28 jul 2017

«En Marea» mareada



                Rodeio com aspas o nome deste partido para sublinhar que considero que não é um nome galego autêntico, senão um galego deturpado que comumente se chama castrapo, o qual não é outra cousa que uma mistura de expressões galegas com castelhanas. É uma pena que tendo popularizado Cristina Senlle os seus Cantos na Maré não se seguisse já uma grafia que está muito bem aceitada popularmente, ainda que a fala popular normalmente utiliza «Marea», mas também no ano 1970 todos os galegos utilizavam expressão popular «pueblo», que hoje consideraríamos anômalo. Uma observação semelhante se pode fazer a respeito do «Bloque», pois ainda que neste caso está consagrado por um uso dilatado, a opção desta força na atualidade polo reintegracionismo deveria propiciar um câmbio deste nome polo de Bloco. 

                Contudo, isto só é um inciso porque do que me proponho falar não é do nome senão do devir da formação política «Em Marea», um produto híbrido mistura de nacionalismo galego e nacionalismo espanhol. Os partidos que se integraram nela, Anova, IU e Podemos basicamente concordam no modelo de sociedade, pois os três são de esquerda rupturista, mas divergem no modelo de estado, ou seja, no status político que cada um deles demanda para Galiza, que vai desde o independentismo, como é o caso de algumas formações integradas em Anova, como a Frente Popular Galega, ao federalismo como é o caso de todas as demais formações. O tipo de federalismo não o explicitam, que eu saiba, e, portanto, não sabemos qual vai ser o grau de ruptura com o caduco sistema da transição do 78. Já sabemos como o Castelao se opunha a um federalismo que se reduza a chamar-lhe estados federados ao que hoje são as autonomias, porque, segundo ele, isso implicaria multiplicar a nação espanhola, dando-lhe uma representação e um poder que não se correspondem com o peso que deveria ter na futura federação. O PSOE, que se proclama agora seguidor de Castelao, deveria inspirar-se também nisso e evitar que a qualquer demanda de autonomia respondam os barões dos territórios mais espanholistas que não consentirão nenhuma discriminação.

O compromisso dalguns dos membros da formação IU com o direito de autodeterminação pôs-se de manifesto com as declarações de Alberto Garzón nas que se opõe ao referendo catalão. "O referéndo do um de outubro não soluciona nada e, portanto, não o podemos apoiar". Fixemo-nos que não recorre ao consabido tópico de que é ilegal senão que não soluciona nada, pretexto que também se pode aplicar no futuro a qualquer referendo ainda que seja legal, e quem decide se soluciona algo ou não são os partidos espanholistas governantes na capital do Estado que consideram Espanha como o seu patrimônio e ao único que estão dispostos é a tolerar de má ganha a uns inquilinos molestos como são para eles os nacionalismos periféricos.  Ele prosseguiu declarando que “por solidariedade creio melhor uma República Federal e o direito autodeterminação expressado com garantias”. Suponho que nisto coincidiram praticamente todos os que são autenticamente democratas, incluídos os nacionalistas, ainda que não seja prioritariamente por solidariedade por não ser esta o fim dum partido político, senão por conveniência, se se faz por pacto livre, mesmo para o interesse dos povos respetivos, mas a questão não é o que um deseja em abstrato, senão o que se pode fazer num momento concreto e o que não aclara o Sr. Garzón é como se consegue todo isto, que, em todo caso, estaria subordinado a que se consiga: que cambie na Espanha o modelo de estado e se implante a república, opção à que se opõe tanto o PSOE como o PP e C’s; em segundo lugar, que se pactue que essa república seja federal, alternativa à que se opõe frontalmente o PP, mas si coincidem, com a esquerda rupturista, o PSOE e C’s, se bem parece que só nominalmente, quer dizer na decisão de chamar-lhe federal ao que não é mais que outro sistema autonômico mais ou menos disfarçado. Mas o problema não é nominal senão principalmente de competências e garantias, e qualquer pode ver que o trajeto que se pode andar com qualquer destes partidos, especialmente com o xenófobo C’s é bem curto como se comprova com as suas manifestações quotidianas; e, em terceiro lugar, que essa república esteja de acordo em convocar um referendo de autodeterminação para Catalunya para que tenha todas as garantias, solução à que se opõem tanto o PP como o PSOE e C’s. Em realidade estes pretextos mais bem parecem desculpas de mal pagador e o que escondem no fundo é uma grande renitência a que os povos se expressem livremente. Essas proclamas verbais que faz por vezes a esquerda espanhola parece que só pretendem garantir-se o apoio imediato dos provincianos e deixar a solução do problema da reordenação territorial ad calendas grecas. Lembremos que já IU urgia que se priorizasse o problema social, ou seja, o seu interesse como esquerda, sobre o problema nacional antes de fundar-se AGE, e, surpreendentemente, acederam a isto incluso os dirigentes da FPG, como se houver que optar entre montar a cabalo e assobiar. 

Recordemos também que esta formação foi a substituta de AGE, um experimento com um notável êxito eleitoral nas primeira eleições às que se apresentou mercê em grande parte à personalidade carismática do Beiras. Os promotores da criatura, Anova e IU, consideraram fracassado o invento trás uma curta singradura, corroída por dissensões internas que se saldaram com várias cisões parlamentares. Os ostentosos abraços do Beiras com a Yolanda Díaz dos inícios da travessia foram sucedidos por azedos reproches ao final do cruzeiro. O labor do grupo reduziu-se a alardes estridentes de gesticulação teatral no Paço do Hórreo. Uma vez fracassada a AGE havia que substituí-la por algo distinto e consideraram que o salva-vidas viria da mão duma formação à essa altura em ascenso acelerado como era Podemos, que viesse dar-lhe oxigênio a uma desacelerada IU e aos debilitados nacional-esquerdistas de Anova, e isto deu como resultado «Em Marea». Na Galiza criou uma dose de otimismo e esperança em muitas capas da população, mesmo entre os nacionalistas, por crer que seria quem de aglutinar a cidadania num projeto ganhador que lhe reconhecesse ao nosso país o direito de autodeterminação e muitos nacionalistas consideraram que havia que defenestrar ao elanguescente BNG e subir-se ao novo salva-vidas que nos lançavam os podemitas capitalinos.  

                Pessoalmente nunca comparti semelhante ola de entusiasmo porque sempre considerei que ninguém nos vai dar nada regalado por muitas galantarias com as que se adube, como no-lo fez ver o processo de emancipação das mulheres, dos negros, dos escravos, dos homossexuais,... que nunca lograriam os seus objetivos se fiassem no apoio dos homes, dos brancos, homes livres e heterossexuais. Sempre considerei que o nacionalismo espanhol, seja de direitas ou de esquerdas, nunca vai propiciar um câmbio que implique maiores quotas de autogoverno dos povos submetidos do Estado espanhol, salvo se estes povos têm a força suficiente para obrigar a que sejam tidos em conta. Tenhamos presente que o nacionalismo jacobinista do PSOE foi quem participou em 1982, junto com a UCD, na aprovação da LOAPA que vinha a mutilar os já raquíticos estatutos de autonomia e submetê-los ao ditado dos partidos espanholistas com objeto de fazer-lhe um aceno aos setores golpistas. A prova é que em agosto de 2015 escrevia: “Apelar á candidaturas de unidade popular, onde a cidadania seja a principal impulsora do processo e os partidos, os motores auxiliares, parece-me que é uma burla e um insulto a esta mesma cidadania. Estes dias estamos presenciando uma atitude pedinchona e os abraços do Beiras com os representantes dos partidos espanholistas de esquerda para que acedam a pautar com ele uma candidatura de unidade popular, e estava sumamente preocupado porque o Pablo Iglesias lhe propunha uma saída que seria uma humilhação pública do líder de Anova ante as suas hostes reduzindo-o a sacristão do grande sacerdote madrilenho, convertido no galo do poleiro, impondo a sua marca Podemos como nome da candidatura, seguido doutra cousa, porque os galegos devemos ficar reduzidos a «outra cousa». O Beiras, insatisfeito, pugnou embravecidamente para que na candidatura figurasse «Marés-Podemos», em vez de «Podemos-Marés», permitindo que o seu grande Chefe madrilenho, dirija o processo e as políticas”. O recurso à unidade popular ficou num mero reclamo eleitoral e foi arrombada polos seus mesmos promotores; em si não é outra cousa que uma enteléquia que, em caso de existir faria desnecessária a pluralidade de partidos políticos. Tenhamos presente que a crise de fundo agora com Villares vem precisamente de que os partidos promotores saíram malparados na confrontação com o porta-voz parlamentar no Consellho de En Marea, porque precisamente os que montaram a invento e vem como se lhe escapa das mãos. 

            A esta altura «Em Maré» esmorece perante os reiterados ataques dos seus dirigentes mais mediáticos: Julio Ferreiro, Suárez, Martinho Noriega e Beiras, e alguns deles, como o Beiras, não se arredam de proclamar aos quatro ventos o seu fracasso. Agora falam de que necessitam discutir pausadamente o processo, como se não tivessem tempo de fazê-lo até agora. Isto indica que se vão ensimesmar em vez de procurar soluções para o país. Vai também acentuar-se a larvada luta polo poder, que é o que realmente subjaz no fundo, e, evidentemente, vão-lhe complicar muito mais o liderado a Villares, que é o que, em realidade se pretende. Apesar do seu êxito eleitoral significativo, ainda que menor do esperado, o seu futuro é problemático, e não surpreenderia que haja uma nova reordenação. O problema é agora a credibilidade que têm os que já fracassaram nos dous intentos anteriores.

            Finalmente, quero lembrar uma chamada à unidade de Rafa Cuiña, alcaide de Lalím, cheira de sensatez e sentido comum: unamo-nos todos os que pensamos igual. Isto deveria fazer reflexionar a todo o nacionalismo desde o centro esquerda à esquerda rupturista, para que façam um esforço e não consumam as forças inutilmente em combater-se entre si, e por acima coligando-se com formações com as que existe uma disparidade qualitativa sobre o modelo de estado, que ao único que conduz é a converter o conglomerado numa gaiola de grilos.

13 jul 2017

Legalidade do referendo catalão



            Em contraposição com os direitos individuais, entendidos como direitos formais, que lograram abrir-se passo com muita mais facilidade, os direitos coletivos topam muita resistência por parte dos Estados que, amparando-se num suposto perigo de instabilidade política, pretendem homogeneizar os diversos povos que convivem num Estado e submetê-los aos ditados dum poder político interessado em preservar os interesses de classe dos que dominam os aparatos do Estado. Na Espanha este conflito foi e segue a ser especialmente virulento; podemos constatar que os partidos de obediência estatal, especialmente os da direita, se negam simplesmente a aceitar que os povos galego, basco e catalão tenham direitos como tais povos e sentem urticária quando se fala do seu direito de autodeterminação. Ao máximo que chegam é a conceder-lhe algumas migalhas em contrapartidas de apoios políticos, mas sem reconhecer nunca a sua personalidade própria. A política espanhola, tanto interior como exterior, vertebra-se na oposição ao direito dos povos a decidir o seu futuro. 

            A lei do referendo de Catalunya, que pretendem celebrar o 1/10/2017, justifica a sua celebração no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas do 16/12/1966, ratificado por Espanha no ano 1977, publicado no BOE o 30/04/1977, que no seu artigo 2 determina que “Todos os povos têm direito de livre determinação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e provêm assim mesmo ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Não acode a outros documentos importantes nos que também se defende este direito porque ainda são duma grande força moral, carecem de virtualidade jurídica por não ter sido assumidos por nenhuma organismo público internacional. Entre estes documentos estão a Declaração dos Direitos dos Povos promulgada em Argélia o 4/07/1976, que proclama o direito de autodeterminação no seu artigo 5 que reza: “Todo povo tem o direito imprescritível e inalienável à autodeterminação. Ele determina o seu status político com toda liberdade e sem nenhuma ingerência exterior”; e finalmente, também a Declaração dos Direitos dos Povos aprovada pola Conferência das Nações sem Estado, em Barcelona, em maio de 1990, artigo 6: “Todo povo tem o direito de se auto-determinar de forma independente e soberana”. Do qual se deduz que o direito de autodeterminação ou direito de decisão é uma reivindicação constante dos povos não só do Estado espanhol senão de todo o mundo. Dado que ninguém é capaz de negar que Catalunya seja um povo, é lógico afirmar que tem direito de autodeterminação. Alguns pretextam que o direito de autodeterminação não se aplica a Catalunya senão que surgiu num contexto colonial, mas nunca se pode restringir a aplicação dum direito ao contexto determinado no que surgiu. Também o direito ao voto da mulher surge num contexto determinado e ninguém se atreve a limitá-lo a esse contexto.

            Qualquer tratado internacional para que tenha força de lei num Estado soberano tem que ser ratificado por este e publicado oficialmente, condições que cumpre no caso do Tratado Internacional dos Direitos Civis e Políticos, pois, como se diz no Preâmbulo da Lei de Referendo, o artigo 96 da CE estabelece que “os tratados internacionais validamente celebrados, uma vez publicados oficialmente em Espanha, formarão parte do ordenamento interno”. Também aduz a citada lei, a título interpretativo, o artigo 10.2.- que determina que “as normas relativas aos direitos fundamentais e às liberdades que a Constituição reconhece, interpretar-se-ão de conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e os tratados e acordos internacionais sobre as mesmas matérias ratificados por Espanha”, mas esta alegação tem o inconveniente de que o direito de autodeterminação não está reconhecido pola CE.

            A Corte Internacional de Justiça emitiu, numa sentença emitida o 22/07/2010, à propósito da independência unilateral de Kosovo, um pronunciamento importante especialmente para países como Espanha que têm povos que aspiram a reformular as suas relações com o Estado central. Esta foi a razão pola que o Estado espanhol defendeu que a independência de Kosovo vulnerava a legalidade internacional, pois o objetivo da sua política exterior foi sempre sufocar qualquer pronunciamento que possa favorecer as aspirações dos bascos, catalães e galegos. A Corte tratou a questão de se o direito internacional proíbe a um território declarar unilateralmente a independência e não se o direito internacional lhe confere o direito de declarar unilateralmente a independência, que são questões distintas. É evidente que se o direito internacional não lhe proíbe a uma entidade dum Estado poder declarar a independência dum jeito unilateral, com muita mais razão não lhe proíbe poder referendar a opinião da cidadania sobre o futuro que desejam para o país e também implica que essa declaração é conforme com o direito internacional. Segundo a mencionada Corte, nos séculos XVIII, XIX e começos do XX “a prática dos Estados não sugere em nenhum caso que o facto de promulgar a declaração se considerara contrário ao direito internacional”(79). Na segunda metade do século XX, o direito internacional em matéria de livre determinação evoluiu até dar lugar a um direito à independência dos povos dos territórios não autônomos e dos povos submetidos à subjugação, dominação e exploração estrangeiras. Se esta é a prática dos Estados nos períodos indicados, já podemos concluir que a essa altura os Estados eram mais tolerantes que nos nossos dias, em que tampouco se pode comparar a atitude do Canadá e Reino Unido com o que acontece no Estado espanhol. Com todo, segundo a CIJ, o problema duma parte da população que quer separar-se dum Estado é mais debatido, mas tampouco este é propriamente o caso catalão que não é o caso simplesmente duma parte da população senão dum povo com personalidade histórica de seu ao que se lhe cerceou o seu autogoverno nos despachos. A Corte inclina-se a pensar que não existe nenhuma proibição a declarar unilateralmente a independência dum país. “Em opinião da Corte, o caráter excepcional das resoluções antes mencionadas parece confirmar que não cabe inferir nenhuma proibição geral das declarações unilaterais de independência da prática do Conselho de Segurança” (81). A respeito da independência de Kosovo a Corte opina que não se vulnerou a legalidade internacional. “Polos motivos expostos, a Corte considera que o direito internacional geral não contém nenhuma proibição das declarações de independência aplicável e chega, portanto, à conclusão de que a declaração de independência de 17/02/2008 não vulnerou o direito internacional geral” (84).

            Em resumidas contas, no Tratado de Direitos Civis e Políticos da ONU estabelece-se o direito de autodeterminação dos povos como um direito coletivo fundamental, tratado que foi ratificado e publicado polo Estado espanhol, passando a formar parte da sua legislação. Em segundo lugar, na legislação internacional não há nada que proíba declarar unilateralmente a independência, e, em consequência, tampouco há nada que impeça consultar a cidadania se quer que o seu país seja independente. O que vai contra o espírito da legislação internacional é não dar-lhe a um povo outra saída que a sua submissão e a sua auto-imolação. Mas, os partidos espanholistas declaram reiteradamente que a celebração dum referendo de autodeterminação é ilegal fazê-lo. Mas esta parece uma desculpa da mal pagador porque, em primeiro lugar, ainda que a CE não contempla que se possa celebrar um referendo de autodeterminação, tampouco o proíbe. Aliás, de ter vontade política, sempre se poderia aprovar pola via de urgência uma reforma da Lei Orgânica de referendo que possibilitasse que se celebrasse uma consulta negociada com todas as garantias ao povo catalão para que expressasse qual quer que seja a sua relação com o Estado espanhol. Isto é o que está em questão no referendo do 1/10/2017 e não a declaração de independência, se bem poderia dar-se o caso de que a população se incline por esta opção. É certo que o artigo 2 da CE não permite que a soberania de povo espanhol se divida, mas este foi imposto polos poderes fáticos durante o tramite da elaboração da CE e já faz bem tempo que deveria ter sido eliminado dela. Aliás, cumpre ter presente um princípio mínimo democrático que é que as leis têm que adaptar-se à realidade social e não a realidade social às leis. Os povos não estão para ser sacrificados no altar de nenhuma constituição.

            Além de legal, qualquer decisão política deve ser também legítima, e isto implica que se têm que cumprir determinados requisitos para efetivá-la. Segundo a Corte Internacional de Justiça esses requisitos são: que não se recorra à força; que se tivessem esgotado antes todas as vias possíveis para um acordo negociado; que se demonstre mediante um procedimento democrático que a maioria da população comparte estes objetivos. O processo catalão foi sempre pacífico; está claramente demonstrado que o executivo espanhol se nega obstinadamente a entabular qualquer negociação que possa conduzir a uma resolução do conflito, que passa naturalmente pola possibilidade de que a cidadania de Catalunya possa manifestar livremente a sua vontade num referendo no que todos os cidadão de Catalunya possam votar.  Alguns pretextam que é um referendo sem garantias porque não se estabelece uma percentagem mínima de participação, mas, se esta é a objeção, então haveria que declarar carentes de garantias todas as votações realizadas no Estado espanhol no período democrático, o mesmo Estatuto de Autonomia de Galiza seria ilegítimo porque a participação foi somente dum vinte e pico por cento.

         A única alternativa que contempla o Governo espanhol é parar como seja o pronunciamento democrático do povo de Catalunya, evitando que o referendo se celebre. Cospedal ameaça com o intervenção do exército; outras possibilidades são o recurso do artigo 155 de CE para deixar em suspenso a autonomia de Catalunya ou recorrer à lei de segurança nacional, que parece que se quer utilizar para garantir a segurança da soberania única e indivisível da nação espanhola. O que já está a pleno rendimento é a utilização do TC como instrumento do poder executivo para sancionar e/ou inabilitar a todo aquele que participe na realização de qualquer consulta, sob o pretexto de mantimento do estado de direito. Em última instância, só medidas de força e nenhuma solução, apesar de que a resolução 2625 das Nações Unidas prescreve que “Todo Estado tem o dever de se abster de recorrer a qualquer medida de força que prive do seu direito à livre determinação e à liberdade e à independência aos povos aludidos no princípio da igualdade de direitos e da livre determinação”. Isto também é estado de direito.

12 jul 2017

De estatuto catalão a estatuto do PP



O 30/09/2005, o Parlament aprova o novo Estatut com os votos favoráveis de ERC, PSC, CiU e ICV-EUiA e com o não do PP. Em outubro de 2005, o PP de Mariano Rajoy inicia uma cruzada por toda Espanha, na que gastou meio milhão de euros, solicitando assinaturas em contra da reforma do Estatuto de Catalunya, por considerar que é «gravemente prejudicial» para os catalães e para o conjunto dos espanhóis. Ou seja, que uma reforma do Estatut aprovada no Parlament por todos os partidos catalães, salvo o PP, é acunhado de gravemente prejudicial para os catalães por um partido muito minoritário nesta Comunidade, e, ademais, gasta nesta campanha uma quantidade mui notória para combatê-lo, e isto fá-lo um partido que se financiou irregularmente durante décadas, segundo se está a saber agora, o qual pareceria implicar que esse dinheiro para ir em contra dos catalães saiu, em última instância, do peto de todos os espanhóis, como lhe disse no seu momento José Blanco, e por tanto também dos próprios catalães. O povo de Catalunya responde o 18/02/2006 com uma grande manifestação em Barcelona a essa cruzada do PP sob o lema “Somos uma nação e temos o direito a decidir” para exigir que o Congresso aprove sem recortes o Estatut reformado.

            O 30/03/2006 o pleno do Congresso aprova o projeto de reforma do Estatut por 189 votos a favor (PSOE, CiU, PNV, IU/ICV, CC-NC e BNG); 154 em contra(PP, ERC, e EA) e 2 abstenções (Chunta Aragonesista e Nafarroa Bai). Logo de ser aprovada a reforma do Estatuto polas Cortes espanholas e laminado grande parte das suas disposições, às que, segundo Afonso Guerra, a comissão constitucional do Congresso lhe passou «cepilho» como um «carpinteiro», deixando-o limpo de qualquer suspeita de inconstitucionalidade, foi submetido a votação popular e aprovado em referendo polo 74 por cento da cidadania de Catalunya o 19/06/2006. Devemos destacar que Afonso Guerra é um espanholista de pro, que sem a mais mínima análise das causas que conduziram à situação atual, não duvida em pregoar que se aplique já o artigo 155 de CE para deixar em suspenso a autonomia catalã. ERC reage ante os recortes do Congresso retirando-lhe o apoio ao Estatut.

            Este, apesar de ser laminado polas Cortes, é o estatut do povo de Catalunya porque decidiu aceitar esse recorte e considerou que o que ficava em pé representava um avanço significativo no autogoverno de Catalunya. Mas, o que o PP não consegue pola via das urnas em Catalunya vai procurar consegui-lo manobrando nos despachos e nomeadamente valendo-se dum TC irregularmente constituído, por ter bloqueado a sua renovação o PP e o PSOE para assegurar-se uma maioria favorável aos seus interesses respetivos, e proclive a favorecer as políticas dos partidos que nomeiam os magistrados que o integram. Aqui veremos alguns dos pontos mais conflituosos deste litígio: nação, língua, Conselho de Justiça de Cataunya e bilateralidade, num clima político de acosso contra as aspirações dos povos periféricos e em prol da reconcentração do poder na capital do reino.

            O 31/07/2006, o PP apresenta um recurso de inconstitucionalidade contra a reforma do Estatut no que impugnou 128 dos 223 artigos do Estatuto, que pretendia deixar sem efeito aquelas matérias que introduziam qualquer novidade significativa de autogoverno na reforma estatutária e incluso alguma que tem mais bem um caráter sentimental ou que se reduz à expressão dum desejo, como é a menção da nação no Preâmbulo nos seguintes termos: "O Parlamento de Cataunya, recolhendo o sentimento e a vontade da cidadania de Catalunya, definiu de forma amplamente majoritária a Catalunya como nação”. O PP defendia que era improcedente a denominação de Catalunya como nação, porque, desde o ponto de vista constitucional, somente há uma nação que é a nação espanhola, à que se refere a CE no artigo 2, que diz: “A Constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas”. Este artigo da CE foi fruto dum consenso logrado num momento duma correlação de forças parlamentares e os poderes fáticos muito singular. Entre as forças parlamentares figuravam por uma parte os partidos da direita e centro direita: Aliança Popular, germe do atual PP, e a UCD, que com 181 deputados tinham a maioria absoluta; as esquerdas: PSOE, PSP e PC, e os nacionalistas bascos e catalães. Os poderes fáticos estavam representados por umas forças armadas que o governo da UCD controlava com muita dificuldade, e que supunham uma ameaça latente e constante de intrigas golpista.

            A influência dos poderes fáticos fez-se sentir principalmente na redação dum dos artigos mais problemáticos da CE, o artigo 2, quando se abordou a discussão sobre o termo nacionalidades, tal como o refere o relator constitucional Jordi Solé Tura, do PSUC (Partido Socialista Unificado de Catalunya). Os deputados da Alianza Popular e parte dos da UCD pediam a sua supressão por entender que podia dar lugar a identificá-la com nação; a eles somaram-se alguns regionalistas que entendiam que isto introduzia uma discriminação entre nacionalidades e regiões. Os comunistas e os nacionalistas defendiam como um casus belli, uma causa de ruptura, o mantimento deste termo polo menos no artigo 2, pois já fora eliminado do Título VIII. Num momento de fortes pressões exteriores sobre o governo da UCD, chegou-lhe a Solé Tura um papel escrito à mão precedente da Moncloa no que se propunha a redação que substancialmente era a que ficou como definitiva. “A resposta que me deram os representantes de U.C.D. é que não se podia variar nem uma coma, porque aquele era o texto literal do compromisso alcançado com os setores consultados. Evidentemente, não se especificou quem eram estes setores, mas não é difícil adivinhá-lo” (Naconalidades y naconalismos em España, A.E., Madrid, 1985, p. 100). Ou seja, que certos setores que não se apresentam às eleições, e que em todo caso não formam parte do poder legislativo, indicam-lhe aos legisladores, teóricos representantes da soberania popular, dum modo imperativo que é o que têm que aprovar e estes submetem docilmente aos seus mandados. Algumas destas pressões são compreensíveis em certo momento histórico, mas o que não é compreensível é que um artigo destas caraterísticas, assim como o artigo 8, que outorga ao exército a garantia da soberania de Espanha e o mantimento do ordenamento constitucional, mas deveriam já ter sido eliminados e nunca considerá-los como artigos intangíveis que alguns partidos se resistem a problematizar e que querem que a cidadania venere per saecula saeculorum.

O dissenso na interpretação do artigo 2, surge quando se quer precisar o significado do termo nacionalidade, que, em sentido concreto se identifica com nação, mas que outros interpretam como nação de segunda categoria, e, portanto, uns consideram Espanha como uma nação de nações e outros como uma nação de nacionalidades, ou seja, de nações de segunda categoria, sentido este último que foi o que prevaleceu durante o período recentralizador pós-constitucional e o assumido polo PP e PSOE, de tal modo que se pode dizer que de facto triunfou a interpretação dos setores mais espanholistas que sempre consideraram Espanha como uma nação única e indivisível em vez de defini-la como um conjunto de povos que se unem para realizar um projeto comum em benefício mútuo.  Praticamente nos nossos dias o termo nacionalidade é uma denominação totalmente inoperante e sem consequências políticas de nenhuma classe.

No anteprojeto de constituição formulava-se em termos mais satisfatórios a estrutura do Estado espanhol. Dizia o seguinte: “A Constituição fundamenta-se na unidade de Espanha e a solidariedade entre os seus povos e reconhece o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram”. Nele dispõe-se a unidade política do Estado e reconhecem-se, por uma parte, os diversos povos que o conformam e, pola outra, o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que integram Espanha. Evitam-se expressões que atuam a modo de corpete infranqueável como «indissolúvel unidade», «pátria comum e indivisível», que dificultam qualquer nova reformulação da distribuição territorial do poder no decurso do tempo, e que criam mal-estar porque se ignora a realidade do Estado espanhol que é plurinacional, plurilingüística e pluricultural. Na CE somente se alude aos povos de Espanha no preâmbulo, que não tem efeitos jurídicos, e no artigo 46, quando se fala do patrimônio dos diversos povos de Espanha, por conseguinte, sem conotação política de nenhuma classe. No resto articulado sempre se cita a um único povo, o povo espanhol, como o representante da soberania, quando se alude ao Defensor do povo, que implica que considera que existe um povo único, que, evidentemente, é o povo espanhol, e quando se fala da representação política da que se diz que as Cortes representam ao povo espanhol e nunca aos demais povos de Espanha, que são ignorados. Uma constituição respeitosa com a diversidade proclamaria que a soberania reside nos povos que convivem no Estado espanhol. O falho do TC considerou que a inclusão do termo nação, junto com a menção da "realidade nacional de Catalunya", carece de "eficácia jurídica interpretativa", única natureza que possuem os preâmbulos ou exposição de motivos, carentes totalmente de valor normativo e por tanto alheios a poder ser declarados inconstitucionais.

Também sublinhou o PP de Rajoy três dias antes da apresentação do recurso a inconstitucionalidade do trato que se assigna ao catalão no artigo 6 do Estatuto de Autonomia reformado, pois estabelecia que “A língua própria de Catalunya é o catalão. Como tal é a língua de uso normal e preferente das Administrações públicas e dos meios de comunicação públicos de Catalunya, e é também a língua normalmente utilizada como veicular e de aprendizagem no ensino”. Alegava Rajoy que se lhe dava um trato «privilegiado» à língua catalã devido a que se considera o seu conhecimento como um dever e como a língua do ensino, o qual, supostamente, atentaria contra o «direito dos pais a eleger a língua na que querem que estudem os seus filhos». Esta manifestação responde a política de hostilidade deste partido contra todas as línguas do Estado salvo o espanhol, a língua superprotegida e imposta coativamente pola legalidade imperante, como os galegos conhecemos sobradamente por experiência. O TC eliminou o adjetivo preferente por considerar que afasta o trato à língua própria de Catalunya do bilingüismo perfeito. No artigo 6.2. do Estatut reformado diz-se que “Todas as pessoas têm direito a utilizar as duas línguas oficiais e os cidadãos de Catalunya o direito e o dever de conhecê-las”. O TC falhou que "O dever de conhecimento da língua catalã não pode ser entendido como obrigação juridicamente exigível com caráter generalizado". Isto significa que nem sequer na Catalunya se pode legislar para que a sua língua esteja numa igualdade de condições normativas que a língua do poder colonizador, e muito menos, como seria exigível, privilegiar o conhecimento e uso das línguas próprias das diversas comunidades que a possuam, apesar de que todos os catalães e os demais habitantes das comunidades com língua própria, pola pressão da mídia, conhecem e falam o espanhol, enquanto que muitos são incapazes de falar corretamente o catalão.

Outro motivo do recurso foi a proposta de criar uma espécie de seção do Conselho Geral do Poder Judicial para Catalunya, chamado Conselho de Justiça de Catalunya, que, segundo a redação do Estatut, é “o órgão do poder judicial em Catalunya. Atua como órgão desconcentrado do Conselho Geral do Poder Judicial, sem prejuízo das competência deste último, de acordo com o previsto na Lei Orgânica do Poder Judicial”. O PP de Rajoy considerava que, apesar de todas essas reservas, isso rompe com a unidade judicial de Espanha. O TC declarou-o inconstitucional e negou qualquer possibilidade de que a justiça se descentralice, ainda dpendendo do CGPJ.

Também houve discrepâncias do PP a respeito do princípio de bilateralidade, que tende a criar uma relação entre duas entidades com personalidade própria num plano simétrico: a Generalitat e o Governo de Espanha, por considerar «que privilegia a Catalunya e senta as bases dum modelo confederal assimétrico» e supõe «uma desigualdade inadmissível na Constituição». O estatut aprovado polas Cortes apresenta, no artigo 3, da maneira que segue o princípio de bilateralidade. “As relações da Generalitat com o Estado fundamentam-se no princípio da lealdade institucional mútua e regem-se polo princípio geral segundo o qual a Generalitat é Estado, polo princípio de autonomia, polo de bilateralidade e também polo de multilateralidade”.

                O princípio de bilateralidade não foi declarado inconstitucional de seu, mas si submetido à interpretação do TC que fez dele uma pantomima de bilateralidade. Começa precisando o TC que não se trata das relações entre o Estado espanhol e a Generalitat de Catalunya, pois isso poderia dar a entender que são dous estados os que se relacionam, senão entre dous órgãos dum mesmo estado: a Generalitat e o Estado central; e tampouco se trata duma relação exclusiva, senão que tem que conciliar-se com outros marcos de relação. O princípio de bilateralidade –diz o TC- não pode entender-se como uma “dualidade impossível entre o Estado espanhol e a Comunidade Autônoma de Catalunya”, nem pode referir-se à “não menos inviável participação stricto sensu (ide est, determinante ou decisória) da Generalitat de Catalunya no exercício de competência alheias” por mais que estas afetem a Catalunya. As competências concernidas das que trata a Comissão Bilateral dos Governos de Espanha e a Generalitat de Catalunya unicamente podem ser, em sentido estrito e em termos de cooperação voluntária, as correspondentes a um e outro Executivos cuja plenitude de exercício não pode ver-se condicionada nem limitada pola Comissão, ficando, ademais, naturalmente excluídas as que constitucional e estatutariamente correspondem a outros órgãos do Estado e da Generalitat, em particular, como é patente, as competências legislativas”. A participação do Governo da Generalitat cerca do Governo do Estado há limitar-se à típica faculdade e estímulo e incentivação do exercício duma determinada competência por quem é o seu exclusivo titular jurídico. Outras matérias importantes que foram recorridas ante o TC foram: a distribuição de competências entre Catalunya e o Estado, as relações internacionais de Catalunya e um sistema de financiamento próprio para Catalunya.

Os câmbios introduzidos pola sentença do TC, feita pública o 28/06/2010, foram qualitativamente muito importantes e desnaturalizam a natureza da reforma aprovada. O TC mantém nela uma filosofia de clara subordinação das competências e das decisões da autonomia de Catalunya a respeito do Governo central do Estado, igual que da sua língua a respeito da língua oficial do Estado. O leit motiv da sentença parece ser libertar o Governo central de qualquer atadura devido à existência e reforma do sistema autonômico. A autonomia é uma concessão da CE e o intérprete desta são sempre, indiretamente, os partidos de âmbito estatal por ser quem controlam a nomeação dos membros do TC. O povo de Catalunya respondeu a esta sentença com uma demonstração monstro em Barcelona o 10/07/2010 para amostrar o seu rejeitamento à sentença do TC e a favor da independência de Catalunya.

O resultado desta política do PP foi o seguinte: O Estatut aprovado polo povo de Catalunya em referendo foi anulado e o Estatut laminado polo TC não foi submetido à aprovação do povo catalão, como prescreve o mesmo Estatut para qualquer reforma. Do qual se segue que o povo catalão propriamente não tem um marco legal polo que reger-se. O sistema autonômico foi ferido de morte polas manobras de despacho dum partido que atacou uma reforma estatutária envolvendo-se na bandeira de Espanha para ganhar votos noutras partes do Estado e apelando ao cumprimento duma lei feita à sua medida, ao tempo que a conculca constantemente para atacar os adversários políticos e financiar-se irregularmente.