24 jul 2020

Um arcebispo galego valente

            A finais de junho de 2020, um jornal digital publicou uma entrevista a um arcebispo galego, natural de Asados, Rianjo, Santiago Agrelo, franciscano, que me causou perplexidade e me induziu a pensar que por vezes algo parece mover-se, ainda que timidamente, no seio da igreja católica, enquanto que algumas das suas respostas não parecem coincidir com as da oficialidade eclesial. Têm, por conseguinte, a virtualidade de que refletem algo novo e isto é de por si positivo, porque a realidade tem muitas aristas e cada nova arista sempre é sugestiva. Como alguns companheiros me pediram a minha opinião sobre este tema, intentarei responder aos pontos mais salientáveis das suas afirmações.

             Um dos problemas importantes que tem a igreja é a sua relação conflitual com a ciência, que, partindo de observações e experimentos, é capaz de estabelecer as leis que governam a realidade, leis que são intrínsecas ao devir natural, independentes das decisões dos seres tanto humanos como divinos, e incompatíveis com o discurso religioso, que atribui todos os factos à intervenção de vontades e desígnios de seres hipotéticos superiores que regem todos os acontecimentos e que podem modificar a realidade natural produzindo milagres. A este respeito diz este religioso: “Se damos por suposto que Deus, na Criação, manteve a sua intervenção na Terra, à margem das leis terreais, estamos inventando um mundo que não existe, que não existiu nunca. O mundo tem as suas leis, as suas normas, a sua autonomia, e isso não quita para nada do que lhe corresponde a Deus”. Esta é uma posição que intenta conciliar proposições contrárias, pondo-lhe uma vela a à ciência e outra a Deus. Eu concordo com o que ele diz na primeira parte da resposta, mas não na segunda. Se a natureza se governa polas suas leis, a sua autonomia, não pode operar de acordo com decisões heterônomas, e portanto, a hipótese de Deus é desnecessária. Aliás, a ciência rege-se polo princípio metodológico da simplicidade, formulado por Newton, que diz que «não devemos para as cousas naturais admitir mais causas que as verdadeiras e suficientes para explicar os seus fenômenos”. A razão é que “a natureza é simples e não se compraz em causas supérfluas para as cousas”. Portanto, de acordo com este princípio se a hipótese de Deus não é necessária, cumpre eliminá-la.

             A sua afirmação de que os males não são um castigo de Deus, porque Deus não opera assim na história não resolve nenhum problema, porque o que tem que explicar-nos o Sr. Agrelo é como a um Deus criador do mundo, que é onipotente, onisciente e bondadoso, lhe sai um mundo tão imperfeito e no que existe tanto sofrimento. Não sabia, não quis, ou não pudo fazê-lo melhor? Qualquer das alternativas que se escolham desacredita totalmente a divindade. Toda religião que, como as três grandes monoteístas, aceite um Deus onisciente, onipotente e bondadoso, incapacita-se para explicar a existência do mal no mundo. Se Deus criador não teve nada que ver com a pandemia, a que se devem estas pandemias?

             Não podemos por menos de concordar com a sua afirmação de que os males que existem no mundo não são obra dum castigo divino, mas não compartimos o seu entusiasmo polos relatos do Gênesis referentes a Adão e Eva, “dos mais fermosos e significativos da Sagrada Escritura”, e suponho que também ele mitigaria o seu entusiasmo se fosse mulher e fosse consciente que estes relatos da primitiva parelha justificaram o machismo mais exacerbado e apresentado como obra do mesmo desígnio divino; também o mitigaria se fosse plenamente consciente das suas implicações e, como uma pessoa preocupada polos temas da justiça e da proporcionalidade do castigo, comprovasse que este relato foi aproveitado por Santo Agostinho para propor a doutrina do pecado original, que vem dizer que Deus submete os seus filhos, os seres humanos, a uma prova que sabia que não superariam, e castiga a todos os descendentes dessa parelha com o castigo mais atroz que o mais cruel criminal pudo nunca imaginar, polo simples facto de desobedecê-lo e comer duma fruta proibida; se for uma mulher prenhe e constatasse que a igreja optou historicamente pola sua morte para poder batizar o seu filho não nascido; se fosse um cristão humilde e constatasse que os clérigos enviaram para o inferno as crianças não batizadas, ainda que ultimamente mudou a sua posição.     

            Afirma este respeitável clérigo, que “Esses são os dous caminhos que todo homem deve escolher, o de escalar para intentar ocupar o lugar o lugar de Deus ou o de baixar para ocupar o lugar revelado em Jesus de Nazaré, dando vida aos demais”. Creio que este é um dilema falso, tanto referido aos hipotéticos e inexistentes Adão e Eva, como à humanidade atual. Este relato e outros como o da Torre de Babel, só pretendem rebaixar o ser humano em aras de enaltecer a um deus despótico e zeloso dos seus próprios filhos; é uma manifestação da constante inquina do cristianismo contra este mundo em aras de prestigiar o mundo de além-túmulo, que é o produto que estão a vender. É que acaso é mau que um filho intente emular a seu pai? E que acaso o divino que há em nós não é precisamente o que nos aparenta com Deus? Eu creio que todo pai deseja que os seus filhos sejam os melhores, que os superem a eles, porque isso indica que a sua semente produz os melhores frutos e eles se vem enaltecidos neles.

             Referente ao tema do aborto afirma que “estar machucando continuamente com o tema do aborto o que provocou, possivelmente é um aumento dos partidários do aborto. Se em vez disso nos tivéssemos acercado à mulher que se encontra nessa situação, perante a perspectiva dum aborto na sua vida, teríamos reduzido já muitíssimo o número de abortos”. Creio que Santiago Agrelo, igual que o papa Francisco, têm razão quando insistem que foi desacertado centrar-se no tema do aborto e, em geral, nos temas relacionados com a sexualidade, de tal modo que a ética cristã que conhece o homem de a pé é basicamente a referida à moral sexual e reprodutiva, pregada por fieis que têm por fundador a uma pessoa que pregava a castração polo reino dos céus, e por principais inspiradores a teólogos misóginos e misossexuais, especialmente a Jerônimo de Agostinho. A Igreja, que protagonizou a maior repressão sexual da sexualidade da história, e desacreditou até limites incríveis a sexualidade incluso no seio do matrimônio e o matrimônio mesmo, em aras de exaltar a virgindade e o celibato, recordemos que o papa Gregório I afirmava que o ato sexual nunca pode dar-se sem pecado, quiçá não seja a melhor conselheira nestes temas, por muito que aspire a este rol. Convém também lembrar que o cristianismo foi uma máquina de separar matrimônios de clérigos, que viviam casados tranquilamente, para impor-lhes coativamente a castidade que foi o combate em que mais empenho pôs. Os clérigos primeiro devem assumir que a sexualidade é uma pulsão humana fundamental, um integrante básico da natureza humana, e que a qualidade das pessoas não depende de se esta necessidade é mais ou menos premente nuns seres humanos que noutros.

             A respeito duma pergunta referida ao céu e ao inferno responde Agrelo: “não me importa o céu e não me importa o inferno; quer dizer, não me importa o que há depois da morte. Não me importa. Isso deixo-lho a Deus, deixo-lho a meu Senhor, não tenho que preocupar-me do que venha depois da norte, tenho que preocupar-me do que há antes da norte. E o que há antes da norte são seres homens, mulheres e meninos que nas suas vidas não conheceram mais que o sofrimento”. É louvável o giro deste autor de centrar-se nos seres humanos, o qual nos lembra aos teólogos da morte de Deus, e  de olhar para a terra e para a vida presente em vez de fazê-lo para o céu e a vida futura, mas este giro somente pode ser real e produtivo se se parte do que realmente são ambos mundos. Não vale deixar um deles nos bastidores, e que desde estes, como uma espécie de nebulosa tanto lógica como ontológica, determine o mundo presente. A solução de Agrelo reduz o cristianismo a uma espécie de ONG de âmbito social, que ainda que possa ser mais interessante, não é propriamente o que se entende por religião. Não seria muito melhor, ainda que mais dificilmente irrealizável, que Deus se ocupasse dos males do mundo presente e que nós nos limitássemos a recitar responsos, jaculatórias e dar-nos golpes de peito?

22 jul 2020

Adaptação à realidade

            Uma notícia publicada faz uns dias nos jornais dizia: «O Governo avança cara a neutralidade religiosa do Estado», mas em realidade o único que fez o Governo social-podemita, que não é pouco, é manifestar a sua vontade de adaptar-se à realidade social, que sofreu um câmbio profundo no seu pensamento e atitude religiosa no século XX, e muito especialmente a partir do seu último terço.

             O câmbio nas estruturas e as instituições sociais costuma ir dêsacompassado com o câmbio de mentalidade e com a mesma realidade social, e, por isso é preciso de vez em quando modificá-las simplesmente para acomodar-se ao que já existe. Não se trata de adaptar-se a uma nova normalidade, senão de fazer normal no funcionamento das instituições o que é normal na praxe social. Que fazem os membros das diversas organizações políticas prostrando-se diante dos símbolos religiosos duma determinada confissão, a única de facto reconhecida a nível social, para rogar-lhe que solucione os problemas sociopolíticos que eles deveriam resolver? Todos os que vieram prostrar-se perante o apóstolo, vários deles com condutas pouco exemplares, estão de facto reconhecendo que são uns incompetentes politicamente e, em consequência, deveriam renunciar a apresentar-se para pedir os votos duns cidadãos porque estão reconhecendo que estes solucionariam muito melhor os seus problemas ajoelhando-se e dando golpes de peito perante os santos para propiciar os seus favores.

             O cristianismo teve, a partir do século IV, em que se constituiu como religião oficial do império romano, um poder imenso. Veu funcionando como um estado dentro do próprio estado, e muitas vezes com mais poder que os mesmos reis, ao quais podiam excomungar e depor se se negavam a obedecer as suas consignas, amparando-se na razão do pecado e na doutrina da superioridade da alma, cujo cuidado estava encomendada a eles, sobre o corpo, que desprezaram até limites inconcebíveis. Esta conceção dualista antropológica não é outra cousa que platonismo que sobrevive artificialmente para dar-lhe vida à instituição eclesiástica. O poder real duma instituição mede-se pola sua capacidade de drenar recursos econômicos, que está à sua vez, influenciada polas crenças. Do poder imenso que alcançou a igreja dá conta o cânon sete do concílio de Penhafiel, celebrado em 1302, titulado: Que todos paguem os dízimos. “Portanto, toda vez que temos sido chamados a participar do cuidado, querendo mirar pola salvação das almas, estabelecemos e ordenamos que todos os fregueses paguem sem rebaixa alguma aos ministros de Cristo a décima, como porção do Senhor, dos seus prédios e cultivo das árvores, hortos, e de outras cousas que nascem da terra, quer produzidas espontaneamente pola natureza, quer polo cultivo do homem, o mesmo que dos animais, e de todas as utilidades, como queixo, lã, cera, mel, e de outras cousas que de aqui dimanam, e por último de quanto licitamente se adquira. E se alguns, sem consideração ao temor de Deus, admoestados canonicamente polos ministros da igreja, não quiserem entregar íntegra a décima, que é a porção canônica, sejam excomungados; e se não satisfizessem sejam privados de sepultura eclesiástica, ainda que nominalmente não tivessem sido ligados com o vínculo da excomunhão”. Com uma legislação como esta sim que se creia uma nova normalidade.

             Esta igreja, companheira do império, que, aproveitando-se da sua maridagem com o poder, se permite impor impostos e obrigar coativamente a pagá-los enviando para o inferno a quem não paguem os dízimos já não existe, mas ainda tem uma imensa capacidade de drenar recursos aproveitando-se das facilidades dos governos tanto franquistas como post-franquistas, para inscrever bens próprios sem ter investido neles um patacão, a isenção de impostos, a facilidade do 0,7 por cento do IRPF, que têm que pagá-lo tanto os ateus como os doutras confissões religiosas, etc. Mas, como cambiou a realidade social, isto também tem que cambiar e agora a Igreja tem que lidar tanto com as demais confissões religiosas, como com aquelas associações que se declaram ateias, como Europa Laica, as grandes olvidadas do governo, apesar de que representam na Europa arredor dum 30 por cento da população.

8 jul 2020

Autopromoção da monarquia

                Um pergunta-se que tem que passar num país para que se ponha couto aos desmandos duma monarquia corrupta desde o mesmo início do reinado do rei emérito e com uns índices de popularidade baixíssimos? Por que os partidos políticos do 155 querem ter atenazada à cidadania negando-lhe o direito a pronunciar-se sobre a chefia do Estado para que decidam se querem ou não estar regidos por uma família à que a Espanha atual lhe deve a sua decadência histórica e que já foi despedida por duas vezes polo povo espanhol? Toda instituição que cobra do dinheiro dos cidadãos deve justificar que o dinheiro que se investe no seu mantimento está justificado, mas no caso presente o que se fazem é gastar dinheiro e tempo para defendê-la tanto os partidos políticos do 155 como os mídia.

                 Toda monarquia é significa desigualdade e privilégio e fia os destinos dum país à pura animalidade, a fatores genéticos duma determinada família, independentemente de todo mérito e capacidade, e isto para a história de Espanha foi muito prejudicial. Como se pode afirmar que a lei e a justiça são iguais para todos, quando faz a uns invioláveis e opacos a qualquer investigação enquanto que a outros os machuca aplicando-lhe delitos muito problemáticos? Espera-se que o rei ou rainha sirvam de modelos de conduta e possam inocular na cidadania condutas exemplares que dignifiquem a vida pública. Mas isto é incompatível com uma monarquia corrupta. Quem crê hoje na «moralina» cínica e hipócrita com que nos querem doutrinar o dia de Noite boa ou quando há uma catástrofe como a pandemia atual? Um tem a sensação que todo é falsidade e engano para consumo de incautos.

                 Meteram-nos o rei emérito polos olhos, apresentando-o como modelo de governante que nos trouxe a liberdade e a democracia, mas na realidade parece que promoveu um golpe de estado que tinha como finalidade dirigir o país polos poderes fácticos à margem da legalidade e da democracia. Foi apresentado como um monarca campichano e, portanto, afável e próximo à gente, quando não era mais que um ladrão que aproveitou o seu status de inviolável para apropriar-se dum dinheiro de duvidosa procedência e defraudar à Fazenda pública. Evidentemente ele aproveitou-se do seu cargo, mas outros fizeram possível que se aproveitasse dele, situando-o constitucionalmente para além do bem e do mal e agora outros estendem a sua inviolabilidade até a sua morte e negam-se a que seja investigado polos representantes da cidadania, que foi a despossuída do seu dinheiro.

                 Além de aproveitar-se do seu status para roubar também o utilizou para copular com quanta mulher se lhe puser a tiro, recompensando a algumas delas, como a Corina, com nada menos que 65 milhões de euros detraídos à cidadania, em tempos em que a maioria da população estava a sofrer a maior crise que se recorda em décadas. Era presidente duma sociedade ecologista, mas compaginava este cargo com a caçada de ossos borrachos e elefantes.

                 O seu filho renunciou à herança, para intentar salvar o seu “choio”, a sabendas de que o Código Civil proíbe renunciar a uma herança antes de que morra o testador, e, portanto, a citada renúncia é nula de pleno direito. Mas com essa renúncia pretende matar dous pássaros dum tiro: que a renuncia não implique nada e que apareça como uma pessoa que aborrece do seu pai. Também lhe retirou a paga que lhe vinha passando a João Carlos pola sua conduta, mas em vez de dedicar este dinheiro em ressarcir a pessoas que sofrem pola pandemia, dedica-o para emergências da Casa Real. Todo o país esteve desamparado perante a emergência sanitária do coronavirus, e se alguém estava protegido esse era sem dúvida o rei.

                 Agora uma família que foi caçada pola justiça belga roubando, dedica-se a autopromocionar-se por todas as comunidades espanholas à conta dos que foram despossuídos do seu dinheiro polo seu pai. A coroa pertence a uma família e não a um indivíduo particular, e isto para as duras e para as maduras, e de ai que se uma pessoa tem êxito é toda a família a que sai ganhando, mas se uma pessoa delinqüi é toda a instituição familiar a que se vê afetada, e isto não tem volta de folha.