23 abr 2020

Bem-aventurados os pobres


                O evangelho de Lucas 6, 20: recolhe como primeira bem-aventuranças de Jesus: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus, mas a versão de Mateus 5, 3, é ligeiramente distinta: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Ser pobre está mal, mas se lhe dizem a um que é pobre de espírito já colhe uma depressão da que pode necessitar tratamento intensivo. Esta é a razão pola que algumas versões da Bíblia em vez de pobres traduz humildes, apesar de que a palavra grega não autoriza esta licença. Disto não cabe dúvida de que Jesus estava da parte dos pobres, se bem, tarde me lo fiais, a gratificação é em diferido e têm que esperar ao reino dos céus. Estas manifestações complementam-se com outras nas que Jesus disse: “Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. E outra vez vos digo que é mais fácil um camelo passar polo fundo duma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus” (Mt. 19, 23-24). A decisão salomônica de Jesus é permitir que os ricos triunfem neste mundo e sofram no de ultra-tomba, e os pobres que se enfastiem agora e que gozem mais tarde.

            Quando a igreja começa a expandir-se e entram nela pessoas de todas as condições, buscou um acomodo para permitir que os ricos desfrutem tanto neste mundo como no próximo, que consistiu em mudar a pobreza real, presente no texto de Lucas, pola pobreza fictícia ou pobreza de espírito. Agora a pobreza vai entender-se como desprendimento psíquico dos bens, que é uma saída ambígua e ademais incontrastável, e que lhe permite à igreja meter no céu a quem lhe interesse, defendendo ao mesmo tempo a mística da pobreza, que não compromete a nada na prática. Agora os ricos ficam liberados do fundo das agulhas e já podem entrar no céu em tropel e por auto-estrada, sempre, naturalmente, que paguem a portagem fixada para estes casos, e contribuam com doações ao banco de alimentos ou com alguma esmolinha para os mendigos de turno.

            Vem isto a propósito das declarações de Luís Arguello, secretario de CEE (Conferência Episcopal Espanhola) nas que manifestou que está a favor do ingresso mínimo vital para as famílias necessitadas, pola crise do coronavirus, mas não de forma permanente porque poderia retirar do horizonte das pessoas pensar em realizar um trabalho e provocar que amplos grupos de cidadãos acabem vivendo de maneira subsidiada. Ou seja, que o porta-voz da CEE não quer que outros desfrutem a partir de agora de maneira permanente dos mesmos privilégios que eles vinheram desfrutando desde o século IV, em que a Igreja se converteu numa associação parasitária do Estado, que a dotou de favores a eito e de dumping fiscal e social, que se impõe coativamente a toda a sociedade, incluso aos que dissentem do seu ideário e de que o produto que vendem está cada passo mais desvaliado. Hoje somente setores muito  minoritários consideram que uma crise como a do coronavirus se soluciona com jaculatórias rituais, responsos, golpes de peito ou rogando a Deus compulsivamente para que nos libere desta praga. Quando em 541 teve lugar a peste bubônica, em 1300 a peste negar ou em 1918 a pandêmica de gripe, a gente agrupava-se nas igrejas para rezar, mas o único que conseguiram foi incrementar os contágios. Milhões de pessoas deixaram a vida no intento.

            Ao ritmo que vamos, com a robotização crescente da economia vão eliminar-se milhões de postos de trabalho, deixando no paro a uma imensa quantidade de pessoas, mas as empresas somente podem subsistir se a gente compra os produtos, o qual pode aconselhar que a gente trabalhe muitas menos horas e incluso que muita gente tenha que viver subvencionada e atuar somente como consumidor, e, portanto, como um agente subsidiado, que tampouco seria novo, pois Roma já entregava gratuitamente aos seus cidadãos “panem et circenses”, pão e circo. Parece que esta solução não lhe agrada aos clérigos, porque não querem que outros tampouco realizem um trabalho produtivo e se convertam em membros passivos da sociedade. Que solução arbitram os clérigos se esta previsão se cumpre?

Alguns sobram ou faltam na UE


                A união dos países europeus intentou-se construir, em primeiro lugar, por meio da força, com intentos protagonizados pola França de Napoleão e pola Alemanha do Kaiser Guilherme II em 1914 e do führer Hitler a partir de 1939, desejosa de ampliar o seu espaço vital para dar saída a sua ingente produção industrial, mas em vista de que ambos intentos se saldaram com o fracasso bélico, a partir da década dos cinquenta do século XX decide-se promover a integração pola via pacífica, constituindo-se em 1957 a Comunidade Econômica Europeia (CEE), que depois se reformulará para passar a integrar a União Europeia (UE).

                Em vista do que aconteceu na crise financeira e imobiliária desencadeada em 2007 e no que está a acontecer na crise do coronavirus, creio que se pode concluir que a CEE foi um êxito, mas que a UE é uma fracasso que pode que não sobreviva à crise presente, salvo que Alemanha e os seus satélites renunciem a impor o seu diktat à grande maioria dos países europeus. Esses países constituem num autêntico tampão que impede que os demais países europeus possam sair favorecidos precisamente por formar parte duma comunidade mais ampla, uma vez que se viram obrigados a renunciar a um dos instrumentos de resolução de crises que possui todo estado-nacional ou plurinacional. Hoje vemos que EEUU e o UK dispõem do recurso «ilimitado» ao crédito dos seus bancos centrais que lhes permite financiar-se a preços muito vantajosos, enquanto que os países da zona euro têm que recorrer aos créditos dos bancos e pagar uns interesses elevados para obter o financiamento preciso. Isto incrementará a prima de risco e a conseguinte dificuldade de financiar-se nos mercados. Foi Isto o que já passou na crise de 2007, perante a grande indiferença alemã e holandesa, que só se lhe ocorre riscar os países sulistas de dissipadores e estragadores.

                Na crise de 2007 a solução que se impôs para Grécia foi exclusivamente a austeridade, que submeteu ao povo grego a uma etapa de muita dor com resultados decepcionantes. Os seus artífices, ou seja, a troika, terminaram por reconhecer que as medidas adotadas não surtiram o seu efeito, ao tempo que a Comissão Europeia reconheceu que se humilhou desnecessariamente ao povo grego. Creio que o grande erro de Alexis Tsipras foi não atrever-se a sair do euro, porque a permanência na zona euro, se não se complementa com a união bancária e fiscal e a mutualização de riscos, é um caminho sem saída. A negação de assumir riscos, mas sim todos os benefícios, é precisamente o meio de que se serve a Alemanha de Merkel para construir uma Europa à sua medida, submetendo ao diktat teutão a todos os demais países, em vez de construir uma Alemanha europeia.

                A solução da crise de 2020, apesar de que todos reconhecem que nos véu dada, parece que vai polo mesmo caminho, e que vai demonstrar de novo que Europa como comunidade não funciona nem é democrática. Uma Europa que funcione como comunidade tem que partilhar riscos e benefícios. Alemanha não pode pretender que os demais países sirvam só para ampliar a sua quota de mercado, senão que, como comunidade mais rica e exportadora tem que ajudar a solucionar os problemas dos demais países em apuros. Isto reconheceu-o o presidente alemão  Frank Walter Steinmayer que disse: “Não só se nos pede solidariedade, com Europa, estamos obrigados e ela”. Os franceses, pola sua parte, já falam de caminhar juntos os que estejam dispostos a avançar nessa via. Tampouco é democrática, porque quem realmente decide é o Conselho Europeu, que não é elegido por ninguém, e isto é o que permite conformar uma Europa teutônica, porque a Merkel sabe que vai ter êxito no seu país se traz a raia aos demais e se nega a que os alemães contribuíam do seu peto a solucionar os problemas comuns. Parece já que começa a sobrar alguém em Europa, ou falta a cabeça lúcida que imponha sensatez no processo de construção europeia e que compreenda que um projeto comum implica custos e benefícios mútuos. Agora o humilhado já não é um pequeno país como Grécia, senão dous países representam a terceira e a quarta economia da zona euro, ademais de ser um deles, fundador da CEE, e se estes abandonam o barco já se terminou o cruzeiro.

10 abr 2020

Os derrotados da crise


                Quem ia pensar que a humanidade inteira ia estar num brete por um minúsculo organismo de entre 50 e 70 milimícrones, sendo um milimícron a milésima parte dum mícron, e este a milésima parte dum milímetro, o qual indica que o milimícron é a milionésima parte dum milímetro, Pois bem, um bichinho desse tamanho é o que tem acurralado os maiores poderes militares da história, com um ingente arsenal militar que é capaz de destruir a todos os seres viventes muitas vezes. Isto indica que as armas que amontoam as grandes potências militares não são idôneas para combater os maiores inimigos dos nossos dias do ser humano e doutros vertebrados; os maiores inimigos não são os outros seres humanos, nem os outros povos, nem muito menos os animais, senão os seres minúsculos que não podemos detectar com os nossos órgãos dos sentidos, e que não se podem matar a canhonaços nem com bombas atômicas, apesar de que a Trump lhe parece que elevando o gasto militar a um quatro por cento do PIB, já tem todo solucionado. Isto só serve para empobrecer a humanidade e fazê-la dependente das armas que fabricam os EEUU, China...

                Uma vez passada parte da primeira investida desta pandemia já temos um grande derrotado, que é o liberalismo econômico e político, que se condensa na frase: “laissez faire, laissez passer, La vie va de lui-même” (Deixai fazer, deixai passar, a vida marcha por si mesma). Como dizia Adam Smith, a economia é guiada por uma mão invisível que a conduz ao melhor resultado, se se evitam as interferências exteriores, mão invisível que se identifica com o mercado, convertido no grande fetiche da economia capitalista. E tem razão, porque isto leva ao melhor resultado a curto prazo para alguns, para os que manejam os fios do sistema: amontoam dinheiro a mãos cheias e põem-no a bom recato em paraísos fiscais. Como vemos, funciona formidavelmente, mas para alguns, enquanto que os outros se empobrecem. Por algo Aznar dizia faz pouco tempo: se a gente não quer liberalismo, pois mais liberalismo, que se resume bem na frase galega, “se não queres caldo, três cuncas”.

                Aos defensores deste sistema, que lhes importa a ciência? Que lhes importa a investigação? Que lhes importa a inovação? Que lhes interessa o câmbio climático? Que lhe interessa uma sanidade pública e uma educação pública e laica para todos? Perguntem-lhe a Trump, a Bolsonaro, a Vox, a Rajoy, a Aznar. Só interessa o que dá dinheiro a curto prazo, o que os beneficia a eles e aos seus amigos. Os políticos espanhóis andaram cacarejando que temos a melhor sanidade do mundo, e resulta que carece dos meios elementares para proteger os seus médicos nem os seus cidadãos. Não tem máscaras, não tem batas, não tem respiradores,... A troika e a Alemanha de Merkel quiseram solucionar a crise financeira com recortes, e com uma falta total de solidariedade com os países afetados. A consigna era: há que ser austero, não há que gastar e sobre todo não há que gastar o que não se tem. Resultado: recortes. No que se esmeraram Zapatero, Rajoy, Feijóo, Mas,... e garantir ante todo que os acredores cobrem ainda que a população não tenha o mínimo vital.

                Além do pouco investimento no público (sanidade, educação, residências de maiores, inovação,...) foi derrotada também nesta crise a privatização dos serviços públicos, que se traduziu em corrupção, falta de investimento, falta de preparação e desumanização. Aos que assumem o controlo destes centros só os guia o interesse crematístico imediato. Descende a preparação dos trabalhadores, os salários e a falta de interesse por oferecer um serviço de qualidade. A ideia diretriz é: invisto dinheiro para obter mais dinheiro. O coronavirus cevou-se com os maiores, nomeadamente com os que vivem em residências, que representam o quarenta por cento de todas as mortes por esta doença, delatando a falta de preparação dos cuidadores e, muitas vezes, a sua pouca humanidade e maus tratos dos velhinhos e velhinhas, culpa que não é atribuível prioritariamente aos próprios trabalhadores, senão aos que dirigem o negócio, porque não se podem ter trabalhadores implicados com baixos salários, precariedade laboral, falta de planos de formação, etc.