27 dic 2015

Um discurso i-real



O adjetivo irreal significa o que não é real, o que não reflete a realidade, o que está fora da realidade, o que é imaginário, fictício, fantasioso, ilusório, inexistente... Aqui tomamo-lo como aquilo que não reflete a realidade.

A filosofia teórica e as ciências tem como missão refletir o que é, ajustar-se ao que é a realidade, refleti-la fielmente, e, com este objetivo propõem modelos teóricos e hipóteses sobre o que são as cousas, que depois serão criticadas pela razão e/ou verificadas pela observação e a experimentação científica. A filosofia prática, pela contra, versa sobre o que deve ser, sobre ideais inexistentes que se devem realizar, pôr em prática, e somente trata do que é a modo de meio para propor modelos de moralidade ou de sociedade que sejam viáveis em aras de conseguir um ideal de perfeição moral ou de sociedade. Tanto a ética como o direito e a política têm muito que ver com os valores e com os modelos de sociedade e de humanidade que se pretendem realizar.

A monarquia parlamentar têm fundamentalmente cometidos de representação e não executivas, e mantém-se se cumpre duas funções de moderação, exemplaridade e integração. Os discursos reais limitaram-se até agora, tanto com João Carlos I como com Felipe VI, a falar de lugares comuns, de obviedades, de vulgaridades, e a fugir dos temas mais espinhosos e que mais preocupam aos cidadãos, procurando falar principalmente do que deve ser, oferecendo doses elevadas de moralina para consumo de incautos. Cingindo-nos ao de Felipe VI, utilizou 12 vezes a palavra deve, e vários outros termos relacionados com a ética, como é necessário que, requere-se, demanda de retidão e integridade, temos que, tenhamos que,  ... Não haveria que objetar nada a isto, se a pessoa ou instituição que dá os conselhos ou leciona normas de moralidade tem a legitimidade moral e a credibilidade social necessárias para fazê-lo, mas quando estamos ante uma instituição banhada em casos de corrupção e que se nega a dar conta deles, esses conselhos merecem pouca credibilidade. A sua irmã e o seu cunhado vão ser julgados por espoliar as instituições em benefício próprio, supomos que a sua irmâ a livrará a doutrina Botim, porque o fiscal defensor já fez o seu trabalho; e o seu pai, o rei emérito, levou uma conduta que de exemplarizante não tem nada, ao tempo que nos lecionou com moralina cada Natal durante perto de quarenta anos; caçava elefantes ao tempo que presidia associações que os defendem, e ossos borrachos para que o seu tiro desse no alvo, e, o mais sangrante, é acusado de amassar uma enorme fortuna a costa do erário público, que não explicou nem quer explicar e muito menos devolver aos sofridos cidadãos, porque a opacidade foi sempre a norma de conduta durante todos os anos em que esteve na cadeirão, ao igual que a sua super-proteção pelas instituições. Por que agora nos pede o seu filho, que silencia todos estes fatos e de momento não demonstrou nada, que tenhamos fé nas suas palavras e na instituição que representa? Por tanto, creio que não está legitimado para dar lições de ética aos cidadãos espanhóis.

Outro dos eixos do seu discurso foi a unidade de Espanha, e tão-pouco haveria nada que objetar se essa unidade que pregoa estivesse baseada na integração voluntária de todos os afetados e no respeito á diversidade, e não na imposição duma maioria sobre um povo minoritário, mas esta apelação á unidade e essas menções da diversidade tão-pouco merecem credibilidade numa instituição que foi absorventemente centralista durante toda a sua história e que foi quem matou a diversidade que existia no Estado espanhol antes da entronização de Felipe V, o neto de Luis XIV, o «Rei Sol», o rei mais centralista do mundo e com o modelo mais calcado de absolutista, que proclamou l’Etat c’est moi. Incluso antes de que o seu neto tiver assegurada a sua entronização, já proclamou em 1707, que se propunha "reduzir todos os meus Reinos de Espanha á uniformidade dumas mesmas leis, usos, costumes e tribunais, governando-se igualmente todos pelas leis de Castela, tão louváveis e plausíveis em todo o Universo" (Decreto de 29 de junho de 1707, em Novísima recopilación de las Leyes de España, T. II, Madrid, 1805, liv. III, tít. III, lei Iª). Foi com este rei com o que se impuseram os decretos de Nova Planta que terminariam com a implantação dos sistemas unificadores e centralizadores em Catalunya, Aragão, Valência e Malhorca, centralismo e unificação que se impuseram progressivamente também no Norte de Espanha, no País Vasco e Navarra, a partir de sucessivos decretos a partir de 1832, por meio do sangue e o fogo, que supuseram as duas guerras carlistas, até que Alfonso XII, pode proclamar após a batalha de Somorrostro o 13/03/1876, dirigindo-se aos soldados a respeito das morte produzidas em combate: “todos estes maus embora espantosos e por todo extremo lamentáveis, ficam reduzidos ao espaço duma sozinha geração; mas fundada polos heroísmo a unidade constitucional de Espanha, até as mais remotas gerações chegará o fruto e as bendições das vossas vitórias. Poucos exércitos tiveram ocasião de prestar um serviço de tal importância. Tanto sangue, tantas fadigas, mereciam este prêmio” (GARCÍA VENERO, MAXIMIANO, Historia del nacionalismo vasco, 1793-1936, Madrid, 1945, pp. 188 ss). Vários decretos consumaram este centralismo e unificação no País Vasco e Navarra, que perderam os foros pelos que se vinham governando e a sua diversidade ficou reduzida ao concerto e a quota, que agora o Rivera pretende também liquidar. Por que Você não protesta contra este intento de aniquilação dos direitos históricos destas comunidades? Ou é que os povos não tem direitos e a maioria de espanhóis pode aniquilá-los quando lhe vier em ganhas apoiando-se no voto da maioria?

Como suponho que Felipe VI conhece a história de Espanha, e, por isso, nos recomenda a todos conhecê-la e recordá-la, vou terminar este apartado com algum apontamentos mais. O primeiro, uma lembrança á divisão territorial provincial imposta em 1824 por Javier de Burgos, durante o reinado do rei traidor Fernando VII, que importou da jacobina França o modelo centralista que deixou a Galiza dividida em quatro províncias e ao Estado espanhol em quarenta e nove, governadas pela deputações, os governos quiçá mais corruptos e clientelistas da história de Espanha, divisão que foi a origem dos movimentos de defesa do provincialismo em 1846, do regionalismo na década dos sessenta do século XIX e do nacionalismo a princípios do século XX. Como bem sabe a sua Majestade, ou deveria saber, os atos de agressão contra um coletivo provocam um sentimento de frustração e e repulsa, e, a seguir, um movimento de autodefesa frente a ela. Ou é que também Você o atribui a maquinações perversas e egoístas dos líderes localistas e ás manipulações das populações afetadas, sem que exista causa alguma objetiva que provoque este movimento? Também suponho que saberá ou deveria saber, que tanto Catalunya como Euskadi e Galiza sofreram dura repressão, durante e depois da nefasta Guerra Civil que desencadearam os rebeldes contra a República, com o apoio das forças monárquicas, tanto nas suas vidas como na sua língua, cultura e instituições políticas. Suponho que também saberá, ou deveria saber, que, principalmente durante os últimos governo do PP, por não aludir á LOAPA e a outras medidas já anteriores, se produz uma re-centralização de competências, uma campanha hostil contra o Estatuto de Catalunya, seguida do pronunciamento dum Tribunal Constitucional constituído dum jeito anormal, que botou abaixo a filosofia estatutária da Transição política, e uma espanholização sem precedentes nas suas comunidades, tentando debilitar ainda mais as suas já muito degradadas línguas, culturas, e instituições  próprias. Por que Você não levantou a sua voz face todas estas tropelias contra os nossos povos? Não sabia nada ou não quis inteirar-se? Você que deveria moderar e integrar, por que não se ofereceu para intermediar frente a toda esta legislação e prática hostil quando os cidadãos destas comunidades se manifestavam contra todas estas políticas? Em realidade, Você só atua como o monarca do povo espanhol, mas sente-se alheio ás preocupações e aspirações dos demais povos do Estado espanhol.

Creio que esta vaga de centralismo e uniformização representou uma etapa de grande dor para os povos afetados e também para o povo espanhol, e que deveria fazer mais cauto ao Rei á hora de falar de erros históricos, que parece atribuir aos que se viram despossuídos dos seus sistemas forais, quando o há que carregar no haver da monarquia, que com a importação a Espanha do sistema centralista francês, fez esmorecer a rica diversidade existente no Estado espanhol. Por outra parte, no discurso i-real o único povo que é citado, e várias vezes, é o povo espanhol, ao tempo que os demais povos do Estado não têm cabida no seu imaginário mental; desconhece, por tanto, a realidade espanhola, que não pode abeirar-se falando duma imprecisa e ambígua diversidade, senão que deve traduzir-se numa diversidade real e concreta que deve ter as suas vias de expressão como tal.

Outro eixo do seu discurso é o da querença, admiração e respeito por Espanha, palavra que cita nada menos que 16 vez, por ser, diz, um sentimento profundo, uma emoção sincera e um orgulho muito legítimo. Eu entendo que uma instituição que tem por herança privilégios alheios aos demais mortais, que tem um salário garantido de por vida sem que se tivesse em conta, no seu acesso, nem o seu mérito nem a sua capacidade, que está protegido por cláusulas de intangibilidade duma Constituição limitada na sua democracia pelos poderes fáticos, que pode premiar no seu décimo aniversário a sua infância á sua filha com o tosão de ouro, que não tem as preocupações dos demais mortais a respeito do paro, salário, que tem um pai que cobra perto de 300.000 euros,  á parte do dispêndio em segurança para assistir a eventos esportivos, vacações continuadas, sem fazer nada de proveito para o país, ao tempo que os outros pensionistas não alcançam nem os trinta mil; uma irmã que vê como o seu soldo se incrementa um 200 por cem, as grandes empresas que viram incrementar os seus benefícios extraordinariamente, muitas vezes a expensas do soldo dos seus empregados, os setores extrativos parasitários que viram que a crise não lhes afetou para nada, etc., sintam orgulho de pertencer a Espanha, faltaria mais!; mas aos mais de 4.300.000 parados, dos quais perto de 1.900.000 não tem ingressos nenhuns, aos pensionistas que têm as suas pensões congeladas e que muitas vezes se tem que dedicar grande parte das suas retribuições para ajudar aos seus familiares, aos nossos moços e moças universitários e parte dos demais trabalhadores que se vêem condenados a emigrar porque no seu país não vêm futuro nenhum, aos trabalhadores que viram como o seu salário se viu reduzido muitas vezes á metade e que perderam praticamente todos os seus direitos, a toda a nossa mocidade que não pode emancipar-se e planificar o seu futuro, aos milhares de despejados das suas vivendas sem alternativa habitacional alguma vítimas duma crise na que eles não participaram, aos autônomos que viram minguados os seus ingressos como conseqüência duma crise que não se soube resolver, etc., Você teria que explicar-lhe quais são as razões pelas quais devem estar orgulhosos de Espanha. O patriotismo não é uma proclama vácua senão que unicamente tem algum sentido se se entende como um amor a um país que atende as suas necessidades e aspirações da gente, um país que lhes permita viver dignamente, e isso é o que não se dá na sua querida Estanha..

Fala Você de respeitar a lei e a Constituição, mas eu creio que seria melhor que estas respeitassem a vontade do soberano que é sempre o povo, e onde há vários povos deve haver vários soberanos, e estivessem ao serviço dos cidadãos, porque são ou deveriam ser elas as filhas da vontade popular existente nos diversos povos e não as patroas e objetos de culto ante os que há que ajoelhar-se. A Constituição e a lei não estão hoje ao serviço da maioria social e, por isso demanda a sua reforma e ou substituição por outra que responda aos anseios da cidadania. Quiçá deveria ter em conta também todas as rupturas da lei e não só as duma parte. 

Falta Você da convivência e a concórdia em democracia e liberdade, mas, tão-pouco a este respeito é Você o indicado para dar lições, porque para isso o primeiro que teria que fazer seria legitimar o seu posto nas urnas e não adquiri-lo por herança. Tão-pouco a sua família é um modelo neste aspeto. Lembre que o seu trisavó, Afonso XII, foi imposto pelo pronunciamento militar de Martínez Campos, que terminou com a Primeira República e instaurou o Regime corrupto da Restauração que era um simulacro de democracia. Lembre também que o seu bisavó, Alfonso XIII, impulsou o golpe militar de Primo de Rivera; que o seu avó se ofereceu para lutar no exército franquista contra a democracia da Segunda República; que o seu pai foi entronizado pelo ditador Franco, e que lhe replicou a Suárez que se este tinha a legitimidade que dão os votos, ele tinha a legitimidade que dá ser  herdeiro duma família que levava 700 anos no poder, e que reinou em Espanha durante perto de quarenta anos sem legitimidade de origem e eu diria que tão-pouco de exercício.

Além do que Você disse também são eloqüentes os seus silêncios: o paro, a corrupção, a violência contra as mulheres, e também aqueles temas aos que se refere de passada, como as desigualdades sociais, que situam a Espanha de campeã européia, porque, naturalmente, o mais importante é Espanha e que todos esta palavra pronunciemos como um esconjuro a cada momento. Já vê Majestade, como Você não reflete a realidade do seu país, e que, por tanto, está fora desta realidade, e não é surpreendente tendo em conta que já se formam e vivem á margem dela., o qual os incapacita para entendê-la. É sintomático que não aluda para nada a uns sete milhões de pessoas que reclamam poder exercer o direito de decidir em Catalunya, nem sequer á maioria de espanhóis que reclamam uma reforma da Constituição em clave federal. Convença-se, Majestade, que o seu discurso é i-real?   

19 dic 2015

Reforma da Constituição



Com a Constituição de 1978 passou o que tinha que passar; o que é inevitável que passasse quando se põe em prática uma política que não é assumida com convicção e responsabilidade. Quando se redigiu a Constituição introduziram-se certos condicionantes dos poderes fáticos do Estado, que são quem realmente mandam, que desnaturalizaram o processo. Foram os militares vencedores quem impuseram as suas decisões em aspectos decisivos como os relacionados com a distribuição territorial do poder, que se concretizou na modificação do artigo 2 tal como fora proposto polo relatório, que dizia: “A Constituição fundamenta-se na unidade de Espanha e na solidariedade entre os seus povos e reconhece o direito á autonomia das nacionalidades e regiões que a integram”. Esta redação foi duramente combatida por pressões externas sobre a UCD para que se retirasse o termo nacionalidades, em contra do critério dos nacionalistas e comunistas. Finalmente, os poderes fáticos propõem como inegociável a seguinte redação: “A Constituição fundamenta-se na unidade de Espanha como pátria comum e indivisível e todos os espanhóis e reconhece o direito á autonomia das nacionalidades e regiões que integram a indissolúvel unidade da nação espanhola”, que com ligeiros retoques é a que se vai aprovar, ao tempo que o relatório elimina toda referência a este termo no título VIII. Por tanto, cumpre ter presente que uns poderes que não se apresentam ás eleições e que não dão a cara ante os que têm que decidir, são os que estabelecem as regras de jogo sobre as que têm que decidir. Por outra parte, que os vencedores imponham as suas condições é incompatível com a sua apresentação ante os eleitores da farsa da Constituição da concórdia e da superação das feridas causadas pola  guerra civil, porque mantém os ressabios franquistas de que a guerra se fez principalmente contra os nacionalistas. O seguinte passo vai ser a desnaturalização do termo nacionalidades, deixando-o sem nenhum significado preciso e convertido, todo o mais por alguns, numa espécie de nação cultural sem implicações políticas.

Quando se debateu o Título VIII, ao tempo que se aceitaram as autonomias, decide-se, no artigo 141, manter a organização centralista provincial com as deputações ou organismos equivalentes, que se converteram em autênticos ninhos de corrupção e clientelismo, que tantos quebramentos está a causar ainda nos nossos tempos. Mantêm-se, pois, o centralismo da direita e o velho jacobinismo, de procedência francesa que lhe impede ao PSOE dar passos coerentes na reformulação do Estado. Uma segunda conclusão é que, além de conservar ressabios franquistas, incrementados com a restauração dum monarca nomeado por Franco, esta Constituição é ineficiente, porque encarece enormemente o custo dos serviços para os cidadãos.

Uma vez terminada a discussão do Título VIII. Da organização territorial do Estado, o deputado de Euskadiko Ezquerra Francisco Letamendia Belzunce propôs uma emenda de introdução dum novo artigo sobre o princípio de autodeterminação dos povos, que se materializaria a proposta duma quarta parte dos deputados duma Comunidade Auônoma e o voto favorável da maioria absoluta do censo eleitoral. Esta emenda somente foi apoiada com os votos a favor do PNV e do próprio Letamendia, votando em contra os nacionalistas de CiU e os socialistas e comunistas, apesar de que teoricamente levavam nos seus programas a defesa do direito de autodeterminação dos povos de Espanha. Dizia, por exemplo, o programa do V Congresso do Partido Comunista de Espanha do ano 1954: “A unidade do Estado espanhol não será nunca verdadeiramente sólida e democrática se se assenta sobre a força e a assimilação violenta, sobre a negação dos direitos nacionais. Por isso, os comunistas estamos contra a subjugação dumas nações por outra e defendemos o direito dos povos á livre autodeterminação. Susteremos, pois, o direito dos povos de Catalunya, Euzkadi e Galicia a decidir livre e democraticamente o seu destino”.

O relator constitucional Jordi Solé Tura, do Partido Comunista, reconhece que “o direito de autodeterminação dos povos é, ao meu parecer, um princípio democrático indiscutível, pois significa que todo povo submetido contra a sua vontade a uma dominação exterior ou obrigado a aceitar por métodos não democráticos um sistema de governo rejeitado pola maioria tem direito á sua independência e á suas forma de governo que deseje livremente” (Nacionalidades y nacionalismo en España, Alianza Editorial, Madrid, 1985, p. 141). Mas confessa abertamente que a esquerda espanhola não nacionalista o entendia como “um princípio que permitiria derrotar aos independentistas com métodos democráticos, quer dizer, opondo ás pretensões de separação e independência a vontade duma maioria democraticamente forjada” (Ibid, p. 147). Formidável confissão. Reconhece-se um direito mas com a finalidade de derrotar aos que o propugnam. Esta é também na atualidade o posicionamento de Podemos: não meneia-lho e se outros o forçam, votar em contra. Outros opõem-se a este direito pretextando que os textos da ONU nos que se recolhe somente o reconhecem para contextos coloniais e que esse não seria o caso espanhol. Ou seja, que se pretende limitar um direito por nascer num determinado contexto e, por tanto, seria a primeira vez que se restringe um direito ao contexto que lhe deu origem. Seria o mesmo que limitar o direito á liberdade individual somente aos casos em que exista escravatura. 

Uma vez vigorante a Constituição, houve vários fatores que contribuíram a incrementar a pressão centralista. Em primeiro lugar, o afundimento do UCD e a ocupação do seu lugar político pola neo-franquista e hiper-centralista Alianza Popular, matriz do atual PP, cinco de cujos membros nem sequer apoiaram a Constituição de 1978 e três se abstiveram, dum total de 16, apesar de que optara por defender o si no referendo. Os motivos principais foram a introdução do termo nacionalidades, a constitucionalização do sistema proporcional, a formulação do sistema econômico social e a deficiente definição da família.  

Em 1982 a UCD e o PSOE propõem-se reconduzir o processo autonômico e a estes efeito aprovam a LOAPA (Lei de Harmonização do Processo Autonômico) na que se reconhece a interferência do poder central na competência legislativa das CCAA e se estabelece a prevalência das normas ditadas polo Governo central sobre as normas das CCAA, que foi declarada parcialmente inconstitucional polo Tribunal Constitucional. Mas a politização crescente deste Tribunal a partir de 1985, faz que as suas decisões se inclinem cada passo mais polas políticas re-centralizadoras postas em marcha com persistência polos governos centrais, convertendo grande parte das competências exclusivas das CCAA em papel molhado, tendência incrementada pola pertença a UE, que vaziou de contido parte das competências estatutárias.

O processo re-centralizador incrementou-se na segunda legislatura do governo de Aznar, e com a política de recursos de Rajoy ante o Tribunal Constitucional quando estava na oposição e de espanholização intensa uma vez que o PP recupera o governo em Galiza em 2009, acede ao governo Fabra em Valência em 2011, Bauzá em Mallorca em 2011 e o próprio Rajoy também em 2011. Todos eles se caracterizam por não apoiar medidas normalizadoras, a promoção do bilingüismo como passo cara ao monolingüismo social, o voluntarismo lingüístico desde uma liberdade individual fundamentada em séculos de marginação desde o fomento do auto-ódio cara aos valores próprios, e marginação, e o desmantelamento das línguas próprias nos meios de comunicação e na escola, e o isolamento da língua do seu tronco natural: galego-português ou catalão.

Um fito particularmente relevante foi a sentença do Tribunal Constitucional dada a conhecer o 28/06/2010 na que invalida um texto previamente proposto polas formações políticas catalães, aprovado, após a sua domesticação, polas Cortes Espanholas, e finalmente referendado favoravelmente polo povo de Catalunya. A essa altura o Tribunal estava anormalmente constituído porque os partidos turnantes no governo central se negaram a renová-lo, além de ser um Tribunal muito desacreditado por estar politizado aos serviço do bipartidismo reinante. Esta sentença foi definida polo catedrático de Direito Constitucional Javier Pérez Royo como um golpe de estado. “Formalmente a STC 31/2010 é uma sentença constitucional. Materialmente é um golpe de Estado. Formalmente foi uma operação de defesa da Constituição. Materialmente foi uma operação de derruba”. A razão está em que cambia a filosofia que estabeleceu os estatutos de autonomia, que consistia em que os estatutos não se podem impor nem alterar sem o consentimento duma Comunidade, e, a partir dessa sentença, si que se pode fazer. 

A altura dos nossos dias, ante a atitude de resistência das CCAA, especialmente da catalã, frente a esta assimilação forçada, a reação dos partidos PP-PSOE e do emergente Ciudadanos e os seus abundantes corifeus tertulianos, foi a de condena dos dirigentes da Generalitat, tachando-os de radicais, extremistas, masismoleninistas (González dixit), de estar fora da realidade, únicos responsáveis da aloucada deriva independentista,... imitando a dialética utilizada na luta antiterrorista contra ETA. Aqui não há causas que expliquem os fenômenos, só atoleimados nacionalistas que surgem por geração espontânea sem causa nenhuma antecedente.

Agora o problema que se apresenta é: quê fazer? A reforma é difícil porque é obstaculizada agrestemente polo PP porque com os câmbios introduzidos pola prática político-judicial destes anos de vigência foi domesticada de tal modo que cumpre á perfeição os objetivos que partido mais centralista que teve Espanha na sua história, Alianza Popular, -agora em competência com Ciudadanos e UPyD- demanda á norma suprema; por outra parte, fez-se com uma série de cláusulas de intangibilidade, no referente á monarquia, por exemplo, para obstaculizar a sua reforma; e, por outra parte, estabeleceu-se um bipartidismo por meio do sistema eleitoral que a faz inviável se algum destes partido se nega e reformá-la, como vêm fazendo desde faz tempo; ao tempo que a composição do Senado impede a instauração dum Estado federal. A iniciação dum processo constituinte não está agora sobre a mesa porque é obstaculizado pola deriva monárquica do PSOE, pola defesa numantina da monarquia por parte do PP, Ciudadanos e UPyD e o abandono desta opção por parte de Podemos. Do qual se desprende que continuaremos tendo um Chefe de Estado sem legitimidade de origem, porque se lhe nega aos espanhóis o direito a decidir se querem um Chefe de Estado eletivo ou dinástico por imposição franquista.  

Há alguns aspectos nos que desejaria manifestar o meu desacordo com o Sr. Pérez Royo. Ele afirma que uma constituição ou um estatuto não podem, contrariamente com o que sucede com qualquer outra lei, impor-se coativamente, salvo que se precise, que não se pode impor se queremos ter uma democracia de qualidade, porque creio que o usual é que haja povos regidos por constituições que se vem impossibilitados de cambiar. A nivel do Estado espanhol nega-se reiteradamente a resolver o problema territorial porque, seguindo a Ortega, dizem que é um problema que não se pode resolver, dando-lhe aos povos o que estes pedem, senão que há que «conllevarlo», ou seja, há que agüentá-lo como quem tem um vizinho molesto do que não pode prescindir. Uma solução digna de fazer história na filosofia política.

Em segundo lugar, creio que põe demasiado ênfase nas virtualidades da constitucionalização do problema territorial, porque em todos os Estados federais há uma tendência também á centralização, por mais que esteja reconhecido o federalismo na Constituição. O problema não está só na constitucionalização duma solução federal senão também na existência dum Tribunal Constitucional independente e constituído em clave federal para que evite a apropriação paulatina dos competências estatutárias por parte dos partidos pro-espanholistas do governo central. Finalmente, creio que não se pode dizer que a Constituição espanhola não existe, ainda que si está em fase cadavérica, mas os políticos, ao igual que os taumaturgos, podem ressuscitar mortos..



13 dic 2015

Democracia para os nossos dias (V)



Democracia e estado de direito

É mui freqüente ouvir aos dirigentes espanhóis identificar a democracia com o estado de direito ou com o império da lei. Dizia Rajoy na clausura da convenção do PPC o 25/01/2014: “A essência da democracia é o respeito á Lei, ou se o preferis, o propósito de não reconhecer outra autoridade por cima dos cidadãos que a da lei. A essência da democracia é que todo -incluídas as votações-, e todos -incluídos os parlamentos- têm que ater-se ás normas. Ser democrata implica aceitar essa obediência voluntária a uma lei que foi feita entre todos, aprovada por todos e que a ninguém se lhe impôs á força”. Estas declarações do dirigente popular, foram reduplicadas com outras semelhantes por parte do líder do PSOE, Pérez Rubalcava, na sua intervenção no Pleno do Congresso dos deputados sobre a tomada em consideração de proposições de Lei do Parlamento de Catalunya, de delegação na Generalitat da competência para autorizar, convocar e celebrar um referendo sobre o futuro político de Catalunya, o 8/04/2014: “E,   efetivamente   essa é a essência da democracia. Esse é o primeiro princípio democrático. Cumprir as leis. Leis que sabemos perfeitamente nesta Câmara que se podem cambiar. Faltaria mais. Mas o seu cumprimento para qualquer democrata é inexorável e iniludível”. Igualmente, no mesmo Pleno, a ex-líder de UPyD, Rosa Diez sentenciou: “A democracia não é só votar. É fundamentalmente respeitar as leis, as normas que nos demos todos juntos. E se não se faz, não há democracia”. O que têm em comum os três políticos citados é o de ser espanholistas até as «cachas», por utilizar uma auto-intitulação de Ortega e Gasset, e, evidentemente, para negar um direito humano coletivo, que é o direito dos povos a decidir o seu futuro em paz e em liberdade.

Quando um escuta estas afirmações, e ademais em foros solenes, não pode por menos de ter a impressão de que no país no que se realizam passa algo raro, porque que um Chefe de Governo e dous dirigentes Chefes de Partido afirmem isto sem que sejam acurralados pola crítica, não pode por menos de deixar em parte da cidadania consciente, e especialmente nos afetados, um pouso de consternação e de raiva, por considerar que os cidadãos merecem que se façam análises mais ponderadas e mais fundamentadas. Entende-se que os políticos citados têm assessores a eito, polo menos muitos cobram por isso, que o informam de qualquer anomalia e que os aconselham para não introduzir grosarias no discurso. Por outra parte, os cidadãos vêem-se obrigados a pagar grandes somas de dinheiro a fundações partidárias, que deveriam servir para algo mais que para semear ideologias xenófobas e discriminatórias na sociedade. Tais manifestações indicam duas cousas: a primeira é que na Espanha tal como eles a entendem não tem cabida os nacionalistas periféricos, e somente é válida para os espanholistas. A segunda é que a qualidade da democracia espanhola é muito deficiente.

Mas, deixando-nos já de lado estas valorações, analisemos ponderadamente a questão. Segundo Elias Díaz, o direito é um “sistema ou conjunto de normas reguladoras dalguns comportamentos humanos numa determinada sociedade”. Os comportamentos que se regulam são os que os legisladores dum país consideram que têm relevância para o funcionamento da sociedade, e/ou para a proteção dos interesses de grupo dos afetados pola norma. Um Estado de Direito, rule of law, é aquele no que a lei é o princípio básico da governança dum país, e opor-se-ia aos que estão governados polas decisões arbitrárias dos oficiais governantes individuais, e implica que todos os cidadãos, incluídos os legisladores, estão submetidos á lei. Neste sentido, não se pode dizer que uma ditadura personalista, uma autocracia ou monarquia absoluta, sejam estados de direito. Porém, si se pode dizer que uma democracia popular como a que existiu na URSS, era um estado de direito e, não obstante, não se pode qualificar de democracia, polo menos segundo os standards ocidentais. O estado de direito recebe o nome de nomocracia.

Mas, uma carência do império da lei pode dar-se tanto nas ditaduras como nas democracias, e nós sempre podemos perguntar-nos com sentido se um determinado estado de direito é democrático ou não, e isto já nos indica que uma cousa é a democracia e outra o estado de direito, porque sendo iguais não teria sentido a pergunta, como não a tem que perguntemos se um solteiro é um home não casado. As leis sinalam as condutas obrigadas ou autorizadas, e revistem caráter obrigatório, que é apoiado por um sistema coercitivo que castiga as condutas ilegais. De ai que careçam de sentido afirmações como as de Mariano Rajoy de que a lei a “ninguém se lhe impôs á força”. O direito, igual que a ética e as regras de trato social (normas de cortesias, urbanidade, ...) Mas diferencia-se destas em que a lei está apoiada polo sistema coativo do Estado, enquanto que uma regra como vestir de etiqueta para assistir a uma boda não está apoiada por nenhum sistema de repressão.

Nalguns momentos considerou-se que a lei era expressão da razão, da justiça, do bem da soberania, ... mas nos nossos dias o normal é considerá-la como expressão da vontade da maioria parlamentar, que não coincide em absoluto com a maioria dos votantes e muito menos com a maioria da população, com todas as vantagens e inconvenientes que isto representa. Carece de sentido afirmar que uma lei como a da eleição por maioria absoluta do Presidente de RTVE ou a lei de segurança cidadã ou lei mordaça, promovem o bem comum, quando só promove o interesse governativo de procurar o controle e manipulação da informação em benefício próprio e/ou para evitar protestas da cidadania para com a política hostil que se pôs em marcha. Carece de sentido o que disse Rajoy e Rosa Díez de que a lei está feita por todos ou que nola demos todos juntos, porque seria o colmo que fizéramos nós leis para prejudicar-nos e para beneficiar os interesses políticos de Rajoy. 

Todos os políticos que querem consubstanciar democracia e estado de direito reconhecem, não pode ser menos, que a lei se pode cambiar e instam os dirigentes dos povos distintos do espanhol a que promovam o câmbio, cientes de que oferecem uma via a nenhures, um modo seguro de esbarrar contra a sua arrogância dos que fazem tais oferecimentos, porque, por definição, um povo minoritário nunca pode alterar uma norma se se lhe exige que se sujeite ás condições estipuladas polos grupos majoritários, que são os únicos que podem reunir os votos parlamentares mínimos necessários para fazê-lo. Creio que é uma falta total de decência e de honestidade fazer tais proposições, porque atentam gravemente contra a dignidade do grupo minoritário. Isto só indica que são separadores que fazem que a convivência seja inviável porque a única via que se te oferece á a submissão total ao outro para fazer e desfazer segundo o seu bel prazer, inclusive nos assuntos nos que um se sente concernido.

A direita espanhola sempre foi defensora do centralismo puro e duro e sempre foi a reboque inclusive para estabelecer o sistema autonômico, e uma vez instalado, sempre pugnou para limitá-lo e cerceá-lo, junto com o PSOE. Os socialistas derivam a sua ideologia do jacobinismo centralista francês, mas tiveram uma história muito mais aberturista de cara aos direitos das nações periféricas: Catalunya, Euskadi e Galiza. No seu programa político aprovado no mês de julho de 1918, estabeleciam que: “O Partido Socialista Obreiro Espanhol considera necessário para realizar a sua aspiração obter as seguintes medidas políticas e econômicas: Confederação republicana das nacionalidades ibéricas, reconhecidas a medida que vaiam demonstrando indubitavelmente um desenvolvimento suficiente, e sempre sobre a base de que a sua liberdade não entranhe para os seus cidadãos míngua alguma dos seus direitos individuais já estabelecidos em Espanha e de aqueles que são patrimônio de todo povo civilizado”. Este programa esteve vigente polo menos até o ano 1950.

No programa aprovado em Suresnes no ano 1974, na resolução sobre nacionalidades e regiões, dizia-se que “a solução definitiva do problema das nacionalidades e regiões que integram o Estado espanhol parte indefetivelmente do problema do pleno reconhecimento do direito de autodeterminação das mesmas, que comporta a faculdade de que cada nacionalidade e região poda determinar livremente as relações que vai manter com o resto dos povos que integram o Estado espanhol”. No Congresso do PSOE celebrado o ano 1976, aprovou-se que “o Partido Socialista propugnará o exercício livre do direito de autodeterminação pola totalidade das nacionalidades e regionalidades que comporão em pé de igualdade o Estado federal que preconizamos. ... A constituição garantirá o direito de autodeterminação”. Fundamentava-o mantendo que “a análise histórica diz-nos que na atual conjuntura a luta pola libertação das nacionalidades ... não é oposta, senão complementária com o internacionalismo da classe trabalhadora”. Quem o diria! Os cadeirões e a congratulação com o établissement borbônico militar fazem autênticos milagres, e agora ai os temos intentando converter-nos a todos os demais ao seu novo dogma.

Nos últimos tempos surgiram dous novos partidos que nuclearam todo o seu discurso na idealização do passado da Espanha centralista e, conseqüentemente, no anti-nacionalismo periférico mais visceral e no desprezo e conculcação dos seus direitos como povos. Esse passado fracassado de Espanha foi idealizado como a nova Ítaca e o objeto de desejo amoroso tanto de UPyD como de Ciudadanos. Como dissemos num artigo anterior, o Sr. Rivera apresenta-se como um novo Lerroux, que proclama, ao igual que o antigo líder radical catalão: «Vamos continuar a história de Espanha», transmutada, na sua mente, numa história de êxito que se viria torcer polo raquítico sistema autonômico separatista concedido por obra e graça do Estado espanhol.  

O Senhor Rajoy sustem que ser democrata implica aceitar a obediência voluntária á lei, e o Sr. Rubalcava declarou que o cumprimento da lei para qualquer democrata é inexorável e iniludível, quiçá deveriam acrescentar que também é necessário para a nossa eterna salvação, e assim já nos solucionavam os problemas terrestres e os celestiais. Mas eu sempre defendi, no meu ensino, seguindo programas estabelecidos polo PSOE-PP que desobedecer a lei não só é moralmente legítimo a vezes, senão que pode ser obrigatório em consciência. É evidente que é uma condição necessária para que a sociedade funcione, seja num estado democrático, tradicional ou absolutista, que a gente cumpre a lei, pois, em caso contrário, a convivência far-se-ia impossível, mas também é estritamente necessário que a lei seja justa, que os cidadãos vejam que reúne os requisitos mínimos para procurar a sua adesão. Não se trata de desobedecer todas as leis, que é o que pode dar lugar a uma situação de caos e anarquia, senão as leis que a cidadania considera manifestamente injustas. Quando se estabelecem leis que conculcam os direitos humanos, quer individuais quer coletivos, ou no caso das leis anteriormente citadas: lei mordaça e lei de nomeação do presidente de RTVE, a LOMCE, só com os votos do partido do Governo, e a manifesta oposição cidadã, a gente deve ver se se justifica a sua desobediência, ou se simplesmente é melhor obedecê-la, ainda que seja a contragosto,  simplesmente por obrigação prudencial, ou seja, para evitar males maiores.

4 dic 2015

Organizemos o pos-totalitarismo ideológico




 Segundo a RAE, “o totalitarismo é um regime político que exerce forte intervenção em todas as ordens da vida nacional, concentrando a totalidade dos poderes estatais nas mãos dum grupo ou partido que não permite a atuação doutros partidos”. A palavra totalitarismo vem de total, e é total em dous sentidos: enquanto que concentra todos os poderes e enquanto que pretende controlar todas as ordens da vida do país. Neste sentido, o regime franquista não foi propriamente totalitário, ainda que si esteve próximo, senão mais bem ditatorial e sanguinário. Este regime controlava toda a atividade política, mas permitiu que a Igreja mantivesse a sua ideologia própria, com caráter de dominante e, conjuntamente com a estatal, revestisse carateres totalitários. O regime definia-se como uma "monarquia tradicional, católica, social e representativa", optava pola confissionalidade do Estado espanhol e declarava que a religião Católica, Apostólica e Romana, única verdadeira, é inseparável da consciência nacional e inspirará a sua legislação. Em matérias ideológicas, como a filosofia, a ideologia estava controlada por religiosos, e os que fizemos oposições tínhamos que ter muito cuidado em não amostrar dissidências porque se não, não passavas; a guerra contra a matéria de cidadania, põe de manifesto até que ponto a Igreja se considera com direito a regular todo o referente á ideologia; os festivos eram os religiosos, e ainda seguem sendo, e as atividades sociais estavam condicionadas por elas, como na Semana Santa; as festividades profanas foram cristianizadas pola igreja; a moralidade pública regulava-se de acordo com a ideologia eclesial, e as celebrações rituais para celebrar as etapas importantes da vida dos seres humanos eram, e ainda são, monopolizadas pola Igreja, que também intervinha expedindo certificados de boa conduta para poder trabalhar, o qual condicionava a liberdade e atitude das pessoas; os sacerdotes requisitavam aos fregueses nos seus domicílios aquelas traduções bíblicas doutras facções cristãs; amostrar deviações nas paróquias podia dar lugar a fortes represálias por parte do pároco, e podemos dizer que uma dogmática tão irracional como a cristã, somente se pôde conservar mediante a ignorância e uma forte repressão; ... Não se trata aqui de pedir contas a ninguém senão de analisar o que passou e passa e ver como se pode regular o futuro.

As sociedades de hoje são sociedades plurais, muito afastadas do monolitismo ideológico que prevaleceu até agora. A religião deixou de impregnar e dar-lhe sentido á vida duma grande percentagem da população. Segundo dados do CIS, em 2015 o setenta por cento da população considera-se católica, com tendência a diminuir; um vinte seis por cento declara-se ateu ou não crente, com tendência a aumentar; e um dous por cento a outras religiões. Mas, a percentagem dos que quase nunca a praticam, eleva-se ao sessenta por cento, e com tendência a aumentar. Ou seja, que há muitas pessoas que somente acodem á Igreja para celebrar efemérides importantes na vida dos indivíduos: nascimento, boda, funerais, ... Por outra parte, temos que ter presente que as celebrações religiosas são um ato social que não tem porque implicar conformidade com o que se manifesta no rito, senão que se faz porque é o habitual, para estar com outros, ...Se comparamos os dados por comunidades autônomas, constatamos que as mais desenvolvidas, como País Vasco, Catalunya e Madrid, são as que têm uma percentagem maior de ateus, não crentes e não praticantes, e uma menor de católicos. Aliás, os que vivem nas cidades são muito menos praticantes que os que vivem nas vilas e zonas rurais.

Se confrontarmos estes dados com o que sucede na França, observamos que em 2012, segundo a associação de sondagens WIN/Gallup Internacional, somente um 37 por cento dos franceses se declara religioso, frente a um 34 por cento de não crente e a um 29 por cento de ateus. Os que assistem á missa somente representam o 4,5 por cento. Todo indica que a irreligiosidade tende a aumentar e os católicos a diminuir. Como podemos comprovar, a laica França está a uma distância considerável de Espanha, o qual se explica pola maior dependência da sociedade espanhola a respeito da Igreja e polo nacional-catolicismo espanhol imposto pola complicidade franquismo-catolicismo, com o seu totalitarismo ideológico, que gravou nas mentes das pessoas uma explicação da realidade mítico-infantil e terrorífica, com o invento platônico do terror ao Tártaro fervente, antecedente do inferno cristão. Mas, se a evolução é normal de cara ao futuro, a situação espanhola não tardará em confluir com a da França.    

Temos, por tanto, novos fatos, novos fenômenos sociais, novas realidades e novas necessidades, que reclamam sempre também novas denominações. Hoje, um católico pode nascer, viver, e morrer em católico, porque na sociedades existem as associações pertinentes com os seus ritualismos que o fazem possível, enquanto que as pessoas doutras religiões, não crentes ou ateias, não podem fazê-lo. Mas as igrejas não são a sociedade, senão somente uma parte dela, e é a própria sociedade a que deve implicar-se nas celebrações sociais. Devemos superar o liberalismo que considera o indivíduo como um átomo social e o fundamento da sociedade, que se reduz a um conjunto de indivíduos, e recuperar o sentido comunitário. Nos dias de hoje, se uma família tem um filho, a comunidade não dispõe de nenhum rito para celebrar esta efeméride tão importante a nível comunitário, pois todo neonato ou bebê é um bem comunitário e não só familiar, e a comunidade deve acolher e dar-lhe a bem-vinda ao novo ser, dando-lhe sentido comunitário e solidário. Este rito deve ser independente e mais fundamental que qualquer outro de caráter religioso que a família quiser celebrar. Um primeiro é cidadão e depois cidadão católico. Quando o menino começa a etapa da pré-adolescência e de socialização integral, que é quando se realiza a primeira comunhão, que tanta ilusão lhe produz aos pequenos, creio que deveria haver outro rito comunitário, porque é um momento relevante para as crianças. O câmbio de estado é outro momento importante, mas este já está em vias de solução com a boda civil, ainda que quiçá seja conveniente determinar doutra maneira quem a vai celebrar. Outro momento importante é o da morte, que é o momento em que a família e a comunidade perde um dos seus membros, e também aqui a comunidade deveria implicar-se.

A respeito do nascimento, já surgiram alguns intentos de pôr em marcha a cerimônia da sua comemoração que se começou a denominar como batismo laico. Saudamos estas iniciativas, mas creio que a denominação não é a mais indicada. O batismo é anterior ao cristianismo, pois já existia no povo hebreu, na religião hindu e na egípcia, mas em todas elas representa um lavatório, um ritual de purificação ou uma remissão dos pecados do neonato, que é totalmente desacertado para um menino recém nascido ou para a sua mãe, pois só por razões supersticiosas se pode considerar que necessitem purificar-se. Quem necessita purificar-se são os que estabeleceram estes ritos. Por outra parte, quando dizemos «batismo cívico», utilizamos um qualificativo, e, por tanto, subordinaríamos esta prática ao batismo por antonomásia, que é o religioso. Por outra parte, o batismo significa uma integração numa religião, numa associação, enquanto que a prática que propomos é a duma integração comunitária, á margem, anterior e mais fundamental que qualquer associação concreta. Isto induziu-nos a propor uma nova denominação, desligada de conotações religiosas, polo menos nos nossos dias, que seria a de NATALÍCIO, o dia em que nasce um menino para a família e a comunidade, implicando-se as duas na sua acolhida. 

A celebração correspondente á primeira comunhão poderia denominar-se puerícia, que é um período intermédio entre a infância e a adolescência, e os restantes, tanto o matrimônio como a óbito já não precisam novas denominações. A respeito dos oficiantes, considero que encomendar-lhe esta função a concelheiros não é o mais acertado, porque qualquer concelheiro é membro de partido, com as suas fobias e filias, e, por tanto, seria desejável mais aséptica se encarrega-se de acontecimentos que ultrapassam os partidos e que são comunitárias. Poderia eleger-se uma pessoa independente de qualquer afiliação partidária, quiçá no mesmo momento das eleições locais, á que se lhe encomendaria esta função, e que poderia levar o nome de “Mestre/mestra de celebrações comunitárias”.

Referente aos edifícios, creio que é a hora de que o patrimônio dedicado ao culto, construído e mantido polo poder político, ou seja, pola cidadania, deve ter um uso compartido dum modo civilizado entre os sectores que precisam realizar qualquer celebração comunitária. Também aqueles que foram construídos polos fieis antepassados nossos, entre eles os meus, pois é de presumir que quereriam que os seus descendentes, chegado o caso, também pudessem utilizar estes locais para o uso que pudessem necessitar, se bem, em correspondência, devemos contribuir ao seu mantimento, conservação e restauração. Evidentemente, considero que em todos os tanatórios os usos dos locais, que agora se destinam ao culto religioso, devem poder ser compartilhados.




27 nov 2015

Democracia para os nossos dias (IV)



Democracia e divisão de poderes

A divisão ou separação de poderes é a ordenação e distribuição das funções do Estado pola qual se atribui a órgãos ou organismos distintos a titularidade de cada uma delas.

A divisão de poderes é uma doutrina e uma prática relativamente recente, pois não existia nem na antigüidade greco-romana nem na Idade Média. Em Grécia, as distintas funções do Estado podiam ser desempenhadas pola mesma pessoa, inclusive nas cidades-estado democráticas. A democracia não tinha limites, pois os cidadãos varões maiores de idade podiam decidir em pessoa sobre todo. A primeira conclusão que podemos extrair é que a democracia, pola menos a direta, pode existir sem divisão de poderes.

O mesmo podemos dizer do império romano no que o poder do príncipe era absoluto. Como exemplo, imos citar um texto do imperador Constantino I, do ano 325: “Se alguém de qualquer lugar, ordem ou dignidade, está convencido de poder provar de maneira veraz e evidente contra qualquer dos juízes, condes, amigos ou palatinos, que não atuou íntegra e justamente, que aceda intrépido e seguro, que me interpele: Escutarei todo, examinarei todo e se se tiver provado, vingar-me-ei eu mesmo. Que fale, que fale seguro e bem consciente; se se tiver provado, como disse, vingar-me-ei daquele que, até este tempo me induziu a erro com simulada integridade, mas a aquele que tiver denunciado e comprovado acrescentá-lo-ei com dignidades e bens” (Código de Teodósio, 9.1.4). Em Roma, o imperador era a máxima autoridade religiosa que ostentava o título de Sumo Pontífice, política e militar. Como chefe político, desempenhava as funções legislativas, executivas e judiciais.

Vai ser o liberal John Locke (1632-1704) o primeiro que propõe uma divisão de poderes num momento de formulação do pensamento liberal e de ascenso da burguesia á cimeira do poder económico e político, em substituição da decadente nobreza latifundiária. Locke formula a sua doutrina da divisão de poderes no capítulo 12 do Ensaio segundo sobre o Governo civil, no que afirma que existem três poderes: a) legislativo, que "tem um direito a indicar como deve ser empregada a força da comunidade para preservar a força do Estado para preservar a comunidade e os seus membros” (§ 143); b) executivo, que "mira pola execução das leis que se fizeram, e permanecem em vigor” (§ 144); e c) federativo ou natural, que tem como objetivo que "sejam geridas polo público as controvérsias que se produzem entre qualquer home da sociedade com aqueles que estão fora dela, e que uma injúria dada a um membro do corpo compromete o todo na sua reparação” (§ 145), por tanto, o que hoje se entende por relações exteriores e a declaração da guerra ou a concertação da paz. O poder supremo, enquanto subsiste o governo, pois em caso contrário recairia na Comunidade, é o legislativo e todos os demais são delegados e devem estar submetidos ao mesmo. Com todo, "fica-lhe sempre ao povo o poder supremo de apartar ou cambiar os legisladores, se considera que atuam duma maneira contrária á missão que se lhes confiou" (§ 149), voltando neste caso o poder a quem lho entregou. Locke estava totalmente oposto ao absolutismo porque considerava que “o poder absoluto arbitrário, ou o governo sem leis fixas estabelecidas, não podem nenhum deles harmonizar-se com o fim da sociedade e do governo” (§ 137), que é preservar as vidas, liberdades e bens dos homes, e segurar a paz e a tranqüilidade mediante normas estabelecidas de direito e propriedade. Pareceria, por conseguinte, lógico que defendesse a separação de poderes para evitar o absolutismo, mas somente fundamenta a separação do legislativo a respeito do executivo no fato de que se fossem as mesmas pessoas as que legislam e executam as leis, “daria lugar a que se eximissem da obediência as leis que eles fazem, e ajustassem a lei, na sua redação e execução, ao seu próprio proveito privado, e ter por isto interesse distinto do resto da comunidade, contrário ao fim da sociedade e do governo”.  (§ 143). As divisões posteriores omitiram o poder federativo, integrando-o no executivo, e estabelecerão como terceiro poder o judicial, que, para Locke ficava integrado no executivo.

Foi o barão de Montesquieu (1689-1755) quem propôs a divisão de poderes que foi unanimemente aceitada pola posteridade: legislativo, executivo e judicial. Em todo Estado há três poderes: legislativo, executivo e judicial. A sua separação constitui a garantia da liberdade. "Todo estaria perdido se o mesmo home, o mesmo corpo de pessoas principais, dos nobres ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os delitos ou as diferenças entre particulares" (Do espírito das leis, liv. 11, 6). Para ele não haveria liberdade se o poder legislativo está unido ao executivo na mesma pessoa, “porque se pode temer que o monarca ou o Senado promulguem leis tirânicas para fazê-las cumprir tiranicamente”. Tão-pouco haveria  liberdade se o poder judicial não está separado do legislativo, porque “o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrária”; nem haveria liberdade se o legislativo não está separado do executivo, “porque o juiz teria a força dum opressor”. Para este autor, a separação de poderes, justifica-se, pois, em aras da liberdade, que não consiste em fazer o que um queira senão que “é o direito de fazer todo o que as leis permitem, de jeito que se um cidadão pudesse fazer o que as leis proíbem, já não haveria liberdade, pois os demais teriam igualmente esta faculdade" (Ibid. 11, 2).  Com todo, para ele, a liberdade não se dá somente na república ou democracia, senão também na monarquia e na aristocracia; nem a democracia tal como ele a entende se identifica com a democracia atual. Para Montesquieu, quando “o povo inteiro tem o poder soberano, estamos numa democracia”. (Ibid., liv. 2,2), que tem como sistema próprio de eleição o sorteio, enquanto que a designação por eleição corresponderia á aristocracia. (Ibid., 2, 2).

Nas sociedades democráticas está aceito que a soberania reside no povo, mas ainda não está aceito em muitas delas que reside em cada um dos povos e onde há vários povos há várias soberanias. Os diferentes poderes do Estado são como delegados dessa soberania popular, e o soberano, quer dizer, o povo, tem interesse e direito a ordenar estes poderes para obter um funcionamento harmônico das instituições públicas em serviço dos seus interesses, e a divisão de poderes, de procedência e natureza liberal, converteu-se num instrumento básico para conseguir este objetivo. Não existia na democracia direta ateniense, porque o soberano atuava em pessoa, mas quando se atua por meio de representantes, faz-se imprescindível. A separação de poderes é, junto com os direitos humanos, outro contributo importante do liberalismo na conformação da democracia representativa atual, que visam ambos a limitar o poder do Estado sobre o indivíduo. A separação de poderes é um instrumento necessário do soberano, ou seja, do povo, para evitar a concentração excessiva do poder em qualquer dos órgãos do Estado, estabelecendo um sistema de controles e contrapesos entre os três poderes limitativos do poder entre eles, com objeto de garantir o correto funcionamento das instituições e evitar a corrupção política. Podemos afirmar que a qualidade democrática dum país se pode deduzir da qualidade da sua divisão de poderes, e, ao invés, que, a qualidade da sua divisão de poderes, se pode deduzir da sua qualidade democrática. Também podemos aplicar isto mesmo ao caso da corrupção, pois também, a partir dum oceano de corrupção política, como a que existe no Estado espanhol, se pode inferir que a divisão de poderes não funciona, que falham os controles, devido a que os que ostentam o poder estabeleceram uma separação de poderes que atua em benefício próprio, ou, noutras palavras, que se criou um sistema para favorecer as práticas extrativas da oligarquia política partidária e da oligarquia econômica.



O que está passando nos nossos dias, nomeadamente a nível do Estado espanhol, é que os representantes do soberanos, ou seja do povo, des-empoderaram a este da sua soberania e erigiram-se eles mesmos nos autênticos soberanos de fato, criando uma espécie de oligarquia partidária que é quem gera todo o invento de costas á cidadania, e o povo converteu-se de fato no legitimador dessa soberania mediante eleições periódicas. Patentiza-se isto claramente com a reforma constitucional do PP e PSOE para antepor os interesses da oligarquia econômica sobre os seus próprios, e sem dar-lhe audiência ao despossuído. Agora se aprestam a assinar, incluso parece que antes de lê-los, os tratados internacionais ultra-secretos, como uma demonstração da sua fé inquebrantável na transparência, TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), e o TISA (Trade in Services Agreement), para consolidar o seu domínio oligárquico a nível global e liquidar qualquer empoderamento e poder de decissão da cidadania.

Afonso Guerra declarou em 1985, após a reforma da Lei do Poder Judicial, que “hoje enterramos a Montesquieu”, porque, pretextando que o Conselho Geral do Poder Judicial era um órgão corporativista, assinalaram a nomeação dos seus membros ao Parlamento, convertendo o Poder Judicial num apêndice do poder legislativo, que finaria com a sua politização e a perda da sua independência. O resultado foi que a retificação dum mal engendrou outro muito maior. O PP promete que despolitizaria a justiça, mas no fundo, não está interessado em fazê-lo porque uma justiça domesticada lhe rende grandes serviços políticos aos que ostentam o poder no Estado, entre outros, manter humilhados a todos os demais povos que não sejam o espanhol, como está a passar com o problema catalão. Este despropósito judicial acrescenta-se com a perda de qualquer independência do ministério fiscal, que, teoricamente atua de acordo aos princípios de unidade de ação, hierarquia e imparcialidade, mas que na prática essa hierarquização, ao ter na sua cimeira um fiscal geral elegido polo poder político de turno, tem como conseqüência que a sua imparcialidade se veja reiteradamente questionada pola sua atuação prática. Além disso, ao ser os partidos espanholistas os que controlam o poder legislativo e o executivo, a eleição dos membros do Conselho Geral do Poder Judicial e do Tribunal Constitucional vai recair sempre em vogais favoráveis á defesa e promoção dos interesses do povo espanhol, negando na prática os demais povos que convivem no Estado.

Mas, o problema é ainda muito mais grave se temos em conta que também o poder legislativo não é mais que um apêndice do poder executivo, e este um apêndice do chefe do partido ganhador das eleições que foi quem propõe, em última instância, os candidatos ao Congresso e ao Senado. Isto significa que uma pessoa pode pessoalmente controlar o seu partido e os três poderes do Estado, e, como no caso do PP, mesmo um dirigente que foi elegido a dedo polo seu antecessor. Não existem na Constituição Espanhola contrapesos de nenhuma classe á atuação do poder executivo, porque o legislativo é um órgão totalmente submetido ao poder executivo e sem poder de iniciativa autêntica, que se limita a aprovar o que lhe interessa em cada momento ao executivo, que é quem tem toda a iniciativa legislativa. Em EEUU o Presidente pode vetar uma lei aprovada polo Congresso e este tem o poder de não aprovar leis presidenciais, e também de alterar a composição e jurisdição dos tribunais federais. Isto não significa que este sistema de controles estadunidense seja adequado para o Estado espanhol, entre outras cousas, porque o seu sistema político é presidencial e o espanhol é parlamentar, mas si que é necessário que exista um sistema de controles e de independência dos distintos poderes, e, para isto, há que modificar o sistema de eleição do poder legislativo e do poder judicial. 


20 nov 2015

Ubi bene ibi patria


A expressão «Onde um está bem, ai está a pátria» remonta ao poeta trágico romano Pacúvio (220-130 a.e.c.) na sua obra trágica Teucer, fr. 291, citado por Cicerão (106-43 a.e.c.) nas Tusculanas, 5.37.108: «Patria est ubicumque est bene», A pátria está onde um está bem. É esta uma expressão que todo o mundo pode aceitar na sua generalidade, porque todo depende do significado que se lhe dê á palavra bem, que, como dizia Aristóteles, reviste muitos sentidos ao igual que a palavra ser.

Alguns reduzem o seu sentido a Ubi panis ibi patria, onde está o alimento, ai está a patria, e, evidentemente podemos dizer que satisfazer qualquer dos motivos primários: comida, bebida, sexo, sexo, ... é muito importante para todos os animais, incluído o ser humano, embora não tenha para todos o mesmo peso. Não é igual a motivação que presidia o comportamento de Sancho Panza, em procura da ilha Baratária, que a do Quijote. Este é, sem dúvida, o motivo que impulsa o comportamento do emigrante que intenta escapar da penúria econômica. Com todo, é difícil aceitar que o alimento, ao igual que os demais motivos primários, se identifiquem sem mais com a vida boa. A emigração provoca a separação das famílias e a ruptura tanto dos vínculos familiares como sociais com respeito ao seu lugar de procedência e sem lograr enraizar no seu lugar de destino. Um emigrante vive nos países acolhida num ambiente isolado ou todo o mais numa espécie de gueto marginal. Os que, por azar da vida, estudamos fora fomos testemunhas da descarga emocional que se desencadeava nos emigrantes ao chegar á fronteira espanhola, que delatava a situação de morrinha na que vivem no seu desterro da pátria.

O sistema capitalista situa-se onde vê mais oportunidades de benefício, de incremento do capital, independentemente de qualquer consideração de caráter afetivo e de todo vínculo social preexistente. O mundo que pregoa é a do homo oeconomicus desenraizado sem mais interesse que o de pôr-se a disposição do capital, e de ai que, em vez de localizar a riqueza onde estão os trabalhadores, desloca os trabalhadores aos lugares onde se poda produzir um incremento maior dos benefícios empresariais. É um sistema que racha com todas as formas de integração social e reduz o indivíduo a um átomo isolado ante o deus capital. Como diz Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista, “A burguesia despojou da sua aureola a todas as profissões até então reputadas de veneráveis e veneradas. Do médico, do jurisconsulto, do sacerdote, do poeta, do sábio, fez trabalhadores assalariados. A burguesia desgarrou o véu de sentimentalidade que encobria as relações familiares e reduziu-as a simples relações de dinheiro. ... A burguesia não existe mais que a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de trabalho, quer dizer, todas as relações sociais.” (Ediciones elaleph.com, 200, pp. 29-30). Creio que o problema não reside em se as pessoas são assalariados ou Autônomos, porque este conceito é mui pouco analítico, pois engloba situações totalmente dispares. Que tem que ver Pablo Isla com um obreiro manual? Pois, segundo a análise marxista, os dous seriam proletários e submetidos a exploração.  Que tem que ver um professor universitário com um alvanel, seja autônomo ou assalariado? Do que se trata é dos direitos que amparam a um trabalhador e das capacidades extrativas que tem.  É certo que o capitalismo destrui os vínculos familiares e sociais, mas também a proposta marxista do proletariado internacional contribuiu á homogeneização entre as distintas nações e, de passo, possibilitou a consolidação pola oligarquia dum sistema extrativo planetário, e facilitou a submissão dos povos diferenciados perante as oligarquias estatais.

O resultado de dinâmica capitalista é um home cosmopolita, sem laços sociais, sem lugar de residência estável, sem ligação com nenhum particularismo familiar, local ou nacional. Do que se trata é de construir um home desenraizado e á margem de qualquer interesse que não seja o da produção e o consumo, ad majorem gloriam pecuniae. Declara-lhe a guerra ao mais sagrado, sempre que não favoreça o seu poder extrativo sobre a população e a exploração dos recursos planetários. Este mundo criado polo capital, que destrói os vínculos familiares e sociais e as relações de pertença que integram e lhe dão sentido ás vidas dos indivíduos, que aniquila os direitos dos trabalhadores, condenados muitas vezes a jornadas ilegais e abusivas de trabalho a câmbio de salários muitas vezes insuficientes, ao tempo que deixa no paro a milhões de pessoas, sem alternativa nenhuma de futuro, que não é capaz de instaurar uma exploração razoável e sustentável dos recursos escassos e incrementa a polução planetária, deve dar passo a um mundo novo, um mundo ao serviço das pessoas presentes e futuras, um mundo que respeite as diferenças e os laços que lhe dão sentido á vida dos indivíduos. O sistema oligárquico necessita expandir-se para sobreviver, necessita da globalização para continuar a incrementar os seus benefícios, e isto implica que necessita destruir toda vinculação social oposta á sua dinâmica absorvente e vampiresca dos recursos humanos e das matérias primas, numa espiral sem fim. “Impulsada pola necessidadw de mercados sempre novos, a burguesia invade o mundo inteiro. Necessita penetrar por todas partes, estabelecer-se em todos os sítios, criar por onde quer meios de comunicação. Pola exploração do mercado universal, a burguesia dá um caráter cosmopolita á produção de todos os países. Com grande sentimento dos reacionários, quitou á indústria o seu caráter nacional. As antigas indústrias nacionais são destruídas ou estão a ponto de sê-lo. Foram suplantadas por novas indústrias, cuja introdução entranha uma questão vital para todas as nações civilizadas: indústrias que não empregam matérias primas indígenas, senão matérias primas vindas das regiões mais afastadas, e cujos produtos se consomem, não só no próprio país senão em todas as partes do globo” (Ibid. pp. 30-31). Os meios de comunicação são um instrumento precioso em mãos da oligarquia, porque lhe permite bem-dizer o seu sistema de exploração, difundir a «sua verdade» e lograr, desta maneira, o assentimento dos cidadãos ás políticas que põem em prática. O resultado é um des-empoderamento da cidadania e dos produtores e pequenos empresários locais, condenados a trabalhar para e como satélites da grande expressa transnacional. O caráter de reacionário aplicado aos que defendem a indústria local é improcedente, pois a indústria local cria riqueza para a comunidade onde se insere sob a forma de postos de trabalho, valor acrescentado, tributos, aproveitamento dos recursos locais, ... e permite aforrar energia e dispêndios em transporte, muito importante numa economia sustentável. 

Castelao combateu o provérbio «ubi bene, ibi patria», reduzido á mero bem-estar econômico, por considerar que isso destrói as pátrias. “Eu topo-me bem onde poda viver com desafogo, (porque levam a pátria na sola dos sapatos)” (Sempre em Galiza, p. 12). Combateu denodadamente o cosmopolitismo e optava polo universalismo, pola coordenação do particularismo com o universalismo; defendia o internacionalismo mas não um internacionalismo abstrato senão um internacionalismo que conte com as sociedades presentes, onde os homes adquirem a sua identidade grupal e que lhe darão o seu selo próprio ao desejado futuro Estado mundial. “Diga-se o que se queira, a sociedade futura terá de criar-se pola conjunção das sociedades presentes, de modo que o Estado mundial leve o cunho das pátrias que o integram” (Ibi. P. 433). 

Outros autores reduziram o provérbio «ubi bene, ibi patria», a «ubi libertas, ibi patria», onde há liberdade ali está a pátria, mas o bem é muito mais que a liberdade. A liberdade integra, mas não em exclusiva o ser humano, que, além do poder de decisão, tem sentimentos, paixões, emoções, necessidade de carinho de proteção, de filiação, ... e, por tanto, todo isto forma parte também do bem humano.

Outros restringem o bem do provérbio «ubi bene, ibi patria», ao amor, «ubi amor, ibi patria», que é também um fator muito importante em todos os animais, e que contribui ao equilíbrio pessoal, a dotar de confiança em si mesmos aos amantes, permite satisfazer as pulsões sexuais entre parelhas e perpetuar-se na prole. Segundo Freud, Eros é, junto com thanatos, ou instinto agressivo,  a pulsão básica do ser humano que determina a sua conduta, uma pulsão que necessita satisfazer-se dum modo imperioso, mas tão-pouco o amor o é todo.

O bem inclui a satisfação dos motivos primários: comida, bebida, sexo, sono; mas também das necessidades de comunicação, liberdade, proteção, amor, auto-identificação, relações de pertença, criatividade; em definitiva, a auto-realização das potencialidades contidas no ser humano.