29 sept 2017

A onde te levam, Catalunha!



            Os cidadãos de Catalunya estão a experimentar em carne viva a autoritarismo e a cegueira dum governo que primeiro anula a sua legislação própria, amparando-se num Tribunal Constitucional amigo, nomeado polos partidos unionistas PP e PSOE, que dita sentenças ao seu arbítrio, e depois se nega em redondo a dialogar uma saída que tenha em conta a sua vontade. Nesta deriva de loucura repressiva é auxiliado polo seu mosqueteiro C’s, partido xenófobo onde os haja, que em política somente tem claro que tem que servir ao IBEX e cercear de raiz as aspirações dos povos que convivem no Estado espanhol. Para a consecução dos seus objetivos não duvidam em utilizar os fiscais e os juízes como o seu braço executor prostituindo as funções que lhe competem em todo estado de direito, que são investigar os delitos e condenar os culpáveis. Bota mão também dos tertulianos, que, a modo de intelectuais orgânicos, bendizem as suas políticas e condenam qualquer ato ou decisão dos seus adversários.

            Uma vez mais se vai repetir a história repressiva que caraterizou historicamente o processo de desmembração do Império espanhol, que consistiu em afogar por meio da repressão qualquer câmbio real de status político das colônias, e, no caso presente, incluso de acordo com a vontade majoritária das pessoas, e assim, em vez de acomodar a legislação ás pessoas, pretende-se acomodar e modelar as pessoas de acordo com a legislação, que é exatamente a inversa do princípio democrático. Aliás, esta legislação que fundamenta a repressão foi imposta polos poderes fácticos mais intransigentes e ultras. Quando um compara a maneira de resolver os problemas no Reino Unido da Grã Bretanha e no Canadá com a maneira de fazê-lo no Estado espanhol, um não pode por menos de ruborizar-se do fanatismo e intransigência do Estado em que nos toca viver. Nele a repressão exercida pola inquisição deixou uma profunda seqüela, que foi reforçada por tantos e tantos anos de governo de ditaduras militares em contra da vontade das pessoas.

Tanto o PP como C’s levam tempo semeando um clima de intoxicação contra os promotores do referendo, mas isto não arreda o PP de propalar um vídeo no que culpa os catalães de hispano-fobia. Recordemos, por outra parte, que foi a deriva anti-estatut do PP a origem do atual conflito. Lembremos também o “Oe, a por eles” do grupo de cidadãos que despediam aos polícias que marchavam para Catalunha. Mas já sabemos que o que fazem certos partidos políticos é transmitir, como próprio ou alheio, segundo lhes convenha, a través da mídia precisamente aquilo de que carecem ou abodam. Lembremos a campanha persistente de Feijóo apresentado-se como o maior defensor do galeguismo, prostituindo a este efeito o que esta palavra significou e significa. No caso do referendo, demandado polo oitenta por cento da cidadania, Rajoy atreve-se a apresentar a sua luta contra o referendo como uma defensa dos próprios catalães, o qual é o colmo da tergiversação e manipulação.

O principal argumento que aduzem são que o referendo não é democrático, porque não é legal. Este argumento é falaz porque democrático é o que decide a cidadania e legal é o que se acomoda às leis. Algo pode ser legal e não democrático, como as disposições para manter ENCE na ria de Pontevedra; e algo pode ser democrático e não ser legal de acordo com a legislação espanhola, como o referendo de Catalunha; ainda que este mesmo referendo é legal segundo a legislação internacional, como o Rajoy e Cia. sabem ou deveriam saber perfeitamente. Aliás, se não é legal o que cumpre fazer é cambiar a lei, porque somente é ilegal porque os unionistas mais radicais e exacerbados não querem que seja legal polo medo imenso que têm a que a cidadania decida precisamente aquilo que a eles não lhes interessa.

O posicionamento dos partidos políticos é díspar. Entre os estatais, PP e C’s apresentam-se como os garantes da sagrada unidade da pátria, subordinando a esta qualquer espreita de prática democrática. O único democrático é Podemos, que defende que se realize o referendo, ainda que não se pronuncie polo resultado. No clima de intoxicação que existe no Estado espanhol, podemos dizer que é um pronunciamento valente porque se atreve a opor-se ao clima de manipulação imperante, apesar de poder ser penalizado polos votantes mais espanholistas. O PSOE dá-lhe prioridade ao E do seu logo e apresenta-se como defensor da espanholidade subordinando a esta a democracia, com o objetivo de ser favorecido polos seus votantes mais espanholistas. Os seus pronunciamentos históricos a favor do direito de autodeterminação ficam papel molhado, como nos tem mui acostumados este partido. Entre os nacionalistas, o PNV preferiu obter reditos econômicos imediatos para os seus cidadãos, a expensas de hipotecar o seu autogoverno em longo prazo, sem ser consciente que um fracasso do processo catalão vai condicionar o seu futuro, e é provável que muito negativamente.. Bildu, BNG e, polo menos, certos sectores de Em Maré mantêm uma posição firme não só polo referendo senão polo si.

A Igreja espanhola intenta superar o pronunciamento de 2006 em prol da unidade de Espanha como bem moral e opta polo diálogo; na igreja catalã uns optam polo si ao referendo e outros polo silêncio, por esperar e ver. Cumpre destacar o passo ao frente do bispo de Solsona, que anunciou que irá a votar o domingo; a declaração de mais de 400 clérigos que consideram “legítima e necessária” a realização do referendo ante a impossibilidade de pactuar nada com o Estado. Pedem-lhe ao papa Francisco que medie perante Governo de Rajoy para que "recapacite a sua visceral oposição" ao referendo, "cesse as suas ações repressivas" e "permita realizar com garantias" a consulta; uns 250 fieis de Barcelona oram pola independência, e muitas organizações cívicas apóiam a consulta. Os bispos galegos não sabem, não contestam. Agora o PP pretende silenciar o pronunciamento dos dirigentes eclesiais, convidando-os a que se ocupem de religião e de moral e não se metam em política, ao tempo que intenta obter do Vaticano um pronunciamento político de condena dos que defendem o referendo. Quando em 2006 a Conferencia Episcopal espanhola se pronunciara pola unidade de Espanha como bem moral, então não fazia política.

A diplomacia espanhola está volcada em obter apoios internacionais em contra do referendo, ainda que com um êxito muito discreto. Apoiar a política governamental espanhola em Catalunha implica apoiar uma das maiores repressões contra os cidadãos desta comunidade polo simples facto de votar, só comparável à que exerce Iraque contra o referendo kurdo, que acaba de triunfar com o 92 por cento dos votos, pretextando taḿbem que é inconstitucional. Para esta campanha de cega repressão não duvidou em cambiar as leis, como a do Tribunal Constitucional, porque para a repressão todo é factível.

Um pronunciamento muito importante é o dos expertos em direitos humanos da ONU, David Kaye e Alfred de Zayas, que num comunicado na Web das Nações Unidas, recordam que a obrigação do Executivo espanhol é “respeitar esses direitos que são essenciais nas sociedades democráticas”, entre os quais cita a liberdade de expressão, de assembleia e reunião e de participação política. Consideram estes expertos que “as medidas que estamos presenciando são preocupantes porque parecem violar os direitos individuais fundamentais”, em referência às acusações de sedição contra vários manifestantes que participaram numa protesta em Barcelona. Além disso advertem que o traslado de polícias a Catalunha e certos discurso “incrementem a tensão social”. Até agora, tanto o PP como C’s amostraram-se surdos e cegos a respeito dos direitos coletivos, que sempre lhe produziram urticária, e agora não é surpreendente que os acusem de violar também os direitos individuais. Já dizia Castelao: “Não há indivíduos inelivres em povos escravos”.

7 sept 2017

A religião e os atentados terroristas



            Depois de cada atentado os políticos reiteram uma e outra vez que é um problema de terroristas e não da religião em si, com objeto de evitar uma guerra de religiões e o ódio contra os que a praticam, propósito sem dúvida louvável, ainda que não parece ajustar-se à realidade, como todos os slogans demasiado simples.

Temos um feito constatável em todos os casos de ataques terroristas, que é o facto de que os seus protagonistas muçulmanos se realizam em nome de Alá e assassinam ao grito de «Alá é grande», e como  não existem indícios que nos permitam duvidar da sinceridade das suas reivindicações, temos que concluir que a religião algo tem que ver com o terrorismo. Contudo, seria desacertado estender a animadversão por estes ataques irracionais e selvagens aos praticantes das religiões em geral, pois a grande maioria dos crentes são pessoas de paz e contrárias aos atentados indiscriminados que visam dar morte a quantos mais, melhor, e deve concentrar-se nas pessoas e grupos que expandem o terror entre a população. Ora bem, os aderentes de qualquer religião ou outra associação devem tomar todas as medidas ao seu dispor para permitir que as autoridades do país onde têm lugar possam pôr ante a justiça aos seus autores, e condená-los sem paliativos.

Os terroristas muçulmanos manifestaram que a sua luta vai dirigida contra os cruzados e os judeus, que são considerados principalmente os «outros», e, se temos em conta que a religião muçulmana procede por filiação da judia e da cristã e que têm a mesma conceição filosófica de Deus ainda que com diferentes denominações, isto significa que a sua proximidade ideológica no referido ao conceito de Deus não propicia a mútua fraternidade e solidariedade entre elas, senão, ao revés, o enfrentamento e a divisão. Fixemo-nos em que não põem no seu centro de mira nos ateus, budistas ou hindus, senão  mais bem as confissões que têm um mesmo ar de família. Isto indica que, em realidade, existe uma luta latente pola supremacia mundial, neste momento especialmente do islamismo com as outras duas, com o propósito de impor o mesmo credo a toda a humanidade e, em definitiva, uma teocracia mundial, dando fim assim a qualquer resto de pensamento livre.

            Estas três grandes religiões monoteístas foram historicamente protagonistas de atos de terror tanto contra os seus próprios fieis como contra os chamados infiéis, indignos para eles de viver e, portanto, quando se lhe infere a morte está-se a fazer um serviço a uma divindade exclusivista que, segundo os livros chamados sagrados, quer monopolizar o culto de toda a humanidade.

A noção de Deus destas três religiões tem uma fonte comum que é o deus monoteísta judeu forjado durante o exílio de Judá em Babilônia, que se identifica com o deus tribal de Jerusalém, um deus ciumento, exclusivista, guerreiro, intransigente e despótico, que exige a total identificação dos fieis com ele. O povo hebreu sempre foi politeísta até a cativação de Babilônia que se estende do 586 ao 537, se bem cumpre ter em conta que estava dividido em dous reinos: Israel, que sempre praticou uma política de tolerância, e Judá e também a repressão religiosa dos seus reis, mais presente em Judá. O povo hebreu e outros povos do Médio Oriente adoravam um panteão de deuses que estavam presididos por «El», que significa Deus, e qualificado com os epítetos de Altíssimo, pai dos deuses e criador, e o seu símbolo era o touro. e, num primeiro momento, não condenavam o culto a outros deuses, se bem consideravam que o seu deus, Javé, era superior aos demais como se indica no Salmo 134, 5, escrito provavelmente arredor do ano 1004 a.e.c. “Porque eu conheço que o Senhor é grande e que o nosso Senhor (Javé) está acima de todos os deuses”. (Salmo 134, 5). A defesa duma ética de retribuição imanente na que todo ato leva associado a sua retribuição neste mundo e a associação do mal com o pecado, também presente em Jesus, vão contribuir enormemente a aderir ao monoteísmo por considerar que os fracassos de Israel provêm de ter-se afastado o povo e/ou os governantes de Javé. Com todo, ainda em textos do século IX se reconhece que todos os deuses, incluído Javé, são filhos de El. O salmo 82 não deixa nenhuma duvida de que de facto “El” e Javé são dous deuses diferentes... O Altíssimo é El ou Elião, o pai de Javé e o pai de todos os deuses”.

. A partir do exílio do reino de Judá prega-se até a saciedade o exclusivismo do Deus judaico: “A ti te foi mostrado para que soubesses que o Senhor é Deus; nenhum outro há senão ele... Polo que hoje deves saber e considerar no teu coração que só o Senhor é Deus, em cima no céu e embaixo na terra; não há nenhum outro” (Dt. 4, 35.39). “Vede agora que eu, eu o sou, e não há outro deus além de mim; eu faço morrer e eu faço viver; eu firo e eu saro; e não há quem possa livrar da minha mão” (Dt. 32, 39). “Pois quem é Deus, senão o Senhor? e quem é rocha, senão o nosso Deus?” II Sa. 22, 32).

O fundador do cristianismo, Jesus de Nazaré, pregou até o paroxismo a necessidade de segui-lo cegamente por cima de qualquer ligação humana, e também o enfrentamento entre os seres humanos e muito especialmente entre os membros da família. “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim” (Mt. 10, 34-38). Essa entrega que exige Jesus deve incluir o ódio contra os seres mais queridos polos seres humanos. “Se alguém vier a mim, e não aborrecer a pai e mãe, a mulher e filhos, a irmãos e irmãs, e ainda também à própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não leva a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo” (Lc. 14, 26-27). O cristianismo tem um problema claro com estas manifestações de Jesus que podem utilizar-se como fonte de fanatismos, e de facto produziram já muita dor nas famílias no decurso da história. Quantos moços e moças não abandonaram aos seus pais em seguimento destes preceitos! Quem repara o dano causado às famílias! A sorte dos infiéis é, segundo Jesus, a condena eterna (Lc. 12, 46). Também o cristianismo deveria explicar como alguém que foi proclamado Deus, consubstancial com o Pai, declara a guerra como inevitável sem comprometer a bondade da obra criadora da que ele é o autor: “E ouvireis falar de guerras e rumores de guerras; olhai não vos perturbeis; porque forçoso é que assim aconteça” (Mt. 24, 6).

            A religião cristã defendeu a liberdade de pensamento entretanto careceu de reconhecimento oficial por parte do Império Romano, mas uma vez que se converteu em religião tolerada e no 381 oficial, defendeu a guerra santa, traduzida na imposição da crença cristã, servindo-se da espada secular, pola força e a violência, da inquisição e das cruzadas, entre elas a representada pola Guerra Civil espanhola de 1936. Foi, sem dúvida, uma das mais sanguinárias da história e deve a sua supremacia precisamente à sua imposição, a partir do século IV, por parte do poder imperial romano interessado em homogeneizar ideologicamente a população em base a um único deus e a um único imperador na aterra. Quando, a partir do século XII, se faz difícil o mantimento do monolitismo ideológico, estabeleceu a inquisição como mecanismo de terror sobre a população e de condena de qualquer dissentimento ideológico, que esteve em vigor até o ano 1834. O dano causado ao desenvolvimento do pensamento, da ciência e da cultura foi enorme. As vítimas principais da repressão inquisitorial foram os «pérfidos judeus», como eram designados na liturgia cristã, especialmente os denominados «conversos», e os muçulmanos, com os quais praticou o racismo mais xenófobo intentando impor a pureza de sangue da população nos Estado espanhol e português e as suas colônias.

            Também no século XII se pôs em prática o aventureirismo militar com as cruzadas, que no fundo perseguiam o estabelecimento duma teocracia mundial sob o mando do Romano Pontífice, empresa que se saldou num estrepitoso fracasso para os hostes vaticanistas e para os reis europeus.

            O fracasso da repressão cristã permitiu dar passo em Ocidente a uma sociedade plural e laica, e, algo semelhante podemos dizer a respeito do âmbito social que controlou a religião judia. Infelizmente isso não acontece no âmbito do mundo muçulmano, que, com o objetivo de dotar-se duma identidade frente ao sistema de dominação ocidental, voltou às origens da sua religião, idealizada como um passado idílico, e, nalguns casos, interpretada desde uma óptica hostil e duma praxe que não duvida de acudir ao terror para com os «outros», principalmente os cristãos e os judeus, obsedado em substituí-los como religião única no seu afã de impor o seu monolitismo ideológico a toda a sociedade fazendo felizes à força aos demais. Esta sociedade edificar-se-ia sobre um imenso montão de cadáveres de pessoas inocentes que, muitas vezes, quiçá mesmo podem empatizar com a sua luta..

            No Alcorão não figura literalmente a expressão jihad ou guerra santa, ainda que si os elementos constitutivos da sua noção. Em realidade a noção de guerra santa, ou seja, a guerra que se faz por motivos religiosos, e os seus sinônimos, guerra de religião, cruzada,..., deveriam desaparecer de qualquer universo civilizado, pois não há nenhuma guerra que mereça esta denominação, e somente obedece a uma conceição primária da divindade, na que o ser humano projeta as suas reações mais bestiais e mais burdamente tribais. Uma guerra pode ser justa ou legítima, como em casos de legítima defesa, mas nunca santa. Tal conceição da divindade somente pode conduzir à mútua destruição dos seres humanos e nunca a forjar uma sociedade mais tolerante, fraterna e solidária, que deveria ser o objetivo de toda associação tanto política como religiosa.

O Alcorão declara a respeito dos judeus: “Toda vez que acenderam o fogo da guerra, Deus os extinguirá” (5ª Surata, 64). Os pecadores são considerados como os seres piores a causa da sua incredulidade. “São aqueles com quem fazes um pacto e que, sistematicamente, quebram seus compromissos, e não temem a Deus. Se os dominardes na guerra, dispersai-os, juntamente com aqueles que os seguem, para que meditem” (8ª Surata, 56-57). Aceita, igual que os judeus, a lei do talião, que Jesus de Nazaré quis superar. Desaconselha a guerra agressiva e aconselha a defensiva. “Combatei, pela causa de Deus, aqueles que vos combatem; porém, não pratiqueis agressão, porque Deus não estima os agressores” (2ª Surata, 190). Se se limitar a responder à agressão  dum modo proporcional, nada haveria que objetar, mas o Alcorão prega também a guerra por razões de proselitismo religiosos e oferece ao combatentes a felicidade eterna. “Pretendeis, acaso, entrar no Paraíso, sem que Deus se assegure daqueles, dentre vós, que combatem e são perseverantes?” (3ª Surata, 142). “Que combatam pela causa de Deus aqueles dispostos a sacrificar a vida terrena pela futura, porque a quem combater pela causa de Deus, quer sucumba, quer vença, concederemos magnífica recompensa. E o que vos impede de combater pela causa de Deus e dos indefesos, homens, mulheres e crianças? que dizem: Ó Senhor nosso, tira-nos desta cidade (Makka), cujos habitantes são opressores. Designa-nos, de Tua parte, um protetor e um socorredor! Os fiéis combatem pela causa de Deus; os incrédulos, ao contrário, combatem pela do sedutor. Combatei, pois, os aliados de Satanás, porque a angústia de Satanás é débil” (4ª Surata, 74-76); e devem lutar até prevalecer a religião de Deus, e os que o fazem receberam um grande prêmio, incomparável com a breve e passageira felicidade humana neste mundo. “O gozo terreno é transitório; em verdade, o da outra vida é preferível para o temente; sabei que não sereis frustrados, no mínimo que seja”.

Do mesmo modo que o ser humano cria a deus à sua imagem e semelhança, este deus, uma vez criado polo ser humano, modela os aderentes da religião. As três religiões citadas prometem a glória no paraíso aos que cumprem a sua vontade, e muito especialmente aos que se imolam por ele. E estes dous elementos:a noção de Deus e as expectativas duma vida de gozo após a morte dispõem o fiel à entrega total para cumprir a vontade divina, ao tempo que o insensibilizam ante o sofrimento alheio e acalmam a voz da consciência perante os atos mais criminais. O autor do evangelho de São João quis corrigir esta insensibilidade ante a dor alheia quando declara que quem não ama ao seu próximo ao que vê, como pode amar a Deus a quem não vê, mas, como no-lo demonstra o acontecido durante o período inquisitorial, a corrente que triunfou foi a primeira, e, portanto, a disposição a cometer as maiores atrocidades contra o próximo para agradar a Deus e, por riba, considerar-se merecedores perante Deus dum prêmio eterno.      

            As três religiões são as religiões do livro, ou seja, que supostamente receberiam a sua mensagem da mesma divindade por inspiração divina e, nestes textos, proclamados como «sagrados» fundamentam a sua dogmática e as suas normas de comportamento, ambas rígidas, imutáveis, eternas e impermeáveis ao passo do tempo, e isto explica que se vejam por muitos como ideologias ultrapassadas no tempo e incapazes de compreender a realidade. As três coincidem na condena deste mundo e da disparidade comportamental e social e pregam um mundo no que o «outro» não tem cabida como tal e cumpre aniquilá-lo. Concordam também na defesa da misoginia e na condena da homossexualidade, e o judaísmo coincide com o islamismo na prática da lapidação, que Cristo desaprovou. Coincidem também a prometer aos seus fieis um mundo de ultra-tomba feliz se cumprem os mandados divinos e especialmente se se convertem em mártires e expandem a sua mensagem e aniquilam ao adversário, impedindo criar um mundo no que a tolerância ante a pluralidade, também para com os que professam qualquer religião, seja a norma. Muitos dos santos cristãos foram elevados aos altares por este motivo. A intolerância somente cabe aplicá-la com os intolerantes, mas nunca com os que respeitam aos demais, aos que devemos ajudar para que aceitem plenamente os direitos humanos e todos juntos colaboremos na promoção dum mundo mais habitável.


1 sept 2017

Esmorecimento da nossa toponímia



            Uma cultura, para ter futuro, tem que ser um produto vivo e no que a gente viva, um produto que se enriqueça no decurso do tempo com novas contribuições dos membros da comunidade cultural, ao tempo que se desprenda das excrescências, aderências e elementos que deixaram de ser operativos, mas as novas contribuições devem inserir-se no âmbito da mesma cultura e não ser elementos que a distorçam e produzam a alienação cultural e isto refere-se também ao modo de denominar a própria realidade geográfica e social. Dado que a cultura, e a sua máxima expressão que é a própria língua, tem que ser um produto vivo e operante para os habitantes duma determinada coletividade não basta com conservar por escrito os seus memes, ou unidades mínimas de informação aprendida, tal como propõe Mosterin, porque desta maneira teríamos uma cultura enlatada, uma cultura de laboratório, mas não um produto vivo e pujante.

            Faz uns dias li uma noticia na que se afirmava que se vai ampliar o nomenclator galego com o objetivo de proteger os dous milhões de topônimos e micro-topônimos da nossa comunidade, grande parte deles em risco de desaparecer, mas parece claro que por muito que figurem num nomenclator não têm garantida a sua supervivência se não se integram na vida real das pessoas. Poderia, contodo, ser um objetivo loável em caso de ir acompanhado duma vontade de conservar e promover a nossa cultura e uma parte fundamental dela como é o nosso idioma como objetivo irrenunciável, pois foi essa cultura a que lhe deu origem e é neste idioma no que figuram esses topônimos, mas tem muito menos sentido no caso de umas autoridades que parecem desprezar a cultura própria e sentem um complexo enorme perante a língua na que os nossos antepassados denominaram essa realidade geográfica. Topônimos como a Lameira, a Lagoa, a Chaira, as Cortinhas de Riba, Angarilha, Agra das Bouzas, Agro da Carvalheira, os Riveiros, etc. tiveram como criadores a pessoas que estavam identificadas com a terra e que falavam a lingua do país e o lógico seria conservar os topônimos junto com a língua em que se expressaram.

            Os câmbios nos topônimos podem ser devidos a fatores endógenos à própria cultura, ou exôgenos, segundo se originem desde o interior ou do exterior da própria cultura. Quando falamos de endógenos ou exógenos não queremos designar só a atuação de pessoas exteriores à própria Galiza, senão também a pessoas já identificadas com a cultura espenhola, que, desde o interior da Galiza, colaboram com o labor de alienação da nossa cultura, consciente ou inconscientemente, ativamente ou acomodando-se à inércia imperante. Toda realidade está, inevitavelmente, submetida à câmbio e mutação, e a cultura não pode ser alheia a este universal devir, em palavras do velho Heráclito, mas somente são enriquecedores os câmbios endógenos, ainda que são também os mais difíceis numa situação de colonização. Aclaremos isto com algum exemplo. Faz-se um concentração parcelária e várias propriedades são integradas numa única, por exemplo, o que antes eram a Angarilha, Agra das Bouzas e o Seixinho são concentradas, e se o conjunto recebe o nome de Agra das Bouzas, é evidente que os demais vão desaparecer por desuso. Com todo, ainda que há perda de topônimos, o câmbio é endógeno e integra-se no seio da própria cuoltura.

            Suponhamos agora que parte ou todas as citadas parcelas formam parte dum núcleo urbano afetadas por um PXOM. Neste caso, o habítual é que se integrem num polígono que recebe um número, por exemplo, o 20, nome já espanhol ou híbrido, que pode deslocar os nomes das parcelas originárias; e se uma vez que se procedeu à sua urbanização, todo ou parte do Polígono é vendido a alguma empresa, muitas vezes se lhe põe à parcela adquirida e edificada um nome comercial que sirva de propaganda para a sua empresa, que, usualmente, será um nome espanhol. Se os redatores do PXOM, as administrações e a própria cidadania tivessem mais sensibillidade pola própria língua e cultura, que a que têm a dia de hoje, deveriam velar para que essa toponímia não se perdesse, senão que, polo menos, parte dela se integrasse no novo produto. Em certo momento que atuei como membro duma Junta de Compensação defendi que os topônimos deveriam manter-se na sua forma original galega, tese com a que concordava o técnico do polígono, mas outro membro galego dessa Junta retrucou-me que só estaria de acordo em que estivesse em galego se não é um nome feio. Isto significa que os nomes galegos devem superar um plus de estética com respeito aos nomes em espanhol.

            Existe outro âmbito no que a perda de topônimos é galopante, que é o das honras a personagens supostamente meritórias. Creio que é de justiça ser agradecido com as pessoas que se fizeram acredoras de que a comunidade as perpetue na memória coletiva com um reconhecimento especial, mas isso nunca deveria fazer-se a expensas da destruição da toponímia originária da coletividade. No Estado espanhol não abondaram autênticas elites diretivas que servissem de guía à maioria social; o que houve, principalmente, foram elites extrativas que se aproveitaram dela, vivendo e enriquecendo-se às suas expensas. Estas elites constituiram um corpo no que os membros se intercambiaram favores e privilègios seguindo o princípio:hoje por ti e amanhã por mim. As homenagens públicas, nestes casos, convertem-se num reocnhecimento dos favores prestados por parte do favorecido.

Se nos limitamos a Galiza, creio que há alguns antepassados que merecem ficar no imaginário coletivo e quiçá a grande maioria concordaríamos em incluir dentro desta nômina a pessoas como Rosalia, Castelao, Curros Enríquez, Otero Pedrayo, Anjo Casal,..., mas a homenagem a estas pessoas e sobre todo a outras menos insignes poucas vezes justifica que se faça a expensas de destruir a riqueza coletiva criada polos seres anônimos, por essas luzecinhas inominadas que nos precederam e conservaram essa criatividade coletiva muito merecedora do nosso tributo em bloco a todos eles. Se visitássemos as cidades do Estado espanhol e fizermos a história das pessoas selecionadas como merecedoras do reconhecimento coletivo, que recortes teríamos que fazer! Reis e rainhas incompetentes e corruptos, carentes de qualquer mérito distinto da pura animalidade. Chefes de Governo e ministros, especialistas no manejo das portas giratórias, que amassaram uma grande fortuna no exercício do seu cargo e que não significaram nada real para a comunidade que se vê obrigada a lembrar a sua memória. Militares aos que se lhe dedicam alguma das ruas principais das cidades e que só se distinguiram por ser membros dum exército pouco exitoso na maioria das contendas em que participou. E todo isto se fez a expensas dos topônimos criados polas citadas luzecinhas inominadas das que ninguém se lembra. Nos nossos dias podemos constatar que os topônimos urbanos foram substituídos polos nomes de personagens que não significam nada para a coletividade ou polos nomes de cidades, tanto estatais como estrangeiras, sem vínculos reais de nenhuma classe com o país. Esperemos que chegue um dia em que a própria cidadania se rebele contra a liquidação das criações populares com as que se auto-identificou e denominou a realidade geográfica no transcurso do tempo.
23/08/2017

Protestas anti-turismo



            Nos nossos dias estão a produzir-se, como novidade, uma série de manifestações em contra do turismo, seguidas duma enfiada de declarações de repulsa dos poderes públicos, e cumpre analisar as suas causas e a sua pertinência.

            São habituais no Estado espanhol as condenas de todo aquele que protesta, como passou com o movimento de Nunca Mais na Galiza, o dos indignados do 15 M, ou simplesmente de quem quer mudar a realidade ainda que seja por vias pacíficas, como aconteceu com as propostas de reordenação do poder territorial do Estado espanhol feitas polos governos basco e catalão, sem parar-se a examinar as causas das protestas e/ou propostas e ver de dar-lhe uma solução política. Vivemos num país que historicamente sentiu urticária ante os problemas e movimentos suscitados pola cidadania, que produziram uma cissura entre as duas Espanhas, a oficial e a real. O conglomerado nobiliário-eclesiástico-militar no Antigo Regime foi capaz de fazer languidescer, no Estado espanhol, o movimento liberal que coalhou com a Revolução Francesa, que só eclodiu no século XIX domesticado e misturado com ressaibos clerical-militaristas. Isto explica que o liberalismo tivesse entre as figuras mais destacadas os freires Feijóo e Sarmiento e que tivessem que ser também os militares quem capitaneassem partidos liberais. Já no século XIX e XX seria um liberalismo domesticado e convertido em ideologia do capitalismo quem se coliga com o conservadorismo, o clericalismo e o militarismo para derrubar as aspirações dos movimentos social-progressistas que, finalmente, terminariam por aceder ao poder na segunda metade do século XX e, convertidos em partidos de governo, se oporiam aos novos movimentos surgidos a partir do 15 M e às iniciativas para reformular democraticamente a distribuição do poder territorial do Estado feitas polos partidos nacionalistas. É muito ilustrativo disto o posicionamento espanholista que está a defender o PSOE ante o processo catalão. Todas as colônias americanas, pola sua parte, acederam à independência pola via violenta por não ser capaz a Espanha de abrir-se às suas aspirações e criar uma comunidade solidária com vocação de permanência com os países latino-americanos que estiveram submetidos ao seu domínio. A monarquia espanhola exportou a estes países a sua política coercitivas sobre a população e impôs, com a ajuda da Igreja, a intransigência e o fanatismo inquisitorial com os que vinham reprimindo duramente os cidadãos nos seus domínios europeus. Nestes mesmos momentos, numa etapa denominada democrática, caraterizada pola conivência do poder eclesiástico, político e oligárquico, vivemos numa das fases de mais premente repressão das manifestações desde que se iniciou a etapa democrática da transição espanhola do 78, que na Galiza se traduziu na imposição de perto de 14.000 multas anuais e na Espanha mais de 190.000 ao amparo da lei mordaça. E isto acompanha-se com uma manipulação informativa mais intensa desde 1977.

            É certo que o turismo constitui uma fonte de riqueza para um país porque incentiva a atividade econômica que incrementa o consumo de produtos agrários, ganadeiros, têxteis; impulsa à construção e mantimento do parque de vivendas e promove a hotelaria; dá a conhecer a nossa riqueza artística e cultural, etc., que, em caso contrário, veriam minguada a sua atividade. É também uma fonte de divisas que, no caso espanhol, permite compensar o histórico desequilíbrio da balança comercial e equilibrar a balança de pagamentos com o exterior, o qual significa que a economia espanhola se especializou no turismo em detrimento da industrialização, do setor agrícola-ganadeiro e da exportação de produtos manufaturados. Esta especialização no turismo foi de par com a difusão do estereotipo dos espanhóis como uns festeiros aos que só lhes preocupam a farra, o vinho e as mulheres, como nos acusou o chefe do euro-grupo, o holandês Jeroem Dijsseibloem. É triste e exagerado o mencionado estereotipo que fazem dos espanhóis muitos europeus, se bem temos que reconhecer que práticas como a do botelhão, que concita a milhares de moços para emborrachar-se e consumir outras drogas duras e brandas, com a permissividade e falta de reação das autoridades, não contribuíram a dar uma imagem de seriedade do país, e o mesmo podemos dizer da a vida de diversão e borracheira noturna até altas horas da manhã os fins de semana. Isto provoca que agora não estamos muito legitimados para pedir-lhe um comportamento sóbrio e ascético aos estrangeiros.

            É de supor que a grande maioria dos que protestam sejam conscientes das vantagens do turismo, e então por que protestam? Esta claro que ninguém protesta por gosto ainda que isto não significa que sempre tenha razão. Quando os vizinhos da Barceloneta tomam a praia dizem que o fazem para exigir o fim dos apartamentos turísticos, muitos deles ilegais, que provoca a diminuição dos vizinhos, e para lutar contra a especulação imobiliária, a privatização do espaço público e o turismo massivo e incivil que provoca o encarecimento dos alugueres, a desaparição dos comércios, o incremento do ruído e do consumo de drogas, em definitiva, um turismo low cost e de borracheira. A queixa dos vizinhos não é contra o turismo em si, senão contra os pisos turísticos que promovem um turismo de massas low cost que os afoga e destrui o seu sistema habitual de vida. Aliás, também experimentam que a riqueza que produz a atividade turística  não incide nas suas vidas e inclusive não se distribui equitativamente entre os implicados neste processo, pois enquanto os empresários ganham muito com a atividade turística, os salários dos trabalhadores são cada vez mais precários e o prezo dos produtos de consumo e o aluguer da vivenda não deixam de medrar, além de que custo de vida nas zonas turísticas encarece-se notoriamente.

            Isto implica que há que repensar o modelo de turismo que se quer para o Estado e não insistir continuamente nas bondades do incremento de visitantes, senão que há que promover especialmente um turismo de qualidade e de comportamentos cívicos corretos. Creio que as autoridades espanholas devem dar-se conta de que esta protesta pode ser muito positiva se serve para focar o problema do turismo dum jeito distinto e que não é muito acertada dedicar-se à condena fácil e com grossos qualificativos dos que sofrem um problema real que condiciona muito negativamente a sua qualidade de vida por uma atividade que não reporta um interesse real para o país. É também improcedente pretender deslegitimar os protagonistas das protestas atribuindo-lhe a autoria a setores, neste caso nacionalistas de esquerda, previamente desqualificados como radicais e extremistas, pois estes setores muitas vezes não fazem outra cousa que canalizar uma protesta cidadã. Isto deve servir de advertência também para os governantes galegos, muito interessados em promover um turismo de sanduíche e poucos ingressos por muito acompanhado que vaia de preces ao apóstolo Santiago.    

17/08/2017