23 feb 2020

Um vegetal não leva uma vida humana


                Em dezembro de 2019, a Conferência Episcopal Espanhola publicou um documento sobre a eutanásia titulado Semeadores de Esperança, mas em vista do grande apoio que tem entre a cidadania a legalização da morte digna, parece que em vez de esperança semearam desilusão. Os temas morais, entre eles o da eutanásia, estão condicionados nas religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), polos livros sagrados e polos dogmas ou proposições inalteráveis e definitivas que foram criando no decurso do seu devir.

                No cristianismo há muitos dogmas que estão relacionados com a conceição do homem e, por conseguinte, com a eutanásia. Citarei aqui os que me parecem mais importantes a este respeito: o dogma do pecado original, consistente numa suposta culpa de desobediência a Deus quebrantando a ordem de não comer maças da árvore do bem e do mal, que se saldou com um castigo desorbitado que danou intrinsecamente a natureza humana e que se utiliza para explicar tanto o mal moral, ou seja, o pecado, como o mal físico, quer dizer, o sofrimento, assim como a hostilidade para com o ser humano e os demais animais da própria natureza cósmica. O ser humano perdeu a liberdade e ficou incapaz de realizar no futuro nenhuma obra meritória se não recebe a graça divina, ainda que ficasse com uma liberdade total para fazer o mal. Outros dogmas implicados é o da redenção de todos os homens por Cristo que sofreu a morte de cruz para salvá-los e o da criação da alma por Deus..

                Se o homem carece de liberdade para o bem, carece também de qualquer autonomia, que não é outra cousa que a liberdade de decisão, no caso da eutanásia, sobre a própria vida e, portanto, da liberdade de pôr fim a ela, quando deixou já de ter valor, nas condições em que a comunidade o determine, que, evidentemente, têm que ser razões nas quais se comprove dum modo fidedigno que essa vida deixou de ser uma vida propriamente humana. A CEE nega precisamente essa autonomia, fundamentando a sua posição em que o homem pretende ter uma autonomia absoluta, tese a todas as luzes fora da realidade, e em que a autonomia humana está ligada ao bem, com o qual pretendem os dirigentes religiosos subordiná-la a Deus e, consequentemente à religião. Estão no seu direito em crer que existe um deus sábio, bondadoso, providente, etc. do que eles são os interpretes fidedignos, mas então quiçá poderiam explicar-nos porque no mundo que ele criou existe tanta dor e tanto sofrimento, tanto físico como moral. Não sabia fazer nada melhor? Ou é que gosta de contemplar o sofrimento humano e dos demais animais?

                A CEE reafirma a dignidade humana concebendo-a como algo que existe nele independentemente das suas vicissitudes vitais históricas, só por ser humano “com independência de qualquer outra circunstância como raça, sexo, religião, saúde, idade, habilidade manual, capacidade mental ou econômica”, têm dignidade como tais, e esta dignidade –dizem- não se pode construir só sobre a autonomia. Mas a dignidade humana não é uma ideia platônica existente como tal nos indivíduos, senão que é somente o conjunto de direitos e de atos que pode exercer numa determinada comunidade, e de ai que um ser humano que está excluído socialmente, que não tem onde nem com quem viver, não pode viver com total dignidade. Igualmente um ser que sofre, sem esperança de cura e pode que sem pessoas achegadas que o atendam, dificilmente se pode dizer que possa desenvolver uma vida digna.

                A dor desempenha um rol vital no cristianismo. No paraíso concebe-se como castigo polo pecado. Na redenção de Cristo como fonte de libertação dos humanos da escravidão do pecado, ainda que é dificilmente admissível que Deus recorresse à morte do seu próprio filho, quando podia fazê-lo pronunciando uma palavra ou com um mero gesto. E para os cristãos, a dor converte-se num ato de identificação com o sofrimento de Cristo, ainda que isso não leve a um masoquismo estéril. Por isso, seria louvável sofrer também nos últimos momentos da vida, ainda que um leve uma vida própria dum vegetal, como é o caso dos que padecem demência senil, Alzeimer Ela, esclerose múltipla,... nos últimos  estádios da sua vida.

18 feb 2020

A eutanásia segundo a CEE


                Li um artigo do meu amigo Torres Queiruga, titulado «A eutanasia, cuestión humana» e realmente fiquei surpreendido porque considerava que o seu pensamento se desmarcava do posicionamento da igreja oficial e que oferecia algo novo ao pensamento teológico galego atual, especialmente em temas muito próprios dos nossos tempos, como é o da eutanásia,mas fiquei decepcionado ao ver que coincide com o documento da Conferência Episcopal Espanhola «Semeadores de Esperança», ao que remite os leitores. O que vou dizer, portanto, refere-se tanto a um como à outra.

                Torres Queiruga cita a eito a frase «o que é bom para Ramón Sampedro é bom para Deus», mas que dito do sonense pareceria que implicava uma defesa da eutanásia, que é o que o marinho demandava; esta expressão se quer expressar algo distinto, só pode significar que o homem tem um rol na determinação dos valores, que o pensamento humano conta para Deus, ainda que isto tem por outra parte, umas consequências muito preocupantes porque levaria a ética polo caminho do relativismo individualista, totalmente oposto ao absolutismo que carateriza a ética cristã. Mas em vista da identificação de Queiruga com o pensamento oficial, essa expressão só pode significar uma mera tautologia segundo a qual o que é bom para Ramón Sampedro é bom para Deus, porque somente é bom para ele o que concorda com o critério de bondade de Deus.

            Insistem tanto Torres Queiruga que a eutanásia é uma questão humana e isto dizem-no para desprender-se do tufinho religioso que não goza de predicamento na sociedade de hoje, precisamente polo descrédito experimentado polas práticas e polos posicionamentos teóricos dos seus teólogos e dos seus dirigentes. Eles intentam deixar claro que há uma dimensão humana prévia e mais fundamental que a religiosa, que é a humana e que, no tema da eutanásia se movem nesse terreno e não no religioso propriamente dito. O seu complexo religioso obedece a que historicamente conduziram a religião positiva polo caminho do absurdo e da sem razão. Muitos dos que não somos cristãos, mas sim religiosos, pensamos que Deus é o que vai conosco, pois como diziam os estoicos Cleantes e Arato, que Paulo cita em vão: em Deus vivemos, movemo-nos e estamos.

            Insistem tanto Queiruga como a CEE que a eutanásia não é imediatamente um problema religioso, senão um problema moral, como se um problema religioso não fosse também um problema moral; e a CEE diz que se trata dum ato moral, mas moral é praticamente todo, salvo quiçá os atos insignificantes. Estas separações da realidade em compartimentos estancos separados podem ser úteis para uma análise da realidade, mas podem dificultar a sua compreensão se se crê que o que nós separamos com o pensamento, está separado na realidade. O que é curioso é que depois de sinalar que é um problema radicalmente humano e moral, não dêem nenhuma solução dentro desse âmbito no que dizem mover-se, e a sua alternativa reduz-se a pregoar as receitas católicas mais integristas. Se fossem capazes de fazê-lo sempre poderia dar-se uma certa aproximação com os demais setores sociais, mas não estão interessados nem quiçá preparados para mover-se nesse âmbito; em todo caso não o demonstram.

            Depois de lançar-lhe pulhas a eito aos que não concordam com o seu discurso único, tanto Queiruga como a CEE pedem diálogo honesto, sossegado e construtivo, mas quando isto provém de pessoas ligados por dogmas inalteráveis um pode perguntar-se a onde conduz tal proposta de diálogo; aliás um pode perguntar-se que necessidade têm de novos ecos difusores do seu pensamento quando se trata duma instituição com meios de comunicação próprios, que nos obrigam a que lhos paguemos incluídos os que não concordamos com eles; com representantes indiretos no Parlamento, alguns que inclusive querem ressuscitar o nacional catolicismo, com o beneplácito público de hierarcas clericais; com classes de religião pagadas por todos os contribuintes, com as catequeses, o púlpito e o confessionário,... Um pode muito legitimamente pensar que o seu pensamento dispõe e meios de transmissão suficientes para ser transmitido à cidadania, e muito superiores aos que dispõem a grande maioria dos grupos sociais. Parece não obstante que isto não lhe abunda e que querem ter também diálogo direto com os governantes de turno, procurando desta maneira premer os poderes públicos para conseguir impor os seus critérios a toda a sociedade.

            Quando não se quer aceitar a realidade social, que se pronuncia com a taxa dum 84 por cento em prol da legalização da eutanásia, e se parte da desqualificação da «morte digna», «autonomia», ou «libertação», humanas desprezando-as como eufemismos, o diálogo é mais difícil. Consideram que a autonomia do paciente não pode ser concebida como um absoluto, e, por conseguinte, a sua liberdade não pode ser desvinculada da verdade e o bem. Isto significa que para a CEE a verdade e o bem existem à margem dos seres concretos, numa espécie de mundo platônico e que servem de referência para qualificar a bondade ou malícia da conduta humana, tendo como intérpretes na terra os hierarcas religiosos. Outra maneira mais de desapoderar os seres humanos concretos. A autonomia, a partir de Kant, é considerada como um princípio reitor dos atos humanos individuais e dos povos, procurando ampliar o seu âmbito na medida em que o permite a situação concreta que nos toca viver e contribuindo de maneira notória à maioria de idade da razão e, consequentemente da humanidade. Não é surpreendente que a CEE negue tanto o poder de decisão dos indivíduos como dos povos, entre eles o poder de decisão sobre a própria vida, incluso quando já não é uma vida propriamente humana e qualificando de bem moral a união forçada dos povos de Espanha. Historicamente a repressão sobre os fieis chegou a tanto que os clérigos se consideraram com direito a decidir sobre a vida mais íntima dos indivíduos, prescrevendo como deviam fazer o amor ou limitando o prazer sexual ao seu bel prazer.

            A dignidade humana pregoada pola CEE não pode consistir num vocábulo vazio de contido, senão que para que exista dignidade há que empoderar a cidadania para que possa tomar as decisões e assumir a responsabilidade sobre a sua conduta e a sua vida nos casos em que deixou de ser uma vida humana digna de tal nome; para que possa exercitar uma liberdade responsável sem estar mediatizada por instituições que os infantilizam atribuindo-se a monopolização da verdade, da interpretação da Bíblia, do sentido dos chamados dogmas revelados; da necessidade da graça para qualquer ato meritório e a incapacidade de obrar o bem; adjudicando-se o poder de perdoar os pecados, proclamando dogmas impermeáveis à razão e a toda cordura como o do pecado original, intitulando como infalíveis em temas de fé e costumes os seus hierarcas máximos apesar das contradições entre eles, de atribuir-se poderes para submeter povos inteiros à escravidão, como fez Nicolau V, fomentar as cruzadas, estabelecer a inquisição, etc. Concordo com a CEE em que não temos direito a dispor arbitrariamente da própria vida, mas tampouco outros tem direito a pôr-nos corpetes irrazoáveis e arbitrários desde os seus preconceitos de grupo e de conceiç4oes ultrapassadas. .