27 nov 2015

Democracia para os nossos dias (IV)



Democracia e divisão de poderes

A divisão ou separação de poderes é a ordenação e distribuição das funções do Estado pola qual se atribui a órgãos ou organismos distintos a titularidade de cada uma delas.

A divisão de poderes é uma doutrina e uma prática relativamente recente, pois não existia nem na antigüidade greco-romana nem na Idade Média. Em Grécia, as distintas funções do Estado podiam ser desempenhadas pola mesma pessoa, inclusive nas cidades-estado democráticas. A democracia não tinha limites, pois os cidadãos varões maiores de idade podiam decidir em pessoa sobre todo. A primeira conclusão que podemos extrair é que a democracia, pola menos a direta, pode existir sem divisão de poderes.

O mesmo podemos dizer do império romano no que o poder do príncipe era absoluto. Como exemplo, imos citar um texto do imperador Constantino I, do ano 325: “Se alguém de qualquer lugar, ordem ou dignidade, está convencido de poder provar de maneira veraz e evidente contra qualquer dos juízes, condes, amigos ou palatinos, que não atuou íntegra e justamente, que aceda intrépido e seguro, que me interpele: Escutarei todo, examinarei todo e se se tiver provado, vingar-me-ei eu mesmo. Que fale, que fale seguro e bem consciente; se se tiver provado, como disse, vingar-me-ei daquele que, até este tempo me induziu a erro com simulada integridade, mas a aquele que tiver denunciado e comprovado acrescentá-lo-ei com dignidades e bens” (Código de Teodósio, 9.1.4). Em Roma, o imperador era a máxima autoridade religiosa que ostentava o título de Sumo Pontífice, política e militar. Como chefe político, desempenhava as funções legislativas, executivas e judiciais.

Vai ser o liberal John Locke (1632-1704) o primeiro que propõe uma divisão de poderes num momento de formulação do pensamento liberal e de ascenso da burguesia á cimeira do poder económico e político, em substituição da decadente nobreza latifundiária. Locke formula a sua doutrina da divisão de poderes no capítulo 12 do Ensaio segundo sobre o Governo civil, no que afirma que existem três poderes: a) legislativo, que "tem um direito a indicar como deve ser empregada a força da comunidade para preservar a força do Estado para preservar a comunidade e os seus membros” (§ 143); b) executivo, que "mira pola execução das leis que se fizeram, e permanecem em vigor” (§ 144); e c) federativo ou natural, que tem como objetivo que "sejam geridas polo público as controvérsias que se produzem entre qualquer home da sociedade com aqueles que estão fora dela, e que uma injúria dada a um membro do corpo compromete o todo na sua reparação” (§ 145), por tanto, o que hoje se entende por relações exteriores e a declaração da guerra ou a concertação da paz. O poder supremo, enquanto subsiste o governo, pois em caso contrário recairia na Comunidade, é o legislativo e todos os demais são delegados e devem estar submetidos ao mesmo. Com todo, "fica-lhe sempre ao povo o poder supremo de apartar ou cambiar os legisladores, se considera que atuam duma maneira contrária á missão que se lhes confiou" (§ 149), voltando neste caso o poder a quem lho entregou. Locke estava totalmente oposto ao absolutismo porque considerava que “o poder absoluto arbitrário, ou o governo sem leis fixas estabelecidas, não podem nenhum deles harmonizar-se com o fim da sociedade e do governo” (§ 137), que é preservar as vidas, liberdades e bens dos homes, e segurar a paz e a tranqüilidade mediante normas estabelecidas de direito e propriedade. Pareceria, por conseguinte, lógico que defendesse a separação de poderes para evitar o absolutismo, mas somente fundamenta a separação do legislativo a respeito do executivo no fato de que se fossem as mesmas pessoas as que legislam e executam as leis, “daria lugar a que se eximissem da obediência as leis que eles fazem, e ajustassem a lei, na sua redação e execução, ao seu próprio proveito privado, e ter por isto interesse distinto do resto da comunidade, contrário ao fim da sociedade e do governo”.  (§ 143). As divisões posteriores omitiram o poder federativo, integrando-o no executivo, e estabelecerão como terceiro poder o judicial, que, para Locke ficava integrado no executivo.

Foi o barão de Montesquieu (1689-1755) quem propôs a divisão de poderes que foi unanimemente aceitada pola posteridade: legislativo, executivo e judicial. Em todo Estado há três poderes: legislativo, executivo e judicial. A sua separação constitui a garantia da liberdade. "Todo estaria perdido se o mesmo home, o mesmo corpo de pessoas principais, dos nobres ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os delitos ou as diferenças entre particulares" (Do espírito das leis, liv. 11, 6). Para ele não haveria liberdade se o poder legislativo está unido ao executivo na mesma pessoa, “porque se pode temer que o monarca ou o Senado promulguem leis tirânicas para fazê-las cumprir tiranicamente”. Tão-pouco haveria  liberdade se o poder judicial não está separado do legislativo, porque “o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrária”; nem haveria liberdade se o legislativo não está separado do executivo, “porque o juiz teria a força dum opressor”. Para este autor, a separação de poderes, justifica-se, pois, em aras da liberdade, que não consiste em fazer o que um queira senão que “é o direito de fazer todo o que as leis permitem, de jeito que se um cidadão pudesse fazer o que as leis proíbem, já não haveria liberdade, pois os demais teriam igualmente esta faculdade" (Ibid. 11, 2).  Com todo, para ele, a liberdade não se dá somente na república ou democracia, senão também na monarquia e na aristocracia; nem a democracia tal como ele a entende se identifica com a democracia atual. Para Montesquieu, quando “o povo inteiro tem o poder soberano, estamos numa democracia”. (Ibid., liv. 2,2), que tem como sistema próprio de eleição o sorteio, enquanto que a designação por eleição corresponderia á aristocracia. (Ibid., 2, 2).

Nas sociedades democráticas está aceito que a soberania reside no povo, mas ainda não está aceito em muitas delas que reside em cada um dos povos e onde há vários povos há várias soberanias. Os diferentes poderes do Estado são como delegados dessa soberania popular, e o soberano, quer dizer, o povo, tem interesse e direito a ordenar estes poderes para obter um funcionamento harmônico das instituições públicas em serviço dos seus interesses, e a divisão de poderes, de procedência e natureza liberal, converteu-se num instrumento básico para conseguir este objetivo. Não existia na democracia direta ateniense, porque o soberano atuava em pessoa, mas quando se atua por meio de representantes, faz-se imprescindível. A separação de poderes é, junto com os direitos humanos, outro contributo importante do liberalismo na conformação da democracia representativa atual, que visam ambos a limitar o poder do Estado sobre o indivíduo. A separação de poderes é um instrumento necessário do soberano, ou seja, do povo, para evitar a concentração excessiva do poder em qualquer dos órgãos do Estado, estabelecendo um sistema de controles e contrapesos entre os três poderes limitativos do poder entre eles, com objeto de garantir o correto funcionamento das instituições e evitar a corrupção política. Podemos afirmar que a qualidade democrática dum país se pode deduzir da qualidade da sua divisão de poderes, e, ao invés, que, a qualidade da sua divisão de poderes, se pode deduzir da sua qualidade democrática. Também podemos aplicar isto mesmo ao caso da corrupção, pois também, a partir dum oceano de corrupção política, como a que existe no Estado espanhol, se pode inferir que a divisão de poderes não funciona, que falham os controles, devido a que os que ostentam o poder estabeleceram uma separação de poderes que atua em benefício próprio, ou, noutras palavras, que se criou um sistema para favorecer as práticas extrativas da oligarquia política partidária e da oligarquia econômica.



O que está passando nos nossos dias, nomeadamente a nível do Estado espanhol, é que os representantes do soberanos, ou seja do povo, des-empoderaram a este da sua soberania e erigiram-se eles mesmos nos autênticos soberanos de fato, criando uma espécie de oligarquia partidária que é quem gera todo o invento de costas á cidadania, e o povo converteu-se de fato no legitimador dessa soberania mediante eleições periódicas. Patentiza-se isto claramente com a reforma constitucional do PP e PSOE para antepor os interesses da oligarquia econômica sobre os seus próprios, e sem dar-lhe audiência ao despossuído. Agora se aprestam a assinar, incluso parece que antes de lê-los, os tratados internacionais ultra-secretos, como uma demonstração da sua fé inquebrantável na transparência, TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), e o TISA (Trade in Services Agreement), para consolidar o seu domínio oligárquico a nível global e liquidar qualquer empoderamento e poder de decissão da cidadania.

Afonso Guerra declarou em 1985, após a reforma da Lei do Poder Judicial, que “hoje enterramos a Montesquieu”, porque, pretextando que o Conselho Geral do Poder Judicial era um órgão corporativista, assinalaram a nomeação dos seus membros ao Parlamento, convertendo o Poder Judicial num apêndice do poder legislativo, que finaria com a sua politização e a perda da sua independência. O resultado foi que a retificação dum mal engendrou outro muito maior. O PP promete que despolitizaria a justiça, mas no fundo, não está interessado em fazê-lo porque uma justiça domesticada lhe rende grandes serviços políticos aos que ostentam o poder no Estado, entre outros, manter humilhados a todos os demais povos que não sejam o espanhol, como está a passar com o problema catalão. Este despropósito judicial acrescenta-se com a perda de qualquer independência do ministério fiscal, que, teoricamente atua de acordo aos princípios de unidade de ação, hierarquia e imparcialidade, mas que na prática essa hierarquização, ao ter na sua cimeira um fiscal geral elegido polo poder político de turno, tem como conseqüência que a sua imparcialidade se veja reiteradamente questionada pola sua atuação prática. Além disso, ao ser os partidos espanholistas os que controlam o poder legislativo e o executivo, a eleição dos membros do Conselho Geral do Poder Judicial e do Tribunal Constitucional vai recair sempre em vogais favoráveis á defesa e promoção dos interesses do povo espanhol, negando na prática os demais povos que convivem no Estado.

Mas, o problema é ainda muito mais grave se temos em conta que também o poder legislativo não é mais que um apêndice do poder executivo, e este um apêndice do chefe do partido ganhador das eleições que foi quem propõe, em última instância, os candidatos ao Congresso e ao Senado. Isto significa que uma pessoa pode pessoalmente controlar o seu partido e os três poderes do Estado, e, como no caso do PP, mesmo um dirigente que foi elegido a dedo polo seu antecessor. Não existem na Constituição Espanhola contrapesos de nenhuma classe á atuação do poder executivo, porque o legislativo é um órgão totalmente submetido ao poder executivo e sem poder de iniciativa autêntica, que se limita a aprovar o que lhe interessa em cada momento ao executivo, que é quem tem toda a iniciativa legislativa. Em EEUU o Presidente pode vetar uma lei aprovada polo Congresso e este tem o poder de não aprovar leis presidenciais, e também de alterar a composição e jurisdição dos tribunais federais. Isto não significa que este sistema de controles estadunidense seja adequado para o Estado espanhol, entre outras cousas, porque o seu sistema político é presidencial e o espanhol é parlamentar, mas si que é necessário que exista um sistema de controles e de independência dos distintos poderes, e, para isto, há que modificar o sistema de eleição do poder legislativo e do poder judicial. 


20 nov 2015

Ubi bene ibi patria


A expressão «Onde um está bem, ai está a pátria» remonta ao poeta trágico romano Pacúvio (220-130 a.e.c.) na sua obra trágica Teucer, fr. 291, citado por Cicerão (106-43 a.e.c.) nas Tusculanas, 5.37.108: «Patria est ubicumque est bene», A pátria está onde um está bem. É esta uma expressão que todo o mundo pode aceitar na sua generalidade, porque todo depende do significado que se lhe dê á palavra bem, que, como dizia Aristóteles, reviste muitos sentidos ao igual que a palavra ser.

Alguns reduzem o seu sentido a Ubi panis ibi patria, onde está o alimento, ai está a patria, e, evidentemente podemos dizer que satisfazer qualquer dos motivos primários: comida, bebida, sexo, sexo, ... é muito importante para todos os animais, incluído o ser humano, embora não tenha para todos o mesmo peso. Não é igual a motivação que presidia o comportamento de Sancho Panza, em procura da ilha Baratária, que a do Quijote. Este é, sem dúvida, o motivo que impulsa o comportamento do emigrante que intenta escapar da penúria econômica. Com todo, é difícil aceitar que o alimento, ao igual que os demais motivos primários, se identifiquem sem mais com a vida boa. A emigração provoca a separação das famílias e a ruptura tanto dos vínculos familiares como sociais com respeito ao seu lugar de procedência e sem lograr enraizar no seu lugar de destino. Um emigrante vive nos países acolhida num ambiente isolado ou todo o mais numa espécie de gueto marginal. Os que, por azar da vida, estudamos fora fomos testemunhas da descarga emocional que se desencadeava nos emigrantes ao chegar á fronteira espanhola, que delatava a situação de morrinha na que vivem no seu desterro da pátria.

O sistema capitalista situa-se onde vê mais oportunidades de benefício, de incremento do capital, independentemente de qualquer consideração de caráter afetivo e de todo vínculo social preexistente. O mundo que pregoa é a do homo oeconomicus desenraizado sem mais interesse que o de pôr-se a disposição do capital, e de ai que, em vez de localizar a riqueza onde estão os trabalhadores, desloca os trabalhadores aos lugares onde se poda produzir um incremento maior dos benefícios empresariais. É um sistema que racha com todas as formas de integração social e reduz o indivíduo a um átomo isolado ante o deus capital. Como diz Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista, “A burguesia despojou da sua aureola a todas as profissões até então reputadas de veneráveis e veneradas. Do médico, do jurisconsulto, do sacerdote, do poeta, do sábio, fez trabalhadores assalariados. A burguesia desgarrou o véu de sentimentalidade que encobria as relações familiares e reduziu-as a simples relações de dinheiro. ... A burguesia não existe mais que a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de trabalho, quer dizer, todas as relações sociais.” (Ediciones elaleph.com, 200, pp. 29-30). Creio que o problema não reside em se as pessoas são assalariados ou Autônomos, porque este conceito é mui pouco analítico, pois engloba situações totalmente dispares. Que tem que ver Pablo Isla com um obreiro manual? Pois, segundo a análise marxista, os dous seriam proletários e submetidos a exploração.  Que tem que ver um professor universitário com um alvanel, seja autônomo ou assalariado? Do que se trata é dos direitos que amparam a um trabalhador e das capacidades extrativas que tem.  É certo que o capitalismo destrui os vínculos familiares e sociais, mas também a proposta marxista do proletariado internacional contribuiu á homogeneização entre as distintas nações e, de passo, possibilitou a consolidação pola oligarquia dum sistema extrativo planetário, e facilitou a submissão dos povos diferenciados perante as oligarquias estatais.

O resultado de dinâmica capitalista é um home cosmopolita, sem laços sociais, sem lugar de residência estável, sem ligação com nenhum particularismo familiar, local ou nacional. Do que se trata é de construir um home desenraizado e á margem de qualquer interesse que não seja o da produção e o consumo, ad majorem gloriam pecuniae. Declara-lhe a guerra ao mais sagrado, sempre que não favoreça o seu poder extrativo sobre a população e a exploração dos recursos planetários. Este mundo criado polo capital, que destrói os vínculos familiares e sociais e as relações de pertença que integram e lhe dão sentido ás vidas dos indivíduos, que aniquila os direitos dos trabalhadores, condenados muitas vezes a jornadas ilegais e abusivas de trabalho a câmbio de salários muitas vezes insuficientes, ao tempo que deixa no paro a milhões de pessoas, sem alternativa nenhuma de futuro, que não é capaz de instaurar uma exploração razoável e sustentável dos recursos escassos e incrementa a polução planetária, deve dar passo a um mundo novo, um mundo ao serviço das pessoas presentes e futuras, um mundo que respeite as diferenças e os laços que lhe dão sentido á vida dos indivíduos. O sistema oligárquico necessita expandir-se para sobreviver, necessita da globalização para continuar a incrementar os seus benefícios, e isto implica que necessita destruir toda vinculação social oposta á sua dinâmica absorvente e vampiresca dos recursos humanos e das matérias primas, numa espiral sem fim. “Impulsada pola necessidadw de mercados sempre novos, a burguesia invade o mundo inteiro. Necessita penetrar por todas partes, estabelecer-se em todos os sítios, criar por onde quer meios de comunicação. Pola exploração do mercado universal, a burguesia dá um caráter cosmopolita á produção de todos os países. Com grande sentimento dos reacionários, quitou á indústria o seu caráter nacional. As antigas indústrias nacionais são destruídas ou estão a ponto de sê-lo. Foram suplantadas por novas indústrias, cuja introdução entranha uma questão vital para todas as nações civilizadas: indústrias que não empregam matérias primas indígenas, senão matérias primas vindas das regiões mais afastadas, e cujos produtos se consomem, não só no próprio país senão em todas as partes do globo” (Ibid. pp. 30-31). Os meios de comunicação são um instrumento precioso em mãos da oligarquia, porque lhe permite bem-dizer o seu sistema de exploração, difundir a «sua verdade» e lograr, desta maneira, o assentimento dos cidadãos ás políticas que põem em prática. O resultado é um des-empoderamento da cidadania e dos produtores e pequenos empresários locais, condenados a trabalhar para e como satélites da grande expressa transnacional. O caráter de reacionário aplicado aos que defendem a indústria local é improcedente, pois a indústria local cria riqueza para a comunidade onde se insere sob a forma de postos de trabalho, valor acrescentado, tributos, aproveitamento dos recursos locais, ... e permite aforrar energia e dispêndios em transporte, muito importante numa economia sustentável. 

Castelao combateu o provérbio «ubi bene, ibi patria», reduzido á mero bem-estar econômico, por considerar que isso destrói as pátrias. “Eu topo-me bem onde poda viver com desafogo, (porque levam a pátria na sola dos sapatos)” (Sempre em Galiza, p. 12). Combateu denodadamente o cosmopolitismo e optava polo universalismo, pola coordenação do particularismo com o universalismo; defendia o internacionalismo mas não um internacionalismo abstrato senão um internacionalismo que conte com as sociedades presentes, onde os homes adquirem a sua identidade grupal e que lhe darão o seu selo próprio ao desejado futuro Estado mundial. “Diga-se o que se queira, a sociedade futura terá de criar-se pola conjunção das sociedades presentes, de modo que o Estado mundial leve o cunho das pátrias que o integram” (Ibi. P. 433). 

Outros autores reduziram o provérbio «ubi bene, ibi patria», a «ubi libertas, ibi patria», onde há liberdade ali está a pátria, mas o bem é muito mais que a liberdade. A liberdade integra, mas não em exclusiva o ser humano, que, além do poder de decisão, tem sentimentos, paixões, emoções, necessidade de carinho de proteção, de filiação, ... e, por tanto, todo isto forma parte também do bem humano.

Outros restringem o bem do provérbio «ubi bene, ibi patria», ao amor, «ubi amor, ibi patria», que é também um fator muito importante em todos os animais, e que contribui ao equilíbrio pessoal, a dotar de confiança em si mesmos aos amantes, permite satisfazer as pulsões sexuais entre parelhas e perpetuar-se na prole. Segundo Freud, Eros é, junto com thanatos, ou instinto agressivo,  a pulsão básica do ser humano que determina a sua conduta, uma pulsão que necessita satisfazer-se dum modo imperioso, mas tão-pouco o amor o é todo.

O bem inclui a satisfação dos motivos primários: comida, bebida, sexo, sono; mas também das necessidades de comunicação, liberdade, proteção, amor, auto-identificação, relações de pertença, criatividade; em definitiva, a auto-realização das potencialidades contidas no ser humano.

12 nov 2015

Democracia para os nossos dias (III)



Democracia e representação


No dia de hoje, o modelo de democracia vigorante é a representativa, e não a direta, imperante em várias cidades gregas, principalmente Atenas, na época clássica, que praticamente desapareceu da cena política, apesar de ser, teoricamente, a mais apropriada para um momento em que rege a soberania popular, a soberania dos povos, entendendo por povo o conjunto dos cidadãos duma comunidade dada, e não a soberania nacional, a soberania duma enteléquia abstrata ou ser imaginário, somente existente na imaginação. Segundo Rousseau, a democracia direta é a única legítima, porque, como a lei é expressão da vontade geral, no poder legislativo o povo não pode ser representado. “A soberania não pode ser representada, pola mesma razão pola que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa; é a mesma ou é outra; não há termo médio. Os deputados do povo não são nem podem ser os seus representantes, não são mais que os seus mandatários; não podem concluir nada definitivamente. Toda lei não ratificada polo povo em pessoa é nulo; não é uma lei. O povo inglês crê ser livre, e engana-se muito: não o é senão durante a eleição dos membros do parlamento; desde o momento em que estes são elegidos, o povo já é escravo, não é nada” (O Contrato Social, liv. 3, 15). A vontade geral não se identifica com a vontade de todos, senão com o bem e o interesse comum que prevalece sobre o bem dos particulares. “Há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta atende somente ao interesse comum, a outra mira ao interesse privado, e não é mais que uma soma de vontades particulares” (Ibid. I2, 3). Eu não acredito no conceito idealista da vontade geral, independentemente e á margem das vontades particulares, dos interesses e necessidades dos indivíduos reais e concretos, e considero que a ética deve ter como finalidade ocupar-se destas realidades concretas e não de entidades abstratas e irreais. Também me parece idealista e irreal propugnar a existência dum bem comum, á margem da satisfação das necessidades e interesses dos indivíduos concretos e reais, que ninguém foi capaz de definir com precisão, e que foi uma expressão utilizada para justificar as maiores repressões a atrocidades. Tomás de Aquino afirmava que a lei tende ao bem comum, mais isto não foi óbice para que condenasse com a pena de morte a apostasia e justificasse a escravatura como de direito natural enquanto á sua utilidade. Os repressores da Inquisição estavam fomentando o bem comum quando castigavam aos que dissentiam ideologicamente, porque assim se procura a salvação eterna das suas almas. Tão-pouco acredito em que a soberania não pode ser representada, ainda que si considero que não pode ser alienada, porque é um direito fundamental dos povos.



Sim considero que a atuação do povo em pessoa é a mais autêntica e deve ter a preferência sempre que seja possível sobre as atuações por representação. Um dos requisitos incluso da eficácia em qualquer gestão é que se aplique o princípio de subsidiaridade que exige que qualquer assunto deve ser resolvido polos agentes ou pola autoridade mais próximos ao problema, e assim, legislar para a agricultura galega é muito distinto que fazê-lo para a andaluza ou valenciana. Quem melhor conhecem os problemas e necessidades são os que estão em contato com eles e não políticos ou técnicos forâneos, polo menos se acreditamos na igual capacidade dos indivíduos que integram os diversos povos, e não em redentores ou supervalores alheios, que tanto racional como cientificamente não se sustém. Isto implica que as decisões devem tomar-se nas comunidades nas próximas aos próprios cidadãos, sempre que não excedam do âmbito comunitário. 



As razões da implantação da democracia representativa obedece, por uma parte, á magnitude dos povos, que não têm comparação com as muito limitadas cidades gregas, mas também a que fornece um marco mais adequado e mais influenciável para o domínio do sistema oligárquico, hoje implantado nos países ocidentais denominados democráticos, e para o seu anseio de desapoderamento da cidadania, que converte a democracia atual muitas vezes, como no Estado espanhol, numa oligarquia com votos. Uma maneira de evitá-lo é aperfeiçoar a noção de representação, e, pola outra, complementar a democracia representativa, hoje quase exclusiva, com a democracia direta mediante a convocatória de referendos. Os povos pequenos, como o galego, podem ter uma qualidade de democracia mais perfeita porque os representantes estão mais em contato com os representados e com os problemas a que se vem enfrentados. Montesquieu definia “o governo republicano como aquele em que o povo inteiro, ou parte do povo, tem o poder soberanoDo espírito das leis, liv. 2, 1). Segundo Montesquieu, “pertence á natureza da república não possuir mais que um pequeno território, pois sem esta condição não pode subsistir. ... Numa República extensa, o bem comum sacrifica-se ante mil considerações, subordina-se a exceções, depende de acidentes. Numa república pequena, o bem público apalpa-se, conhece-se melhor, está mais perto de cada cidadão, os abusos estão menos protegidos e, por tanto, menos protegidos” (Ibid. Liv. 8, 16). Rousseau considerava que a democracia convém aos países pequenos e pobres, (Ibid. Liv. 3, 8), mas considero que a história não lhe deu a razão no tocantee á pobreza. Nos nossos dias, um país como Luxemburgo, é muito pequeno e rico. 



Dizer um povo pequeno não significa um povo fechado em si mesmo. Devemos ter presente também que vivemos numa sociedade global, que fomenta as intercomunicações e intercâmbios de todas classes entre os países e os cidadãos, e, por tanto, existe a necessidade de apertura á comunidade mundial, se bem isto nunca deve ser motivo de que se diluam as diferenças, as personalidades dos povos diferenciados e os seus sinais de identidade no coletivo global, criando um home informe, cosmopolita, desenraizado sem vida e sem alma, uma cultura de «aeroporto», homogeneizadora dos modos de sentir, pensar, consumir, etc. Um povo somente pode contribuir criativamente ao acervo cultural comum da humanidade desde o seu fato diferencial.   



Mandado representativo e mandado imperativo



O mandado representativo entende-se como um apoderamento político que se caracteriza por ser livre, tanto por parte de quem o dá como do seu destinatário; geral, enquanto que não se precisa o seu alcanço; e não revogável, ou seja, que os que o outorgam não podem deixálo sem efeito. Contrapõe-se ao mandado imperativo, que é um poder outorgado a outro com a finalidade de desenvolver alguma atividade ou gestão, definida, enquanto ao tempo e ao contido, no contrato de apoderamento, sem admitir nenhuma modificação por parte do destinatário, e revogável em qualquer momento. Quando Rousseau diz que os deputados não podem ser mais que os seus comissários ou mandatários, está apelando ao mandado imperativo, que seria o único válido.



A maioria das constituições ocidentais tem proibido o mandado imperativo, e isso indica que os representantes elegidos podem atuar segundo o seu próprio critério e sem ter que respeitar os compromissos adquiridos ou aceitados verbal e/ou programaticamente com os seus eleitores, e sem que estes, por mais burlados que se sintam, podam fazer outra cousa que penalizá-lo não renovando-lhe o mandado nas vindoiras eleições. Um caso bem eloqüente é o do presidente Rajoy que inclusive se ufanava de que não cumpria o seu programa mas si o seu dever, como se a apelação á sua hipotética consciência individual o libertasse de qualquer responsabilidade política. A proibição do mandado imperativo remonta á Revolução Francesa, que na Constituição do ano 1791, estatuiu que “Os representantes eleitos polos departamentos não serão representantes de nenhum departamento em particular, senão da Nação inteira e não se lhes poderá conferir nenhum mandado” (art. 7, Secc. III, Cap. I, Título III). Na Constituição de Cádiz desaparece o mandado imperativo, próprio da sociedade estamental, e estipula-se no seu artigo 27 que as “Cortes são a reunião de todos os Deputados que representam a Nação, nomeados polos cidadãos”, e este mandado representativo renovou-se nas constituições sucessivas, incluída a de 1978. Na Constituição da II República diz-se que “os deputados uma vez eleitos, representam á nação” (Art. 53). Cumpre ter presente que uma cousa é afirmar que os deputados representam a nação ou o povo espanhol, como se diz na CE de 1978, e outra os condicionantes dessa representação, que, de por si, não exclui certa submissão ás demandas cidadãs assumidas polos candidatos, senão somente das que sejam incompatíveis com a representação do todo, enquanto que a proibição expressa do mandado imperativo si que a elimina.



As razões para a defesa do mandado representativo apelam a que a assembléia é o espaço de confrontação de idéias e de construções de consensos, que seria inviável se os representantes tivessem que respeitar compromissos previamente adquiridos sem poder modificá-los. Não sei se noutros países o Parlamento cumpre esta função, mas é claro que no Estado espanhol não é assim. Os consensos não se forjam nos plenos senão nos cenáculos ou escritórios e nos plenos unicamente se expõem as racionalizações do acordado que se querem transmitir á cidadania. Isso poderia aplicar-se ao Parlamento da Segunda República, na que alguns oradores como Ortega chegaram a cambiar o voto dos deputados para evitar uma República federal. Por outra parte, os acordos entre partidos políticos, muitas vezes impresindíveis, poderiam e deveriam ser contemplados nos mesmos programas eleitorais e inclussive prever certa margem de manobra na atuação do representante ou precisando a ratificação dos acordos por parte dos representados.



A proibição do mandado imperativo permitiu-lhe aos deputados assaltar o céu da soberania popular e erigir-se de fato, durante toda a legislatura, nos autênticos soberanos, destronando, desta arte, a soberania popular, que se reduz a selecionar, normalmente cada quatro anos, quem vão ser de fato os novos soberanos. Cria-se assim um corpo intermédio, usurpador da soberania, entre a cidadania e o Estado. As conseqüências não se deixam esperar, e traduzem-se na expressão duma cidadania irada que gritava no 15 M: não nos representam! Não nos representam!, ante a surpresa dos próprios afetados, mas essa é a realidade pura e simples. Um dos efeitos perversos do mandado representativo exempñlifica-se com os freqüentes casos de transfuguismo político, nunca devidos a autênticos câmbios de critério a nível ideológico, senão a puros interesses crematísticos dos afetados. Estamos assistindo a esta altura na Galiza, a um segundo tamaiazo, por parte do deputado provincial lucense Martínez, que, protegido pola proibição de mandado imperativo, se enraivece caprichosamente porque outro partido distinto não o apoiou para presidente da Deputação por estar imputado judicialmente, como se tiver direito algum natural ou divino, a ocupar esse carrego político, e deixando a toda a cidadania provincial numa situação de beco sem saída durante toda a legislatura em que mantém a alíquota parte usurpada de soberania.



Por outra parte, a CE, art. 1, estabelece que a “soberania nacional reside no povo espanhol do que emanam os poderes do Estado”, e todos os deputados que se consideram que não pertencem ao povo espanhol, senão ao vasco, catalão ou galego, vem-se obrigados a representar a soberania dum povo que não é o seu e que nega a sua própria realidade nacional no mesmo ato constitucional. Este é outro câmbio que procederia fazer para deixar claro que a soberania reside nos povos nação do Estado espanhol e não só num deles.



Por outra parte, os estados atuais são estados de partidos, considerados pola mesma CE como “instrumento fundamental para a participação política” (art. 6), que são os que apresentam os candidatos, pagam as campanhas e decidem a ordem nas listas ele, o qual implica que considerem que existe uma certa dependência dos deputados eleitos a respeito do partido, que não deveria ver-se chantageado irracionalmente por parte deles, e os mesmos eleitores podem ver-se burlados por decisões deste tipo. Por outra parte, a proibição do mandado imperativo é dificilmente compatível com o estabelecido na Lei Orgânica 6/2002, de 27/06/2002, de Partidos Políticos que estabelece que é “obrigação dos afiliados a de aceitar e cumprir os acordos validamente adotados polos órgãos do partido”, e esse dever de aceitação implica um mandado imperativo do partido sobre o afiliado eleito. O mandado imperativo véu conservando-se, dum modo rotineiro nas constituições, como um resto arcaico, mas considero que, para proteger a soberania popular, haveria que proceder á sua supressão e a sua substituições por mecanismos, como pode ser a sujeição a um programa comum, a realizar de modo obrigatório, salvo que se aduzam e o povo aprove câmbios excepcionais, que garantam que exista também uma política global de país e não só um cúmulo de interesses particulares.



Na Galiza, Vicente Risco defendia em 1930 que “se admitimos, como é necessário admitir dentro do sistema liberal, que o povo é o depositário da soberania, a relação que há entre ele e os deputados é de mandante a mandatário. Isto não tem volta. Então temos que, sendo todo mandado essencialmente revogável, pois o mandado não pode ter mais duração que o tempo que lhe atribua o mandante, todo mandado eleitoral deveria ser limitado. Por que o que se admite em Direito civil não de há admitir em Direito político” (O problema político de Galiza, VII).  




4 nov 2015

Democracia para os nossos dias (II)

Democracia e direitos humanos

No artigo anterior, delineamos algumas das características da democracia, entre elas a participação entre pessoas iguais com objeto de que cumprir o princípio de que «cada pessoa conta como um e somente como um», ou «uma pessoa um voto»; fizemos observar que a democracia não se pode identificar sem mais com o governo da maioria, como pôs de relevo Alexis de Tocqueville, quando diz que a maioria dum povo está submetida á decisão da sociedade universal e obrigada a cumprir a sua lei que é a justiça, e nunca pode abusar dos direitos das minorias, e, além disso, que se dá uma potencial tensão entre maioria e minorias. Destacamos também que a democracia surge no período liberal que se caracteriza pola defesa dos direitos humanos individuais, e do lema revolucionário francês: liberdade, igualdade, e fraternidade. Não é casual que surjam a esta altura as primeiras declarações de direitos humanos, como a Carta de Direitos de Filadélfia, de 1787, e a Declaração dos direitos do home e do cidadão, da Revolução Francesa de 1789.

A democracia em Grécia tinha como traços distintivos: ser direta, porque os indivíduos participavam em pessoa na tomada de decisões; e total, no sentido de que não existiam limitações ao que a assembléia ou eclésia pudesse decidir. Isto deu lugar a que um cidadão eminente como Sócrates fosse condenado a morte por uma acusação que se referia a liberdade de pensamento e de culto.  A democracia moderna surgiu praticamente no século XX, embandeirada por países como Austrália e Nova Zelanda, no seio, segundo o Bóbbio, duma concepção individualista da sociedade, contraposta á organicista da Idade Antiga e Média, á que contribuíram o contractualismo dos séculos XVII e XVIII; o nascimento da economia política, para quem o sujeito é o home individualmente considerado, o homo oeconomicus e não o politikón zóon (o animal político) da tradição clássica greco-medieval; e o utilitarismo de Bentham e Mill, que partem de estados individuais como o prazer e a dor, e definem o bem comum como a felicidade do maior número possível de indivíduos.

Ortega e Gasset, que nunca foi um democrata muito convencido, sublinhou a antinomia entre liberalismo, que implica direitos individuais, que limitam o poder do povo; e democracia, governo do povo, da totalidade dos cidadãos; e pode-se ser, dizia, mui liberal e nada democrata ou mui democrata e nada liberal. Considero que Ortega se bem tem razão ao sinalar esta tensão entre ambas, mas isto, por uma parte, não é um inconveniente senão uma vantagem, e, pola outra, é evidente que não se pode ser democrata e nada liberal na acepção que a democracia tem nos nossos dias. Recolher o legado do liberalismo não é uma objeção contra a democracia moderna senão que é uma garantia que esta oferece aos indivíduos, que seria complementada com as garantias que nos dão os direitos coletivos.   

Na história da filosofia política, desde o mesmo Platão, estabeleceu-se a contraposição entre as pessoas individuais e as coletivas, quer dizer os povos. Assim, se uma pessoa tem liberdade para decidir, também os povos tem direito de autodeterminação; se uma pessoa pode expressar-se na língua dos seus antepassados, um povo deve ter poder para conservar essa língua e poder transmiti-la ás novas gerações; se um indivíduo pode ter iniciativa para criar centros de ensino, um povo deve poder também estabelecer o sistema de ensino que melhor lhe acomode. Por tanto, os direitos humanos podem ser individuais e coletivos. Entre estes, os mais importantes são os de autodeterminação, autogoverno, direito ao controle dos seus próprios recursos, direito a legislar sobre a própria língua, cultura, etc.

As liberdades proclamadas nas primeiras declarações de direitos humanos são as civis- políticas e econômicas individuais, ou direitos da primeira geração, que tinham por objeto limitar o papel do poder político frente ao indivíduo, no sentido de estabelecer um reduto privado individual que esse poder político tem que respeitar e no que não pode intrometer-se. A democracia deixa de ser total, e ela mesma se auto-limita nas suas atribuições. Isto faria inviável que se repetissem inumeráveis casos históricos de pessoas condenadas por delitos de opinião, consciência, culto, etc. A Constituição Espanhola garante, como não podia ser menos, estes direitos individuais, mas podemos observar que não sempre conseqüentemente, pois, embora se diz que todo se pode defender sempre que se faça polas vias pacíficas, existe na prática uma criminalização do independentismo a nível sócio-político, como podemos observar com o que está a passar a respeito do problema catalão. Quando uma pessoa pensa algo que a legislação comunitária considera como lícito, deve também poder realizar o que pensa, e isto vale tanto para uma pessoa individual como para uma pessoa coletiva, ou seja, um povo. Mas essa mesma CE ignora totalmente os direitos coletivos, salvo os referidos ao povo espanhol.

Os diretos humanos da primeira geração careciam de virtualidade prática porque é impossível exercê-los se se carece dos meios econômicos necessários, e, por isso, foram completados com os direitos da segunda geração, que são os direitos socioeconômicos e culturais, que visam fundamentalmente que o poder político poda intervir na economia, frente ao laissez faire do liberalismo puro, para poder redistribuir a riqueza,  e que todos podam desfrutar dum mínimo vital com objeto de conseguir uma certa liberdade e igualdade reais e não meramente formais. Estes direitos também podem ser individuais, como o direito á propriedade privada, ao trabalho, ao descanso, ás vacações periódicas retribuídas, etc.; e grupais, como o direito a dispor dos recursos existentes no próprio território, direito a desenvolver uma economia auto-centrada, direito a legislar sobre as formas de organização social, etc. No Estado espanhol, a regressão que padecemos nas duas últimas legislaturas políticas foi mui notória. Milhões de pessoas perderam o seu posto de trabalho, apesar de que a Constituição consagra o direito ao trabalho; milhares de pessoas foram despejados das suas vivendas por uma crise que eles não provocaram, apesar de que a CE e a Declaração Universal de Direitos Humanos estatuem que todos têm direito á vivenda; milhões de pessoas viram congelados quando não diminuídos os seus salários, convertidos muitas vezes em salários de miséria, apesar de que a Declaração Universal de Direitos Humanos estabelece que toda pessoa “tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória que lhe assegure, a si como á sua família, uma existência conforme á dignidade humana”; milhões de trabalhadores perderam os seus direitos laborais, etc.; mentes que medraram notoriamente os benefícios empresariais, as isenções fiscais ás empresas, incrementando as desigualdades socioeconômicas até imites insuportáveis. Quando todo isto acontecia, a cidadania observou estupefata que vivemos num magma de corrupção política generalizado que esvaziou os recursos do país em benefício duns poucos. Com o incremento das igualdades socioeconômicas, voou polo ar o lema «cada pessoa um voto», pois há pessoas que podem determinar a opinião pública em benefício das oligarquias, como está a passar com o ascenso de Ciudadanos.  

Na década dos setenta do século XX, surgem os direitos da terceira geração, que visam limitar o papel do poder político e dos indivíduos frente á coletividade, entre os quais destacam o direito ao meio ambiente, para procurar proteger a saúde das pessoas e a utilização prudente, racional e sustentável dos recursos naturais; e o direito á paz, a viver num ambiente livre de guerras. A este respeito, observamos um retrocesso importante na implantação das energias “limpas” com a paralisação da energia eólica e a portagem ao sol, para desincentivar o auto-consumo energético em benefício das multinacionais. Ao mesmo tempo, constatamos um incremento da atividade bélica em muitos países, e do terrorismo internacional, que motiva o deslocamento de milhões de pessoas dos seus lares e a morte de milhares de pessoas inocentes.     

Os da segunda e terceira geração permitem-nos entrar na democracia pos-liberal, uma democracia na que não conte só o indivíduo senão que o poder político democrático deve ser quem imponha as regras de jogo, em benefício da coletividade, das pessoas individuais ou coletivas, ou seja, os povos. 

Quando se trata de caracterizar a democracia podem-se fixar diversos traços como distintivos, que costumam depender das pessoas que os estabelecem. Alguns reduzem a democracia ao império das maiorias, mas isto pode justificar a tirania dos mais sobre os menos. Em vista disso, outros acrescentar que a democracia é o império das maiorias, sempre com respeito das minorias, mas isto introduz um conceito impreciso de minoria. Eu considero que seria melhor afirmar que a democracia é o império das maiorias, respeitando os direitos humanos, tanto individuais como coletivos; tanto dos indivíduos isolados como dos povos. É necessário aceitar que as formações que obtém maioria, só ou em coligação, devem poder governar, mas isso não pode ser em base a massacrar os direitos dos que estão afetados polas medidas de governo, sejam indivíduos ou povos, que em caso de discordar gravemente com as medidas impostas e não achar vias de solução ás suas aspirações, muitas vezes polos seu caráter de minoria duradoira, devem poder decidir o seu futuro livremente.