mulheres próprias, quer com a imunda e execrável sociedade de outras, decretou que “as mulheres, sejam livres ou escravas, associadas a eles nesta torpeza, sejam totalmente separadas ou vendidas, de modo que jamais possam volver com os seus companheiros de delito; e se estes não quiseram emendar-se, sejam recluídos num mosteiro até o fim da sua vida, sujeitos inteiramente à disciplina da penitência”.


25 may 2020

04.- Eunucos polo reino dos céus e dos poderosos


 4.- O eunuquismo em Babilônia e Média

 
Ramom Varela Punhal
 

4.1.- Os eunucos no primeiro império babilônico e elamita (1800-1531)
4.2.- Segundo império babilônico e o reino medo (625-539)
4.3.- Viagens de Apolônio de Tiana


               4.1.- Os eunucos no primeiro império babilônico e elamita (1800-1531)

               Primeiro Império Babilônico e primeiro Império Elamita. Após a caída de Ur, segue-lhe o reino de Isín e Larsa, que vai durar dous séculos aproximadamente, tras os quais vão tomar o mando os amorreus que no 1894 se entronizaram na cidade-estado de Babilônia sob Sumu-abum, e com o seu sexto rei, o amorreu Hammurabi (1792 a.e.c. - 1750 a.e.c.), converte-se na capital do primeiro Império babilónico com domínio sobre toda Mesopotâmia, de duração limitada, pois em 1595 o último rei do primeiro Império Babilônico, Samsu-Ditana, seria deposto polos casitas, de origem desconhecida, baixo o mando do caudilho Agum II, que toma Babilônia, e a partir de 1531 vão estabelecer um domínio que vai durar até o ano 1155 a.e.c., em que são derrotados polos elamitas, ao mando de Shutruk-Nahhunte, que estabelece o primeiro Império elamita, de curta duração.

               Durante o reinado de Hammurabi cria-se o código deste nome, composto por duzentas oitenta e duas leis, que constitui um dos conjunto de leis mais antigas e melhor conservadas que se conhecem. É uma normativa rigorista que consagra a lei do talião, olho por olho e dente por dente. O código de Hammurabi trata da adoção nas leis 187, 192 e 193. Na norma 187 decreta-se que “Um filho de (i.e. criado por) por um cortesão que é um servidor de palácio ou um filho de (i.e. criado por) uma secretu (mulher de alto rango) não será reclamado”. Como diz Robert Paulissian, “Aqui faźse uma exceção no caso de adoção de filhos polos servidores de palácio, que eram habitualmente eunucos e as mulheres de alto rango. Como estas duas categorias de servidores palatinos não podiam ter filhos naturais ou não se lhe permitia ter filhos (secretu), se lhe concedeu o poder de reter os seus filhos adotivos1. A lei 192 estatui que “se um filho de (i.e. criado por) um cortesão ou o filho de (i.e. criado por) uma mulher de alto rango diz ao pai que o criou ou à mãe que o criou, «Ti não és o meu pai» ou «Ti não és a minha mãe», cortar-lhe-ão a sua língua”. Neste caso castiga-se a língua por ser o órgão que cometeu o delito. Na lei 193 estabelece-se que “se um filho de (i.e. criado por) um cortesão ou o filho de (i.e. criado por) uma mulher de alto rango se identifica com a casa do pai e repudia o pai que o criou ou a mãe que o criou e marcha para a casa do seu pai arrancar-lhe-ão o seu olho”. A severidade das penas denota uma forte tendência das crianças a abandonar os seus pais e mães adotivos, entre outras cousas porque os filhos herdam a posição dos pais e, neste caso, a sua sorte seria, no caso dos cortesãos, a castração.


               4.2.- Segundo império babilônico e o reino medo (625-539)

               Segundo Imperio Babilónico: Inaugura-se no ano 625 cm o domínio de Assíria por Nabopolassar. No ano 605 a.e.c. os assírios foram derrotados por Nabucodonozor II, dirigente da tribo semita dos caldeus, que cria o segundo Império babilônico. No ano 598 a.e.c. rebela-se contra os babilônios o reino de Israel, mas é derrotado e os líderes são deportados a Babilônia. Volve de novo a levantar-se no 587 a.e.c.. e novamente foram derrotados e a sua população deportada a Babilônia, incluído o Rei Zedequias (597-587), ao que Nabucodonozor lhe saca os olhos e deporta também a Babilônia.

               Artaios (s. VII a.e.c.), sexto rei dos medos, sucessor de Arbianes, manteve uma campanha bélica persistente com os cadúsios, liderados por Parsondes, um persa que desertou do seu pais e passou a desempenhar o cargo de general dos cadúsios, um povo do noroeste do Irão, em atenção à sua bravura, aos que persuadiu para que reclamassem a sua liberdade, guerra na que este saiu vencedor apesar da grande inferioridade numérica dos seus combatentes. Entre os seus servidores, Artaios tinha vários eunucos, entre os quais o favorito foi Mitrafernes, que gozava de grande confiança perante o rei, e ao que acudiam os que queriam obter os favores do monarca, como foi o caso do babilônio Nanaros, “o lugar tenente do rei e o mais influente homem de Babilônia”2, que estava em dificuldades por ter-lhe obrigado ao guerreiro e rei dos cadúsios Parsondes, “um homem admirado pola sua coragem, inteligência e outras virtudes, que era amigo do rei e o membro mais poderoso do conselho do rei3, a jogar um rol feminino. Quando morreu o rei dos cadúsios, Parsondes foi elegido como sucessor. Fora humilhado por Nanaros porque quando ele o viu ficou muito ingratamente impressionado pola sua vestimenta e modais femininos, e intentou persuadir, sem êxito, a Artaios para que o matasse e lhe entregasse a ele o reino. Nanaros, quando o descobriu ofereceu uma recompensa aos negociantes que seguiam o exército para que lho entregassem, com a finalidade de castigá-lo em sinal de vingança pola conduta pouco amigável de Parsondes para com ele. Uma vez em suas mãos, “Nanaros chamou o eunuco encarregado das cantoras e disse-lhe: «tomai este homem e afeitai-lhe todo o corpo, salvo a sua cabeça, esfregai-o com pedra pomes, lavai-o duas vezes diárias e enxaguai-o com gema de ovo, e então ponde-lhe pintura de olhos e entrançai-lhe os seus cabelos como os duma mulher. Aprendei-lhe a cantar, tocar a cítara, e tocar a lira de jeito que possa executá-lo como uma mulher para mim com as raparigas de música, com quem ele compartirá o estilo de vida tendo um corpo fraco, uso de semelhantes vestidos, e prática das mesmas destrezas». Depois que ele falou, o eunuco colheu a Parsondes afeitou-lhe todo o corpo salvo a cabeça, ensinou-lhe o que se lhe pediu, afastou-o da luz solar, lavando-o duas vezes por dia, abrandando-o e alojando-o nos mesmos quartos com as mulheres como o seu mestre lhe ordenara. Pouco depois, Parsondes era um branco, lampinho, e um homem afeminado, cantava e tocava a cítara mais belamente que as raparigas de música com quem ele representou e ultrapassou-as em beleza também e ninguém que viu a sua atuação nalgum dos jantares festivos se precataria que ele não era uma mulher”4. Os eunucos têm neste caso como função executar ordens tendentes a reduzir a outros a um estado semelhante ao dos eunucos, que representava uma ofensa para os que sofriam este castigo.

               Parsondes levou este estilo de vida durante sete anos, mas tendo Nanaros abusado violentamente dum dos seus eunucos, Parsondes indicou-lhe que fosse contar-lhe ao rei Artaios que “Parsondes está vivo e foi desonrado fazendo-o viver com as mulheres, O mesmo homem que foi o teu amigo e esse grande guerreiro5. O eunuco traslada-lhe esta notícia ao rei Artaios, que se alegrou, mas ao mesmo tempo lamentou que um bom homem soldado fosse desonrado e pede o retorno de Parsondes, ao que Nanaros responde que nunca o vira desde a sua desaparição. “Quando Artaio ouviu isto, enviou um novo mensageiro que era muito grande e mais poderoso que o primeiro, enquanto exigia num pergaminho que Nanaros parasse este embuste babilônio e restituísse o eunuco a quem ele entregou aos eunucos e bailarinas ou se lhe cortaria a cabeça. Artaio escreveu isto e ordenou ao seus mensageiro que se Nanaros se nega a libertar a Parsondes será prendido com o cinto e matado6. Nanaros promete libertar a Parsondes, mas quer transmitir-lhe ao rei que foi justamente castigado porque cometeu uma grave injustiça com ele, e convidou ao mensageiro a presenciar uma sessão de música e dança na que atuava Parsondes. Mas, Artaio respondeu-lhe que Parsondes tem argumentos mais justificados e que não devia pronunciar vereditos. Ao ouvir isto, Nanaros assustou-se terrivelmente e procurou, com grandes dádivas, a intercessão do mais influente dos eunucos, Mitrafernes, para não ser executado. O eunuco foi junto ao rei e suplicou muito, dado que fora grandemente honrado, e disse que Nanaros não mereceu ser matado posto que ele não matou a Parsondes, senão mais bem exerceu represálias contra um homem que o injuriou. Isto convenceu o rei, “mas Parsondes meneou a cabeça e disse: «Pode alguém que descobriu o ouro para a raça humana ser amaldiçoado; porque é por isto que são agora ridicularizado por um babilônio». O eunuco entendendo que o tomava a peito, disse: «Meu bom homem, deixa de estar tão irritado, escuta-me e faz-te amigo de Nanaros porque este é o desejo do nosso amo». Porém, Parsondes esperava uma oportunidade para vingar-se do eunuco e de Nanaros7. Parsondes não aceita ser recompensado com dinheiro por considerar que foi ridicularizado e exige a vingança, que consumaria conspirando com os serventes de Nanaros, tendendo-lhe uma emboscada enquanto estava borracho. 

               Nabucodonozor II, (630-562 a.C.), rei caldeu de Babilônia de 605 a 562 a.e.c., destaca, além de conquistador de Judá e Jerusalém, como construtor dos jardins pendentes de Babilônia para a sua esposa meda Amitis. Segundo o livro de Daniel “No ano terceiro do reinado de Jeoiaquim, rei de Judá (608-598), veu Nabucodonozor, rei de  Babilônia, a Jerusalém, e a sitiou. E o Senhor lhe entregou nas mãos a Jeoiaquim, rei de Judá, e uma parte dos vasos da casa de Deus; e ele os levou para a terra de Sinar, para a casa do seu deus; e os pôs na casa do tesouro do seu deus. Então disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos. que trouxesse alguns dos filhos de Israel, dentre a linhagem real e dos nobres, jovens em quem não houvesse defeito algum, de bela aparência, dotados de sabedoria, inteligência e instrução, e que tivessem capacidade para assistirem no palácio do rei; e que lhes ensinasse as letras e a língua dos caldeus”8.No ano 597 sufocou uma rebelião dos judeus do reino de Judá ao mando do rei Jeoiaquim (608-598), aos que vence e o rei Joaquim, sucessor de Jeoiaquim, e uns dez mil habitantes das classes sociais medias e elevadas foram deportados a Babilônia, como cativos, entre os que figuravam vários eunucos do próprio rei Joaquim9. O rei de Babilônia ordenou-lhe ao chefe dos eunucos, Aspenaz, que recrutasse moços  seletos hebreus dos estamentos real e nobiliário, de bom parecer, de talento, inteligência e boa preparação, para servir na Corte de Babilônia, entre os que se achava o próprio Daniel, que, muito provavelmente também foi evirado10, ao igual que Ananias, Misael, Azarias11. Pôs no trono de Judá a um rei títere, Zedequias, mas este finou por rebelar-se também contra Nabucodonozor, em coligação com os egípcios e tírios, e de novo os hebreus foram vencidos no ano 587 após ano e médio de assédio, e outra vez deportados a Babilônia os membros mais elevados da sociedade hebreia. Como botim de guerra pola derrota de Zedequias apoderou-se, entre outros muitos, dum eunuco, que era o prefeito do exército12. O seu chefe da guarda e das tropas de Nabucodonozor II, Nabuzardán, (Nabu-zer-iddina), saqueou e destruiu Jerusalém e deportou a Babilônia os sumos sacerdotes Saraias e Sofonias, aos três guardas do templo e “da cidade a um eunuco que mandava a gente da guerra13.

               Durante o reinado de Nabucodonozor II teria ocorrido a decapitação do general às suas ordens Holofernes. Segundo Sulpício Severo, Judith, a judia, solicitou-lhe a Holofernes poder sair livremente do acampamento para fazer as rezas durante a noite, e Holofernes concedeu-lho, mas “um violento desejo de gozar do corpo da prisioneira se ampara de Holofernes, que a excepcional beleza de Judith não teve dificuldade em pôr fora de si. O eunuco Bágoas conduz-lo à tenda do persa; sentam-se à mesa; o bárbaro estupeficou-se com uma grande quantidade de vinho, e, depois que os servidores foram despedidos, o sono apoderou-se dele antes de que pudesse fazer violência a Judith. Esta, sem perder o tempo, corta-lhe a cabeça ao seu inimigo, leva-a com ela, e, graças ao costume que havia de vê-la sair livremente, volve sã e salva justo aos seus14..Este relato está tomado do Livro de Judith 12.10 ss., e parece totalmente fantasioso e inventado para criar uma heroína salvadora do seu povo aproveitando os encantos femininos. O livro foi escrito no século II a.e.c., e situa-se no reinado de Nabucodonozor (604-562), de quem se diz que era rei dos assírios, em vez de rei de Babilônia, com ofoi em realidade. Diz-se que reinava em Nínive, capital de Assíria, que foi destruída no ano 612 por Nabopolassar e Ciaxares. Diz-se que Nabucodonozor combateu e derrotou ao rei dos medos, Arfacsad, que não figura no catálogo dos reis medos nem persas. Nabucodonozor envou os judeus ao cativeiro de Babilônia e destruiu a cidade de Jerusalém e o templo, enquanto que no livro se diz que os judeus já volveram do cativeiro e reedificaram a cidade e o templo. Tanto Holofernes como Bágoas são nomes persas e não babilônios. Portanto, deste relato só se pode extrair a conclusão de que no século II se considerava normal que os reis tivessem eunucos. 

               Em tempos do rei medo Astibaras (624-584), quando o general medo e genro seu Striangaios, se namorou da rainha de Saka (Escitia), Zarinaia, á morte do marido desta, Marmaros, governador dos partos, confiou-lhe os seus sentimentos amorosos ao eunuco mais fiel  que o acompanhava, atuando este como o seu confidente sentimental. “Confiou-lhe o secreto ao mais fiável dos eunucos que o acompanhavam. Com palavras de encorajamento o eunuco aconselhou-lhe que deixasse a sua timidez a um lado e confessasse o seu amor a Zarinaia15, conselho que põe em prática. “Porém, ela rejeitou-o com delicadeza dizendo-lhe que era um assunto embaraçoso e daninho para ela, mas que seria mais escandaloso e prejudicial para ele dado que estava nesta altura casado com Roitaia, a filha de Astibaras, da que se dizia que era mais bela que Zarinaia e todas as demais mulheres16. Esta resposta deixou-o entrecortado e profundamente abatido, “guardou silêncio durante longo rato e então, atentamente despedindo-se dela, marchou e, cada vez mais deprimido, lamentou a sua situação ao eunuco. Finalmente, depois de escrever uma carta num pergaminho, fez-lhe jurar ao eunuco que ele lha entregaria a Zarinaia somente depois de que Striangaio tivesse morto sem dizer-lhe nada antes17. Pediu a sua espada e assim marchou para o Hades.

               A esta altura, o último rei dos medos, Astiages (585-550), também chamado Astigas, filho de Ciaxares, (653-585) ostentava a supremacia sobre o reino de Anshan, seu vassalo, regido pola dinastia aquemênida, por ter como fundador a Achaemenes, e durante o seu reinado, o poder supremo transferiu-se dos medos aos persas. Durante o seu reinado, Ciro atuou como auxiliar do nobre Artembares que ocupava o posto de copeiro real. “Artembares era um homem velho e um dia, quando ele estava doente com febre, pediu-lhe ao rei ir para a casa até estar recuperado. Disse-lhe ao rei: «Este moço (indicando a Ciro) por quem sentes simpatia, servirá o vinho no meu lugar. Se servisse o vinho corretamente para ti, meu senhor, adotá-lo-ei, ainda que são um eunuco». Astiages aceitou esta proposta e o eunuco marchou depois de ter-lhe dado a Ciro muitas ordens e abraçado como um filho. E assim, Ciro esteve cerca do rei, deu-lhe a sua vasilha e serviu-lhe vinho dia e noite ao tempo que despregava um carreto juízo e coragem. Artembares morreu da sua doença depois de adotar a Ciro, e assim Astiages deu-lhe todas as possessões de Artembares, como se fosse o seu filho18. Astiages ordenou-lhe ao general medo e cortesão seu, Harpago, que fizesse morrer ao seu neto Ciro, mas este, segundo a versão de Herodoto, encomenda-lhe fazê-lo ao pastor Mitradates, dizendo-lhe que era Astiages quem ordenava a sua morte: “Em fim, eu ameacei-o com os mais rigorosos tormentos se não cumpria estritamente esta ordem. Executadas estas ordens, e estando morto o menino, eu enviei ali ao mais fiel dos meus eunucos: eu vi-o polos seus olhos e enterrei-o. As cousas passaram desta maneira e esta é a sorte que correu este menino19. A possessão dos eunucos não se limitava ao rei senão que também os tinham às suas ordens os altos dignitários.


               4.3.- Viagens de Apolônio de Tiana

               O filósofo de tendência neo-pitagórica, matemático e taumaturgo grego Apolônio de Tiana (3 a. C.-ca. 97), homem delgado e pálido, realizou uma viagem a Babilônia, caminho da Índia, onde pernoitou vinte meses, período no que manteve conversas com os magos, com o rei Vardane e com os eunucos, entre eles com o sátrapa chefe da guarda do rei, o olho do rei, chamado Damis, e com um dos eunucos que levam as mensagens reais. Filostrato oferece-nos o seguinte diálogo dele com Damis: 
Apolônio.- “- «Damis, estou a perguntar-me como é que os bárbaros crêem na castidade dos eunucos e os admitem nos apartamentos das mulheres.
Damis.- - Mas, Apolônio, um menino veria a razão: a operação que se lhes praticou quitou-lhe o princípio dos desejos amorosos, e eis porque se lhe pode abrir os apartamentos das mulheres, inclusive, por pouco que a fantasia as incite, admiti-los na sua cama.
Apolônio.-  Que lhes extirpou, segundo ti? A faculdade de amar ou a de conhecer as mulheres?
Damis.- As duas. Porque se se lhe extirpasse a todo o mundo esta parte que alumia o fogo do amor, ninguém sonharia em amar.
- Amanhã, replicou Apolônio, depois dum momento de silêncio, aprendereis que os eunucos são também capazes de amar, e que os desejos, que entram no coração pola vista, não estão de nenhum modo extinguidos neles, senão que o lar permanece a este respeito quente e abrasador, porque deve suceder alguma cousa que provará que o vosso razoamento não é bom. Por outra parte, quando os homens conhecessem uma arte bastante poderosa, bastante soberana para extirpar do espírito toda concupiscência, não seria uma razão para colocar os eunucos no número das pessoas castas: porque, supondo que o sejam, só é por força e por incapacidade de amar. Que é pois a castidade mais que a resistência aos desejos e ao arrebatamento dos sentidos, mais que a abstinência voluntaria alcançada sobre esta espécie de raiva que se chama a paixão?”20. Ao dia seguinte, Apolônio crê ratificada a sua teoria por ter surpreendido um eunuco com uma das concubinas do rei. “Quando ele falava assim, o palácio retumbou de gritos soltados por eunucos e mulheres. Acabava-se de surpreender um eunuco em flagrante delito com uma das concubinas do rei, e os guardas do apartamento das mulheres arrastavam-no polos pelos, como era costume para os escravos do rei. O mais antigo dos eunucos declarou que fazia tempo que se deu conta do amor culpável por esta mulher; que lhe proibira falar com ela, tocar-lhe o pescoço ou a mão, e de cuidá-la a ela exclusivamente, e que vinha de surpreendê-lo com ela e consumando o seu crime. Apolônio botou uma olhada a Damis, como para dizer-lhe: «Não tinha razão ao sustentar que os eunucos são capazes de amor?»21. O rei pergunta-lhe que castigo lhe devem aplicar ao eunuco, e Apolônio responde que o de viver. O rei seguiu os seus conselhos e perdoou-lhe a vida ao eunuco.


    


1.  PAULISSIAN, ROBERT DR. Adoption in Ancient Assyria and Babylonia, Journal of Assyrian Academic Studies jaas.org/edocs/v13n2/Paulissia1, p. 13.
2.   F6a) Athen. 12.40 p. 530 D, im The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, p. 78.
3.  F5) Diodor. 2.31.10-34.6, im  The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, p. 77.
4.  F6b) Nic. Damas. (Exc. de Virt. p. 330.5 Büttner-Wobst = FGrH 90 F4) [L]: in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, p. 79.
5.  ( F6b) Nic. Damas. (Exc. de Virt. p. 330.5 Büttner-Wobst = FGrH 90 F4) [L]: in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, 3, p. 80.
6.  CTÉSIAS, F6b) Nic. Damas. (Exc. de Virt. p. 330.5 Büttner-Wobst = FGrH 90 F4) [L], in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, 3, p. 80.
7.  F6b) Nic. Damas. (Exc. de Virt. p. 330.5 Büttner-Wobst = FGrH 90 F4) [L]: in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, 3, p. 81. Ibid. Cap. 3, p. 157.
Dan. 1, 1-4. Cf. Dan. 1, 17-20.
9.  II Re. 24,15. Cf. Jer. 29,2
10.  Dan. 1,3-15.  Neste texto de Daniel não o diz expressamente, mas é a opinião tradicional baseada em Isaias, 49, 7 : em Sanhédrin, 93 b, Rab (s. I d. C.), diz, a respeito deste texto, que Daniel e os seus companheiros eram eunucos. Cf. Séder Elha R., éd. Friedmann, ch. XXIV ; et Pirké de R. Eléizer, ch. LII, 52, que o deducem de Isaías, LVI, 4 ss.
11.  Dan. 1, 7-11, 18.
12.  II Re. 25,19
13.  II Re. 25,19.
14.  SULPÍCIO SEVERO, Chronicorum, liv. 2.16.
15.  CTÉSIAS,  F8c) Nic. Damas. (Exc. De Virtut. p. 335.20 Büttner – Wobst = FGrH 90 F5) [L], in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, 3, p. 82.
16.  CTÉSIAS,  F8c) Nic. Damas. (Exc. De Virtut. p. 335.20 Büttner – Wobst = FGrH 90 F5) [L], in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, 3, p. 82.
17.  CTÉSIAS,  F8c) Nic. Damas. (Exc. De Virtut. p. 335.20 Büttner – Wobst = FGrH 90 F5) [L], in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, 3, p. 82.
18.  F8d) Nic. Damas. (Exc. de Insid. p.23.23 de Boor = FGrH 90 F66) [L]:   in The complete fragments of ctesias of cnidus: translatiom and commentary with am introductiom By ANDREW NICHOLS, University of Florida, 3, p. 83.
19.  HERODOTO, História, Lib. I, 117. 
20.  FILOSTRATO, Vida de Apolonio de Tiana, I, 34.
21.  FILOSTRATO, Vida de Apolonio de Tiana, I, 37