18 mar 2016

Infalibilidade papal



O dia 9/03/2016 saltava aos meios de comunicação a notícia de que o influente teólogo suíço Hans Küng (1928-   ) no que pedia ao papa Francisco que se revisasse o tema da infalibilidade papal. Quiçá o termo revisar seja, na sua boca, um eufemismo e que no fundo o que quer dizer é que há que anulá-lo. Em todo caso, diga-o ele ou não, eu considero não só que deve eliminar-se senão que deve fazer-se quanto antes melhor. Eu não podo desenvolver este tema num artigo jornalístico, mas si tenho preparado um trabalho no que o abordo, e aqui vou indicar somente alguns traços sobre como começou a santa mentira.   

Corria o século V e.c., após quase um século de reivindicações dos bispos de Roma, quando o papa Valentiniano III sentou os alicerces do papado tal como hoje se entende, ou seja, como uma primazia orgãnica e disciplinária do bispo de Roma sobre todos os demais bispos da cristandade. O decreto do 8/07/445 reconhecia a primazia jurisdicional do bispo de Roma sobre toda a Igreja, que, por tanto, antes não existia, apoiando assim as pretensões de Leão I na sua controvérsia com o bispo francês Hilário de Arles, que se negava a reconhecer o status jurídico do papa de Roma. O decreto promulgado formalmente, como era habitual, em nome do imperador de Oriente e Ocidente, Teodósio II e Valentiniano III, vai dirigido a Aécio, mestre de ambos os exércitos e patrício e diz: Nem somente repelimos isto, que é máximo criminal, senão que para que não nasça nenhuma turbação entre as igrejas ou que pareça que se diminui em algo a disciplina da religião, julgamos por esta sanção perene para que nem os bispos da Gália nem os doutras províncias lhe seja permitido atentar contra o antigo costume sem a autoridade do venerável varão papa da cidade eterna. Senão que seja lei para todos eles todo o que sancionou e sancionar a autoridade da sé apostólica, de tal modo que se algum dos bispos, chamado a juízo do bispo romano, se negar a comparecer, seja forçado a apresentar-se pelo moderador da mesma província, salvaguardando em todos os aspetos o que os nossos pais deificados acordaram á igreja de Roma” (Novellae, XVII, 3). Tal “antigo costume” é somente uma apelação vaga para justificar algo inexistente. Deste modo, por meio da nomeação episcopal, o bispo de Roma vai-se fazer cargo da progressivamente, no Ocidente, das atribuições sobre a doutrina, que até esta altura era competência do tandem bispos reunidos em concílio, que propunham, e o imperador que dispunha. O bispo de Roma não jogou rol algum relevante na Igreja até esta altura, pois o autêntico papa, a todos os efeitos, era o imperador. O que si houve, a partir do século IV, pressões do bispo de Roma, numa luta pelo poder com a sé de Constantinopla, para impor-se sobre as demais. Nesta luta pelo poder destacaram especialmente os papas Sirício e Dámaso, mas será com Leão I o Magno, que se sentam as bases desse domínio romano, não ainda o poder sobre toda a Igreja, que segue correspondendo ao imperador, entretanto subsistiu o império.

Nem sequer se sabe com certeza da presença de São Pedro em Roma. O primeiro testemunho documental explícito e fiável a este respeito é de Ireneu de Lyon (ca. 130- ca. 202) que no seu livro Contra as heresias, III, 3.2, diz que a igreja de Roma foi fundada e organizada por Pedro e Paulo, mas fundar e organizar não equivale a ser bispo, pois então haveria que dizer que também Paulo foi bispo de Roma e que Pedro e Paulo foram bispos de muitas outras igrejas. Aliás, isto somente indicaria que a esta altura existia esta crença, mas não que realmente fosse assim. Não há nenhum testemunho que explicite que Pedro foi realmente bispo de Roma, mas, uma vez que o imperador de ocidente impôs o primado do bispo de Roma, cumpria buscar testemunhos tanto bíblicos como patrísticos que ratificassem essa tese, utilizando a este efeito textos que tanto valem para um roto como para um descosido. Basta com ler os concílios dos séculos IV e V para dar-se conta de que o papado não existiu antes do decreto de Valentiniano III e inclusive depois continuou sempre subordinado ao imperador, que foi quem o impôs na igreja ocidental, por ser a única autoridade que podia impô-lo numa igreja até esse momento descentralizada e na que a autoridade era ostentada pelos concílios metropolitanos e, em última instância, pelos concílios gerais, convocados sempre e presididos muitas vezes pelo próprio imperador que era também quem pagava os gastos conciliares, impunha a linha doutrinal, executava as decisões e sancionava aos discrepantes.

A instauração do primado romano sobre a igreja ocidental, teve como conseqüência uma instituição piramidal super-centralizada que absorve a seiva do organismo inteiro em benefício próprio, resultando que o papa só tem potestade sobre os próprios concílios dos que ele mesmo faz parte. Isto explica que papas como João Paulo II e Bento XVI fossem capazes por si só de desmontar o próprio concílio Vaticano II e restaurar as doutrinas e práticas pré-conciliares. Sem o consentimento e aprovação do papa de Roma, escoltado pela cúria vaticana, nada se move no seio da Igreja. 

Um instrumento para a benção e perduração deste omnímodo poder papal foi rodear-se da doutrina mística, absurda e infumável da infalibilidade papal, que seria o seguinte passo na culminação da sua preeminência romana, que junto com a doutrina da Imaculada Conceição, constitui o cúlmen da construção dogmática eclesial iniciada no concílio de Nicéia do ano 325 sob Constantino I. A infalibilidade foi definida sob o papa integrista Pio IX, na Constituição Dogmática Pastor Aeternus do concílio Vaticano I o 18/07/1870. 

É um dogma sem baseamento bíblico nem patrístico de nenhuma classe e que repugna a uma mente sã e não prejuizada, e que, além disso, vai contra toda a desafortunada intervenção histórica dos pontífices, cheia de erros de vulto, falsidades, contradições, etc. Quem conheça a sua oposição contra a esfericidade da terra, contra o geocentrismo, o evolucionismo, e em prol da inquisição, índice de livros proibidos, cruzadas, etc. considerará um insulto á inteligência essa pretensão. Alguém pode aduzir que o papa é infalível somente quando fala ex-catedra, como nos recordou neste mesmo mês o papa Francisco, mas esta componenda não funciona porque os papas, quando se opunham ou apoiavam as teorias e medidas indicadas, consideravam que era porque se opunha gravemente á verdade católica. Não se solucionam problemas com frases inventadas ad hoc. Como falar de todo isto, é tema de vários livros, somente vou citar dous casos representativos de sentenças contraditórias dos papas Zósimo e Vigílio e da sua submissão ao imperador de turno, único que podia aspirar á infalibilidade e ao apoio do Espírito Santo.

O primeiro, após considerar, em oposição ao papa Inocêncio I e aos bispos africanos, entre eles Agostinho de Hipona e Aurélio de Cartago, que Pelágio e Celéstio eram ortodoxos, premido pelo imperador Honório, condena-os no documento Tractória. No ano 417, pouco tempo após escrever uma carta aos bispos africanos, Zósimo, recebeu uma carta de Prailo, bispo de Jerusalém, sucessor de João II, favorável a Pelágio, com uma carta deste último á que unira a sua confissão de fé. Na carta manifestava que se lhe queria desacreditar sob pretexto de que negava o batismo aos meninos e prometer-lhe o reino dos céus sem a redenção de Jesus-Cristo, e de que tinha tanta confiança no livre arbítrio que negava o concurso da graça. A primeira acusação negava tê-la sustida nunca e tocante á segunda afirmava que nós temos o livre alvedrio para pecar ou não pecar, mas que nas boas obras o home sempre é ajudado pela graça divina. Para tratar este assunto, Zósimo decide convocar um sínodo em Roma, a princípios de novembro do ano 417, no que, uma vez lidas as cartas e a confissão de fé de Pelágio e um tratado sobre a vontade livre, todos os assistentes e o papa convieram em que Pelágio se explicava como Celéstio e se decide revocar a condena de Pelágio e Celéstio.

Como resultado do rescrito, do 30/07/418, dos imperadores Honório e Teodósio contra os pelagianos e da posição inamovível dos bispos africanos, a Zósimo não lhe queda mais remédio que claudicar, reverter as suas resoluções e declarar culpável aos que até agora foram declarados inocentes. Fez-lo na sua epístola Tractoria, da que somente se conservam alguns fragmentos, enviada, entre junho e agosto do 418, ás Igrejas orientais, á diocese de Egipto, Constantinopla, Tesalônica e Jerusalém. Também se enviou uma cópia aos bispos africanos e outra a todos os demais bispos, que deviam cursar a Roma um acordo escrito. Se um bispo recusava, era castigado pelas leis imperiais e eclesiásticas que implicavam a deposição do seu cargo e o desterro. Aliam-se, por tanto, o poder imperial e o poder eclesiástico para impor a uniformidade no seio da Igreja, o segundo sempre subordinado ao primeiro.

A humilhação do papa Vigílio pelo imperador Justiniano ocorreu a mediados do século VI, num momento em que o imperador que estava matinando na publicação dum extenso documento para reunificar os monofisitas acéfalos, que defendiam uma única natureza em Jesus-Cristo, e os oficialistas, quer dizer, os calcedonianos ou partidários do concílio ecumênico de Calcedônia do ano 451; os primeiros acusavam os calcedonianos de nestorianismo, ou seja, de que Jesus-Cristo tinha duas pessoas, e quando estes indicavam que Nestório fora condenado, argüiam que Teodoro nunca fora condenado; os calcedonianos não queriam assinar porque seria invalidar o concílio de Calcedônia que os aceitara. O monofisita acéfalo Teodoro Ascidas, arcebispo de Cesaréia em Capadócia, conhecedor da obsessão dogmatizante do imperador, propôs-lhe, para rebaixar a pressão imperial contra os origenistas, que o melhor método para conseguir a reunificação era anatematizar os três capítulos, em referência á doutrina de Teodoro, Teodoreto e Ibas, que Justiniano condenou por um edito do ano 543, mas que o papa se negava a secundar. Por tanto, como vemos, tratava-se duma condena puramente política, que era a consecução da unidade eclesial para criar uma ideologia única num único império. Para obrigar aos ocidentais a assinar, o imperador fez trasladar o papa Vigílio a Constantinopla, cidade na que no ano 548, a petição do imperador, preside um concílio para examinar os três Capítulos. O 14/08/551 o papa depôs a Teodoro Ascidas, bispo de Cesaréia em Capadócia, por pretender que condenasse publicamente os três capítulos, e emitiu um documento, primeira constituição, assinado por ele e por dezesseis bispos mais, que enviou ao imperador o 14/05/551, no que manifestava que não se podia proceder sem ele e que a condena dos três autores não era correta, porque os implicados estavam mortos e também porque Teodoreto e Ibas foram aceitados pelos Padres de Calcedônia; condenava a Teodoro de Mopsuéstia e não a Teodoreto de Ciro e a Ibas, mas o imperador não atendeu a sua alegação e prescindiu-se dele. O imperador promulgou, neste ano 551, a Homologia, na que condenava os três capítulos, e, como era de esperar, o concilio ecumênico de Constantinopla do ano 553 ratificaria a condena dos três capítulos que recolhiam o publicado por Justiniano na citada Homologia. Presidido por Eutíquio, teve lugar entre maio-junho do 553, com a assistência de 150 bispos, e limitaram-se a pôr em prática o mandado do imperador, que era condenar os três capítulos. O 26/02/553, o papa cede ante o imperador e assina as decisões do Concílio de Constantinopla o 8/12/553 que condenam os três capítulos, numa carta que enviou ao patriarca Eutíquio. Todos os grandes dogmas da igreja, encarnação, trindade, dupla natureza de Jesus-Cristo, etc., foram impostos pelos imperadores romanos.

    

11 mar 2016

Os enredos lingüísticos do PSOE de Pedro Sánchez




 Dizia Wittgenstein, na sua segunda etapa, que a filosofia tem uma função terapêutica, que consiste em esclarecer as proposições vagas da linguagem, “de reforma para fins práticos particulares, de melhora da nossa terminologia destinada a previr os mal-entendidos na sua prática”. E resumia o seu pensamento do seguinte jeito: “qual é o teu objetivo em filosofia? Mostrar á mosca o orifício de saída da botelha”. Considera a filosofia analítica que os problemas metafísicos se originam por um uso inadequado da linguagem, e que estes problemas não há que resolvê-los, porque não são problemas autênticos, senão dissolvê-los, mostrando como se originaram.

O que a filosofia analítica aplica aos problemas metafísicos podemos extrapolá-lo aos problemas religiosos, políticos e econômicos, que compartem com a metafísica o traço de que não são ciências estritas, senão que encerram grande dose de valores. Todas defendem uns determinados fins, certos valores, e enredam o seu razoamento em malabarismos lingüísticos que, em vez de aclarar, o que fazem é camuflar os próprios objetivos, ofuscando a mente dos destinatários. Todas recorrem a uns métodos de persuasão próprios da mercadotecnia para procurar a fidelidade dos seus aderentes, que costumam acompanhar de ameaças tais como subas de preços, instabilidade social, terrores do inferno,... Cada passo se parecem mais as técnicas de política ás de venda de qualquer produto de consumo, como pode ser a de eletrodomésticos.

Um primeiro slogan que lançou o PSOE era que Podemos pretendia substituí-lo, o qual implicaria nada menos que o PSOE é um partido que não tem este objetivo e está para promover os seus adversários políticos. Disso concluir-se-ia logicamente que cumpre eliminar as eleições e substituí-las por sorteios. Uma vez que este slogan decaia, lançou-se o seguinte, que consiste em que as esquerdas não somam em contra dos seus desejos, e, por tanto, cumpre fazer uma política de centro que foi o que sempre fez o PSOE.

Em realidade, uma política de esquerdas autêntica é inviável no contexto histórico em que nos encontramos, porque o marco da globalização e o liberal europeu não o permitem. Em realidade, Podemos tão-pouco pretende aplicar uma política de esquerda radical senão de centro-esquerda tipo PSOE, mas corrigindo os vícios que este foi acumulando ao seu passo pelo governo. Em Portugal, a raiz da revolução dos cravos, o primeiro ministro Vasco Gonçalves pretendeu implantar uma política de esquerdas, mas já se encarregou rapidamente Alemanha de parar-se os pés indicando-lhe que essa política não era viável na Europa. Creio que é ilustrativo também o que lhe passou a Alexis Tsipras. O que si se pode fazer é uma política que evite o imenso oceano de corrupção em que estão imersos tanto o PP como o PSOE, que se incrementem até a média européia os ingressos públicos para reforçar o estado do bem-estar, que os não pagam ao fisco tenham que fazê-lo, aplicar medidas que desincentivem a deslocalização de empresas, que se suprima a conivência dos poderes econômicos e políticos, que se democratize a estrutura do Estado reconhecendo que não se pode manter os povos submetidos per saecula saeculorum pela força a um poder político que ignora os seus direitos a existir e decidir como governar-se e que relações querem manter com os demais. Não deixa de ser sintomático que o PSOE que historicamente sempre defendeu o direito de autodeterminação, como expusemos no artigo anterior titulado «Democracia para os nossos dias V», uma vez que pisou as moquetas dos palácios do Reino de Espanha, converte num tema tabu, não só defendê-lo, senão que outro partido permita que os povos podam pronunciar-se para saber que quer realmente a sua cidadania. Isto disfarça-se apelando a tópicos como que se defende o seu direito a decidir porque decidimos todos os espanhóis, que não o permite a Constituição Espanhola,...

Volvendo ao segundo slogan, se focamos a constituição dum governo em termos de esquerda e direita, é totalmente inviável um governo no Estado espanhol, mas se o focamos em termos de alternativas de direita e de centro direita, por uma parte, e de centro esquerda, pela outra, a cousa cambia. É evidente que os partidos de direita têm no Congresso mais deputados que os de Esquerda: PP: 123; C’s: 40; DiL: 8; PNV: 6. Total: 177, já sem contar Coligação Canária. Mas esta opção não é viável, salvo que se lhe una o PSOE, porque DiL nunca apoiaria um governo do PP pela obsessiva fustigação contra o seu autogoverno e por tê-lo convertido num apestado político, salvo que lhe ofereça contrapartidas que este não quer conceder, como poder celebrar um referendo. É evidente que o PSOE tem difícil unir-se ao PP e menos fazer presidente a Mariano Rajoy, porque seria já a sua defunção política. Aliás não seria já uma alternativa de direitas pura.

As esquerdas têm: PSOE: 90; Podemos: 69; IU: 2; ERC: 9. Total: 170. É evidente que não alcança os 176 precisos. Mas esta alternativa é viável se se lhe une o PNV, que daria 167 deputados, sempre que se abstenham ERC e DiL. Mas o PSOE nem sequer deseja intentá-lo porque não quer perder o pedigree do E do seu Logotipo, ou seja, o seu espanholismo até as nádegas. O resultado é que, como fruto da incapacidade dos partidos políticos para resolver os problemas, têm os habitantes de todos os povos do Estado espanhol num beco sem saída, e intentam disfarçar essa falta de vontade política com a propaganda contra os partidos que não querem desnaturalizar o seu projeto político, mantendo eles as linhas vermelhas do seu. Do que se trata é de premer o outro e apresentá-lo como o mau da película para procurar manter, mediante a manipulação e a intoxicação, o favor da cidadania. Isto explica a campanha hostil dalguns meios da capital do Reino contra a formação morada.