25 jun 2019

Carvalho Calero, adail do reintegracionismo


                Alguns vínhamos denunciando cada ano uma situação que considerávamos anômala, como é o feito de que o insigne proefessor Ricardo Carvalho Calero vinha sendo postergado indevidamente como a personagem elegida para ser homenageado o Dia das Letras Galega, que podia dever-se a uma espécie de censura tácita cara ao escritor ferrolão por ter sido o maior estandarte da posição normativa ortográfica conhecida com o nome de reintegracionismo. A prática da censura e da repressão ideológica esteve muito estendida no Estado espanhol um dos maiores escaparates mundiais da inquisição, país, que fez estragos na psicologia do «homo hispanus». A esta tendência, que costuma aninhar nas diversas associações e instituiç4oes tampouco foi alheia a RAG, que em tempos de Garcia Sabell marginava os escritores de proclividade marxista, prática que se eliminou com Fernández Del Riego que deu cabida nela a escritores desta ideologia política, e, a partir da presidência de Garcia Sabell, mais Delegado do Governo espanhol na Galiza que Presidente da RAG, a censura orientou-se cara ao reintegracionismo. Esta tendência não foi protagonizada só pola RAG senão também polos órgãos do poder político galego e por associações de pais e mães de alunos. Eu teve que responder a acusações de pais perante a Inspeção de Educação em Santiago por utilizar a variante lingüística, tolerada pola normativa, mais próxima ao português por entender alguns que a utilização da terminação bel era lusista, e, portanto, sancionável disciplinadoramente. Inclusive o grande escritor Méndez Ferrín pedia que se sancionasse a quem não aceitasse a normativa isolacionista.

                 Carvalho Calero foi um grande intelectual, com uma cultura muito extensa com quem dava gosto falar. Não me toca a mim valorar a sua vertente literária, porque há muitas pessoas muito mais preparadas do que eu neste eido. Somente quero destacar, neste momento, que foi o autor, lá polo ano oitenta, da primeira normativa do galego, que abria a via da convergência com o português, que defenderam João Vicente Viqueira, Evaristo Correa Calderão, Castelao, Manuel Rodrígues Lapa, Ernesto Guerra da Cal,..., e, nos nossos dias, muitos autores que, na maior parte, se movem na órbita da AGAL e da Academia Galega da Língua Portuguesa. Esta normativa de convergência foi substituída no ano 1982 polo Decreto assinado por Filgueira Valverde, que enviou ao BOE José Luis Barreiro Rivas, e que recolhendo as aspirações dos sectores mais espanholizados da sociedade galega, pretendia que se aprendesse o galego a partir do espanhol. A língua galega ficava assim numa dependência gramatical a respeito do espanhol, a língua intocável. Reproduzia-se assim, a nível lingüístico o que passa a nível político em geral: a subordinação da Galiza à Espanha.

                A normativa reintegracionista limita-se ao âmbito ortográfico e ao literário e não pretende que obrigatoriamente se fale como se escreve, senão que pretende rachar com o isolamento da nossa língua a nível da escrita e dar-lhe uma projeção universal. É difícil compreender e explicar que, sendo o galego e o português duas variantes lingüísticas do mesmo tronco não aproveitemos as vantagens que a convergência na escrita nos procura e que favoreceria extraordinariamente a supervivência da nossa língua frente ao acosso da língua dos supremacistas espanhóis, e, por conseguinte, do traço mais salientável da nossa cultura. Na era do cosmopolitismo, das intercomunicações a escala planetária, parece um suicídio político e cultural fecharmo-nos em nós mesmos. 

                Não podemos criar cultura a todos os níveis mais que inseridos num mundo amplo que, no nosso caso, deve ser o mundo galego-português, ou galaico português como costumava chamar Castelao. Alguém pode alegar que hoje a ciência e também da filosofia se faz em inglês, que, em grande parte, é certo, mas isso não tem porque ser sempre assim, -parece que o futuro vai ser protagonizado por China-, e, por outra parte, ainda que não sejamos os primeiros, só desse modo podemos ter protagonismo no mundo ampliado e das comunicações a escala planetária. Aliás, a ciência não é todo na vida das pessoas, senão que estão também o mundo da arte, da literatura, da religião, cultura autóctona,..., que sempre necessitarão expressar-se na língua comunitária própria dos seus criadores.

                Parabenizamos à RAG por ter-se atrevido a dar esse passo e pedimos-lhe que esta esperada homenagem não se limite ao elogio ritual deste autor, senão também assuma os valores que Carvalho representa, e isto passa porque se avenha a negociar com os reintegracionistas uma solução ao problema normativo, que somente tem duas saídas viáveis: a) aceitar a proposta de AGAL e permitir que haja duas normativas oficiais, polo menos, dum jeito transitório, solução que evitaria que surja na sociedade uma situação brusca com o passado, ou b) chegar a um acordo de convergência que recolha a possibilidade de incorporar o g e o j, quando proceda, na vez do x, a substituição do ñ e do ll por nh e lh, e substituir as terminações em «íon, que são alheias às nossa língua, polas terminações em «ao» ou em «om», alternativa esta última que seria a solução de longo alcance. Também propomos que, uma vez que a normativa deixou de ser um motivo de exclusão para o grande filólogo ferrolão, o seja igualmente para os que na atualidade defendem o reintegracionismo, e, por conseguinte, que se lhe dê entrada na RAG a membros desta corrente, que creio que há entre eles pessoas muito merecedoras desta distinção. Penso que, desta maneira, lhe fariam um grandíssimo favor à nossa língua, que, suponho, é o que todos pretendemos.

7 jun 2019

Golpe de Estado independentista


                Toda comunidade, seja democrática ou autoritária, rege-se por umas normas jurídicas, quer legislativas quer consuetudinárias, que constituem o seu estado de direito, e sem o qual a sociedade não pode funcionar. Este estado de direito existiu em todas as sociedades anteriores, mas agora alguns querem consubstancializar estado de direito com a democracia, que, na sua modalidade de democracia liberal, só começou a implantar-se, como forma de governo, no século XX, e tem um significado completamente distinto ao de estado de direito. Querer identificá-los é indicativo dum déficit democrático importante em quem o faz. Os que defendem esta alternativa teriam que suster que no Império Romano ou na Espanha em tempos de Carlos V ou de Carlos III  não havia estado de direito.

                As normas sempre são impostas polos que têm o poder e o controlo da sociedade e estes podem ser elegidos pola cidadania ou podem alçar-se com o poder pola tradição, por uma sublevação militar, polo carisma dalgum dirigente, etc. O estado de direito concretiza-se, nos Estados modernos, na constituição e nas leis, que expressam um sistema de valores que se querem implantar a nível social. Nos nossos dias, o sistema de valores mais relevante é o que se recolhe nos pactos e tratados internacionais referentes aos direitos humanos. A legislação não se restringe à que aprova o parlamento estatal, senão que compreende também os tratados internacionais que os mandatários dum país assinaram e assumiram como próprios. Entre os tratados relativos aos direitos coletivos estão: O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Tratado Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, que formam parte da legislação espanhola e ambos consagram o direito de autodeterminação dos povos. O desprezo pola legislação internacional e polos seus representantes por parte dos dirigentes do Estado espanhol foi posto em evidência pola negativa do governo de Sánchez a libertar de imediato os presos políticos preventivos como lhe exigiu o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias da ONU por considerar que a sua detenção é arbitrária; em vez de fazer-lhe caso, dedicou-se a insultá-los acusando-os de conflito de interesses e de ignorância do problema catalão, e incluso se atreveu a pedir a recusação dalguns dos seus membros. Mas foi desautorizado o dia 6/06/2019, polo Tribunal Europeu de Direitos Humanos que reconheceu o citado Grupo de Trabalho como um referente e assumiu os seus critérios como «instância internacional», à que se pode recorrer.

                A nível do Estado espanhol a política que se seguiu historicamente polos unionistas consistiu em impossibilitar a toda custa o exercício dos direitos coletivos e fomentar a animosidade da cidadania contra os que defendem o direito de autodeterminação dos povos ou simplesmente uma remodelação do Estado espanhol em clave federal, atitude que se complementa com a denigração com grossos qualificativos do independentismo, comparando-o com o golpismo, nazismo,... animosidade que explica a autocensura e auto-limitação nas suas propostas de autores como Alfredo Branhas, que rebaixa as pretensões de Galiza para evitar qualquer suspeita de radicalidade e as correspondentes acusações dos unionistas. A propagação desta animadversão contra os nacionalistas e independentistas, que se manifesta em expressões como «a por eles», no flamejar patrioteiro de bandeiras e no clima asfixiante do discurso único unionista, foi de par com a oposição a qualquer medida que possa entender-se como uma concessão às legítimas demandas dos povos. O estado espanhol esteve dominado pola «Santa» Inquisição até 1834 e isso cria caráter, no caso que nos ocupa, em contra duma política de diálogo e de negociação política dos problemas políticos. Um inquisidor pode ser laico, mas não por isso é menos inquisidor. A situação não tem visos de melhorar, senão que tende a empiorar com a entrada na cena política de atores como C’s e Vox, que identificam o bom espanhol com o intransigente em temas de política territorial principalmente e em ondear aos quatro ventos a bandeira da nação espanhola.

                O clima sociopolítico rareou-se tanto que apesar de que o Estado espanhol tem um dos códigos penais com sanções mais elevadas, consideram que as penas não são suficientes para afogar o nacionalismo e propõem agora complementá-las com medidas políticas que os excluam do Congresso dos Deputados para minimizar a sua capacidade de influência na vida política espanhola. Os «maus espanhóis», dizem, não devem decidir nos problemas de Espanha e, entre os «maus espanhóis», incluem, naturalmente, os habitantes mais conscientes politicamente dos povos diferenciados que são os «manipuladores» dos povos malditos. Frente a estes alçam-se os «bons espanhóis», que se auto-proclamam como constitucionalistas, e que não são outra cousa que imobilistas a respeito da «Constituição espanhola» de 1978, concebido como um código fechado que todos devemos venerar.

            No juízo ao process catalão, os juízes, em vez de ajuizar uns factos, inventaram um relato com a suposta finalidade de impor um castigo exemplar que sirva de escarmento a todos os demais povos do Estado para que ninguém ouse no futuro pôr em questão a «sagrada unidade da pátria», mas o problema não fica aqui senão que também se quer enturvar o relato com acusações de golpistas aos políticos independentistas, além do de rebeldes. O artigo 472 do Código Penal estabelece que são réus dos delito de rebelião os que se alçarem violenta e publicamente para declarar a independência duma parte do território nacional. Tem que haver, por conseguinte intencionalidade de derrubar a ordem estabelecida e violência apropriada para conseguir o seu fim, e não vale que algum indivíduo ou grupo de participantes coaja um polícia numa manifestação, como pudo ter passado em Catalunha. Por outra parte, quem estão acusados de rebelião são os dirigentes políticos catalães e não os participantes em eventuais algaravias. Imaginemos que algum indivíduos ou grupo de participantes nos atos do 1O desejasse derrubar o ordenamento constitucional espanhol, disso não se pode concluir que os culpáveis são os dirigentes que o único que fizeram foi convidar a votar, se não existem provas a este respeito. Aliás, em todo governo democrático, o princípio de mando é ostentado polo presidente, que é o responsável das ações de governo, mas, neste caso, como o presidente está exilado, carrega-se a culpabilidade máxima no vice-presidente, utilizado como um bode expiatório.

                Como a acusação de rebelião não se ajusta aos factos do 1O pretende-se magnificar o relato perante a cidadania com declarações de que esse dia se produziu um golpe de estado, mas esta figura, além de ser falsa, não está incluída no código penal e como tal não é sancionável. Segundo a ERA o característico dum golpe de estado é que se imponha pola força um câmbio de governo, mas como nada disso se acha no acontecido o 1O, para fazer mais crível esta acusação, o fiscal e a acusação particular do process dizem que foi um golpe de estado keynesiano, expressão que deve este nome ao filósofo e jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973). Para Kelsen, uma revolução ou golpe de estado “dá-se quando a ordem jurídica duma comunidade é anulada e substituída de forma ilegítima por uma nova ordem”. Esta anulação ou substituição “é toda modificação, câmbio ou substituição da constituição que não se produz seguindo o disposto pola constituição em vigor”. Ora bem, se isto é assim os máximos culpáveis de dar golpes de estado são os que ostentam o poder, e, por citar um exemplo, o próprio Rajoy e o Tribunal Constitucional o teria dado quando decidiram invalidar o sistema de estatutos de autonomia que prevêem que, para que sejam válidos, qualquer modificação tem que ser referendada polo povo afetado, e isto não se cumpre no estatuto catalão, uma vez modificado polo Tribunal Constitucional.

            Estas bravatas de golpismo surtem o seu efeito psicológico numa comunidade que foi traumatizado historicamente polas frequentes intervenções militares para alterar o normal desenvolvimento do devir político quando não coincidia com o seu modo de pensar ou com os seus interesses estamentais. A intervenção do exército na vida pública em 1923, 1936 e 1981 sim que foram autênticos golpes de Estado, mas que tem que ver com isto fomentar que os cidadãos votem pacificamente, livremente para decidir o seu futuro como povo?