14 oct 2018

Mulher, sexo e matrimônio nos escritos apostólicos (II)


Inferioridade e submissão da mulher

            Uma das ideias mais recorrentes do Novo Testamento é a do submissão da mulher ao homem, a qual, depois de enorme insistência e repressão, terminou por ser interiorizada tanto polos varões, convertidos em repressores, como pola mulher, que viu anulada a sua personalidade. São Paulo quer que as mulheres de Corinto evitem assistir sem véu à igreja, que ele considera um abuso que se opõe às tradições ou ensinança catequética que ele lhes transmitiu. Aproveita esta prática para deixar bem assentada a inferioridade da mulher com respeito ao varão que ele fundamenta em considerações místicas, à margem de qualquer fundamentação racional e, com esta finalidade, elabora um sistema piramidal, para dar uma forma mais claramente misógina ao relato do Gênesis incorporando a ele a Cristo, na que os elos de major a menor perfeição e hierarquia são: Deus-Cristo-homem-mulher. “Quero porém, que saibais que Cristo é a cabeça de todo homem, o homem a cabeça da mulher, e Deus a cabeça de Cristo” (I Cor. 11, 3). Esta hierarquização, com a conseguinte subordinação e dependência da mulher, obedece, pois, a desígnios divinos e, portanto, não se pode quebrantar, como sucederia se o homem assistisse à igreja com a cabeça coberta e a mulher com ela descoberta, pois, neste caso, a mulher ousaria fazer-se igual ao varão, o qual é totalmente inadmissível, para Paulo. Nesta mística paulina, totalmente gratuita e infundada, a mulher fica descabeçada, sem pensamento próprio, reduzida a uma cabeça de «chorlito», que somente pode pensar pola mente do varão.

            A seguir realiza o apostolo Paulo toda uma série de afirmações para apoiar as suas teses, carentes do mais mínimo rigor, a respeito da desonra da sua cabeça, pois o que desonra não são as vestes, mas a atitude perante a divindade ou perante os outros seres humanos e todo o demais são convenções sociais criadas polos que dominam para distinguir-se dos demais e sacralizar o seu sistema de dominação sobre eles, labor que, neste caso, é realizada polos relatos bíblicos do Gênesis, que agora adquirem em Paulo uma nova ratificação. O apóstolo considera que se o homem se cobre e a mulher se descobre não mostrariam o plano hierárquico de dominação estabelecido por Deus que é o citado: Deus-Cristo-varão-fêmea. O homem, se se cobrisse não refletiria a glória de Cristo, e a mulher, se não se cobrisse, pretenderia igualar-se ao varão. O homem é imagem e glória de Deus e a mulher é imagem do homem, um reflexo sempre pálido da autêntica realidade. A razão de todo isto é que a mulher proveu do homem, enquanto que o homem proveu de Deus; este foi criado por si mesmo, enquanto que a mulher foi criada a causa do varão, o qual lhe permite concluir que somente o homem é imagem e glória de Deus, enquanto que a mulher é glória do homem, e, por isso, deve cobrir-se em sinal de submissão ao varão, que é já o paroxismo da misoginia, ou senão rapar-se. “Todo homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta desonra a sua cabeça. Mas toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a sua cabeça, porque é a mesma cousa como se estivesse rapada. Portanto, se a mulher não se cobre com véu, tosquie-se também; se, porém, para a mulher é vergonhoso ser tosquiada ou rapada, cubra-se com véu. Pois o homem, na verdade, não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus; mas a mulher é a glória do homem. Porque o homem não proveu da mulher, mas a mulher do homem; nem foi o homem criado por causa da mulher, mas sim, a mulher por causa do homem. Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de submissão, por causa dos anjos” (I Cor. 11, 4-10). Em vez dos anjos deveria dizer em interesse dos misóginos celibatários. O Gênesis não precisa claramente se a mulher é ou não imagem de Deus, cousa que sim faz agora o apóstolo Paulo, limitando a imagem de Deus ao sexo masculino.

            Para intentar remendar o seu discurso profundamente misógino e consolar a mulher acrescentando que “nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher. pois, assim como a mulher veio do homem, assim também o homem nasce da mulher, mas tudo vem de Deus” (I Cor. 11, 11-12), mas pouca independência pode ter um ser que está totalmente submetido a outro e carece de total autonomia. A seguir, Paulo dá-lhe voz aos coríntios para que julguem se convém que a mulher ore com a cabeça descoberta, pretendendo inclinar o seu juízo polo não em base a que já a natureza nos ensina que é uma desonra para o homem ter os cabelos longos enquanto que é uma desonra para a mulher não tê-los longos. “julgai entre vós mesmos: é conveniente que uma mulher com a cabeça descoberta ore a Deus? Não vos ensina a própria natureza que se o homem tiver cabelo comprido, é para ele uma desonra; mas se a mulher tiver o cabelo comprido, é para ela uma glória? Pois a cabeleira lhe foi dada em lugar de véuI Cor. 11, 13-15). É evidente que a natureza não ensina nada, senão que somente adquire sentido mercê à atividade avaliadora do ser humano. O que desonram são as condutas e atitudes incorretas para com os demais seres humanos, os restantes seres vivos, a natureza inerte, mas nunca os cabelos longos ou curtos. Se a cabeleira lhe foi dada por véu, por que ao homem, que também tem cabeleira, se não se rapa ou lhe cai o pelo, também lhe seria dada por véu. Aliás, se a cabeleira lhe foi dada por véu à mulher, por que precisa outro véu a maiores?

            De acordo com as pautas acima estabelecidas, Paulo atua coerentemente exigindo que as mulheres calem na igreja, obedeçam e perguntem-lhes aos maridos se querem aprender. “as mulheres estejam caladas nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas estejam submissas como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma cousa, perguntem em casa a seus próprios maridos; porque é indecoroso para a mulher o falar na igreja” (I Cor. 14, 34-35). É uma mágoa que não precise Paulo por que para ela é indecoroso falar na igreja, enquanto que para o homem não.

            Tanto nas cartas atribuídas erroneamente a Paulo como nas epístolas denominadas católicas, mantém-se esta tendência misógina de clara subordinação da mulher a respeito do homem. Na carta pseudoepigráfica dirigida aos efésios no ano 62, o seu autor insiste no tema da submissão da mulher ao marido «em todo» e, a câmbio, aos homens aconselha-lhe que as amem. “Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o Salvador do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres o sejam em tudo aos seus maridos. Vós, maridos, amai a vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela” (Ef. 5, 22-25). A expressão «em tudo» deveria desaparecer de qualquer relato em que se fale da relação dum ser humano com outro. Se o homem lhe indica que tem que matar a outro ser humano, deve ela obedecer? Estaria ela eximida do delito de homicídio ou assassinato alegando que atuou por obediência devida? Isto é totalmente inaceitável. O home deve amar a mulher e esta reverenciar ao marido (Ef. 5, 32), e as mulheres idosas devem ensinar as jovens a amar os seus maridos (Tit. 2, 4-5). Também se insiste na submissão na Carta aos Colossenses, escrita no ano 62 e de autenticidade duvidosa. “Vós, mulheres, sede submissas a vossos maridos, como convém no Senhor. Vós, maridos, amai a vossas mulheres, e não as trateis asperamente” (Col. 3. 18-19).

            O autor da I Carta a Timóteo, escrita arredor do ano 100, amostra-se mais rude e imperativo e justifica a inferioridade da mulher no facto de que Adão foi criado primeiro e em que Eva atuou como sedutora para induzi-lo a pecar . A mulher aprenda em silêncio com toda sujeição. Porque não permito à mulher ensinar, nem exercer domínio sobre o home, senão estar em silêncio“ (I Tim. 2, 11-12), e justifica-o aludindo ao invento do pecado do paraíso e oferece-lhe como saída parir filhos e ser boa. “Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, no amor e na santificação” (I Tim. 2, 13-15) . E postos a ordenar, também lhe prescreve como devem vestir. “que as mulheres se ataviem com traje decoroso, com modéstia e sobriedade, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos custosos” (I Tim. 2, 9). Tanto os bispos como os diáconos devem ser maridos de uma só mulher, e as mulheres devem ter as virtudes dos subordinados: “sérias, não maldizentes, temperantes, e fiéis em tudo” (I Tim.  3, 11). Não se deve eleger nenhuma viúva menor de sessenta anos, porque “quando se tornam levianas contra Cristo, querem casar-se; tendo já a sua condenação por haverem violado a primeira fé; e, além disto, aprendem também a ser ociosas, andando de casa em casa; e não somente ociosas, mas também faladeiras e intrigantes, falando o que não convém. Quero pois que as mais novas se casem, tenham filhos, dirijam a sua casa, e não dêem ocasião ao adversário de maldizer” (I Tim. 5, 11-15).

            Na I Carta de Pedro, pseudoepigráfica, escrita arredor do ano 65 e.c. insiste-se também na submissão das mulheres aos homes para que “se alguns deles não obedecem a palavra, sejam salvos pola conduta das suas mulheres, considerando a vossa vida casta em temor” (I Ped. 3. 1-2). Imitando as mulheres dos patriarcas, o seu adorno não deve ser o enfeite exterior, senão o íntimo do coração. E a conduta do marido deve ser a da compreensão, tratando-as como vaso frágil.

            Estes são os relatos bíblicos que os clérigos ousam afirmar que foram inspirados por Deus, por mais que não exista neles nenhum indício sério que indique que é assim. Estes relatos, esclerosados e convertidos em imutáveis e, pretensamente, na expressão da autêntica verdade, acarretaram enorme dor, sofrimento e alienação a mais de meia humanidade que viveu no mundo cristão e de algumas outras religiões. Esta cosmovisão deve mudar-se por outra que reconheça que as religiões positivas são também produtos humanos, criados para iluminar, dirigir, submeter, consolar e dar esperança aos seres humanos, úteis quiçá nalgum momento passado, mas que hoje são uma rêmora para a sua libertação e reconciliação consigo mesmo.

Mulher, sexo e matrimônio nos escritos apostólicos (I)


O sexo e matrimônio
            O apóstolo Paulo, cidadão romano, nasceu no seio duma família religiosa ligada ao farisaísmo e tinha por ofício fabricante de tendas. De personalidade rígida, desequilibrada e intransigente e de tendência misógina, a sua doutrina vai converter-se no eixo da ideologia do cristianismo triunfante, que assumiria várias das suas teses, entre elas o desprezo pola mulher e polo sexo.

            Na I Carta ao Tessalonicenses, 4, 3-6, escrita no ano 50 e.c., Paulo dá-lhe vários preceitos, entre eles, o primeiro relativo à pureza e à santidade, que implica abster-se da fornicação, ou seja, de toda relação sexual fora do matrimônio, favorecer a santidade e honra da própria mulher, preservando a castidade conjugal, e não fazer injúria ao próximo procurando satisfazer os desejos carnais com a mulher deste. “Porque esta é a vontade de Deus, a saber, a vossa santificação: que vos abstenhais da prostituição, que cada um de vós saiba possuir o seu vaso (a sua mulher) em santidade e honra, não na paixão da concupiscência, como os gentios que não conhecem a Deus; ninguém iluda ou defraude nisso a seu irmão, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas, como também antes vo-lo dissemos e testificamos”. A contraposição entre o mundo judeu-cristão e o mundo pagão é apresentada como a raça dos puros frente aos dominados pola paixão sexual.

            Na I Carta aos Coríntios, escrita no ano 53 e.c., Paulo responde a diversas questões que lhe fizeram os cristãos desta localidade a respeito do matrimônio, imbuídos por um rígido ascetismo com uma ideologia hostil ao sexo, que consideravam que, de ser celibatários, não deviam casar, e se estavam casados deviam praticar a continência sexual ou separar-se. Para Paulo, as relações sexuais não são boas e cumpre evitá-las, mas é pior a fornicação. Ele opta polo celibato como ideal e considera o matrimônio como um estado prescindível em si, salvo como remédio da concupiscência. “Ora, quanto às coisas de que me escrevestes, bom seria que o homem não tocasse em mulher; mas, por causa da prostituição, tenha cada homem sua própria mulher e cada mulher seu próprio marido”. (7, 1-2). Aceites estas premissas, Paulo ordena que ambos os esposos paguem o débito conjugal mutuamente, satisfazendo os impulsos recíprocos, decidindo cada um do corpo do outro membro da parelha e sem negar-se um ao outro, salvo, de comum acordo, para permitir o desempenho das tarefas religiosas. “O marido pague à mulher o que lhe é devido, e do mesmo modo a mulher ao marido. A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido; e também da mesma sorte o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher. Não vos negueis um ao outro, senão de comum acordo por algum tempo, a fim de vos aplicardes à oração e depois vos ajuntardes outra vez, para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência” 7, 3-5). Aclara a seguir, (7, 6-9) que o que disse sobre o uso do matrimônio o diz a modo de condescendência, e não como um mandado, e prefere que todos sejam como ele, ou seja, que pratiquem o celibato, que é preferível ao matrimônio, mas se não podem, que se casem. “Digo isto, porém, como que por concessão e não por mandamento. Contudo queria que todos os homens fossem como eu mesmo; mas cada um tem de Deus o seu próprio dom, um deste modo, e outro daquele. Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu. Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que abrasar-se”. A sociedade ideal é uma comunidade de monges na que não existam as relações sexuais.

            A seguir, prescreve, como o fez Jesus, o monogamia, sem que o marido abandone a mulher nem esta o marido, mas deixando a porta aberta a que a mulher abandone o marido para manter-se celibatária. “Aos casados, mando, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se aparte do marido; se, porém, se apartar, que fique sem casar, ou se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher” (7, 10-11). O matrimônio entre cristãos é indissolúvel, mas o matrimônio entre cristão e infiel pode dissolver-se se este o decide. “Mas aos outros digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula, e ela consente em habitar com ele, não se separe dela. E se alguma mulher tem marido incrédulo, e ele consente em habitar com ela, não se separe dele. Porque o marido incrédulo é santificado pela mulher, e a mulher incrédula é santificada pelo marido crente; de outro modo, os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos. Mas, se o incrédulo se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou a irmã, não está sujeito à servidão; pois Deus nos chamou em paz”. (7, 12-15).

            Num clima de preocupação apocalíptica que considerava que o fim do mundo está próximo, Paulo ordena manter-se na situação em que cada um está. A respeito da virgindade não ordena senão que aconselha ficar no estado atual de cada um, ainda que mantendo que a virgindade é superior ao matrimônio, desaconselhado por ele polas tribulações da carne que ele quer evitar aos seus seguidores. “Ora, quanto às virgens, não tenho mandamento do Senhor; dou, porém, o meu parecer, como quem tem alcançado misericórdia do Senhor para ser fiel. Acho, pois, que é bom, por causa da instante necessidade, que a pessoa fique como está. Estás ligado a mulher? não procures separação. Estás livre de mulher? não procures casamento. Mas, se te casares, não pecaste; e, se a virgem se casar, não pecou. Todavia estes padecerão tribulação na carne e eu quisera poupar-vos. Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia; pelo que, doravante, os que têm mulher sejam como se não a tivessem” (7, 25-29). A seguir, Paulo uma segunda razão para manter-se celibatário, que consiste em que, nesta situação, somente se cuida das cousas do Senhor, e que é ainda hoje a razão mais forte para manter o celibato clerical. “Pois quero que estejais livres de cuidado, que é o motivo principal polo que se mantém o celibato no seio da igreja. “Quem não é casado cuida das coisas do Senhor, em como há de agradar ao Senhor,  mas quem é casado cuida das coisas do mundo, em como há de agradar a sua mulher, e está dividido. A mulher não casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor para serem santas, tanto no corpo como no espírito; a casada, porém, cuida das coisas do mundo, em como há de agradar ao marido” (7, 32-34).

            No Apocalipse, 14, 3-4, livro escrito cara a finais do primeiro século, diz-se que só 144 milhares de homes celibatários, que não estavam contaminados com mulheres, foram elegidos e, portanto, serão salvados. Estes cento quarenta e quatro mil “cantavam um cântico novo diante do trono, e diante dos quatro seres viventes e dos anciãos; e ninguém podia aprender aquele cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil, aqueles que foram comprados da terra. Estes são os que não se contaminaram com mulheres; porque são virgens”. Os resgatados com o sangue de Cristo reduzem-se a 144.000 que são virgens porque não se contaminaram com mulheres. A virgindade pode entender-se como integridade física e corporal, que parece ser a autêntica, ou como pureza interior ou ausência de idolatria. Os escolhidos estão limpos já que não foram contaminados por mulheres, que é a fonte da impureza. Mas, entenda-se como pureza interior ou como integridade fisiológica, é um texto sumamente misógino.

            Paulo foi o hagiógrafo neo-testamentário que tratou mais em extenso o tema da homossexualidade, e o seu posicionamento é claramente hostil e condenatório, tanto dos gays como das lesbianas, qualificando os atos homossexuais de concupiscências dos seus corações, imundícia, desonra dos seus corpos e paixões infames por ter obrado em contra da natureza humana. Na Epístola aos Romanos, 1, 24-27, escrita no ano 60, diz dos gentios: “Por isso Deus os entregou, nas concupiscências de seus corações, à imundícia, para serem os seus corpos desonrados entre si; pois trocaram a verdade de Deus pola mentira, e adoraram e serviram à criatura antes que ao Criador, que é bendito eternamente. Amém. Pelo que Deus os entregou a paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural no que é contrário à natureza; semelhantemente, também os varões, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para como os outros, varão com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a devida recompensa do seu erro”. A pena que lhe deve ser infligida é a morte segundo estabelece o veredito divino no Antigo Testamento (Lev. 20, 13). “os quais, conhecendo bem o decreto de Deus, que declara dignos de morte os que tais cousas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que as praticam” (Rom. 1, 32). O seu destino no mundo de além-túmulo é a condena eterna. “Não vos enganeis: nem os dissolutos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbedos, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus” (I Cor. 1, 9-10). Na I Epístola a Timóteo, 1, 10, pseudoepigráfica, do ano 100, declara o seu autor que a lei é boa se se usar bem, e não foi instituída para o justo senão para os prevaricadores e rebeldes, entre eles os  dissolutos, os sodomitas, os roubadores de homens, os mentirosos, os perjuros, e para tudo que for contrário à sã doutrina”. Com estes pronunciamento fica fixada com letras indeléveis e per saecula saeculorum uma doutrina profundamente misógina que vai produzir muita dor em mais da metade da população ao longo da história e da que ainda agora as mulheres lutam por desprender-se, ao tempo que as autoridades eclesiásticas, desvinculadas da sensibilidade moral dos seus próprios fieis, vivem obsessionados em manter a toda custa.  

1 oct 2018

Mulher, sexo e matrimônio em Jesus de Nazaré (II)


Eunucos polo reino dos céus

            Jesus de Nazaré admitiu a castração, inclusive quando se pratica voluntariamente, se se faz por amor do reino de Deus. Quando os fariseus lhe perguntam se é lícito repudiar a mulher por qualquer causa, Jesus opõe-se em base ao que diz o Gênesis, 2, 24, de que o matrimônio é unha união na que dous ficam reduzidos a um e, em consequência, esta unidade não se pode romper. No judaísmo trata-se duma fusão por absorção e anulação da personalidade duma das partes, a mulher, que o marido pode utilizar ad libitum, a seu bel-prazer, a modo de cleanness, do que se pode prescindir, unilateralmente, quando não agrada, dando-lhe o libelo de repúdio (Dt. 24, 1). Esta conceção está longe do matrimônio como ideal comum compartido desde a igualdade e a diferença, preservando a personalidade e identidade psicofísica de cada uma das partes. Jesus, ainda que comparte a conceção judaica sobre a mulher, introduz um matiz que é a impossibilidade não só unilateral senão também bilateral do repúdio, ou seja, que nem a mulher pode repudiar o home nem o home pode repudiar a mulher, se bem não precisa o evangelista se a mulher o pode fazer em caso de adultério do varão (Mc. 10, 11-12), que sim o permite no caso do varão (Dt. 24, 1; Mt. 5, 32; Lc. 16, 18). Do cesse voluntário da convivência mútua e da forçada por unha convivência insuportável não fala porque não entrava na órbita das suas preocupações. Se Moisés -diz- concedeu licença para o repúdio foi a título provisório motivado pola dureza do coração dos judeus. Aos apóstolos parece-lhes duro que o homem não possa repudiar e casar com outra, também por outros motivos, como era habitual na sociedade judia, e, por isso, comentam-lhe que nesse caso é melhor para o homem não casar. Jesus não o nega e inclusive assente a esta formulação e recomenda veladamente que não se casem, senão que os convida a converter-se em eunucos polo reino dos céus, ainda não todos entendem isto: “Porque há eunucos que nasceram assim do ventre da sua mãe, e há eunucos que foram feitos polos homes, e há eunucos que se castraram a si mesmos por amor do reino dos céu. Quem possa entender que entendas. Quem possa entender que entenda” (Mt. 19, 12; 5, 32). Este pronunciamento de Jesus tem a sua origem nos essênios. 

            Jesus declara, como vemos, que “não todos entendem isto” e “quem possa entender que entenda”, que os interpretes dogmáticos passam por alto ou mal interpretam afirmando que está falando do celibato, ou da homossexualidade ou do divórcio chegando a dizer que está a falar metaforicamente da castração, como afirma Uta Ranke-Heinemann (Eunucos por El reino de los cielos, p. 34). Nenhuma destas explicações se para a pensar em quais são as razões polas quais Jesus não quer pronunciar-se, senão que deliberadamente deixa o assunto na obscuridade quando lhe seria muito fácil aclará-lo. Mas se não o faz é porque tem razões poderosas para não fazê-lo, pois, neste caso, de falar abertamente, enfrentar-se-ia com o poder do império romano que, a esta altura, proibia a emasculação pola Lex Iulia de maritandis ordinibus (18 a.e.c.), que incentivava o matrimônio e a procriação de filhos, e a Lex Papia Poppaea (9 e.c.), que castigava o celibato e a infecundidade com a incapacidade de receber heranças ou legados por parte dos celibatários. Jesus, em caso de defender abertamente a castração, estaria exposto a ser castigado polas autoridades romanas e, para evitá-lo diz que quem possa entender que entenda. Por que não fala do celibato nem da homossexualidade? Porque estas explicações são totalmente gratuitas, pois se quiser falar delas deveria utilizar as palavras pertinentes para fazê-lo e não falar do eunuquismo ou castração. Aliás, a prática da castração era muito corrente nos impérios babilônico, como assírio, persa, egípcio e no mesmo povo de Israel, como se constata por diversas passagens bíblicas. Outrossim, Orígenes e muitos bispos e patriarcas cristãos se castraram voluntariamente em base a este convite de Jesus.

            Alguns autores consideram que a primeira alternativa de Jesus se refere á homossexualidade, que teria, portanto, uma origem genética, mas seria um sem sentido que Deus quiser que se condenasse a alguém, como faz Paulo e a igreja cristã com a homossexualidade, por aquilo que é natural, aquilo com o que um nasce, pois a natureza foi criada, segundo o cristianismo, por Deus e seria o próprio Deus quem castiga a sua própria obra. Por outra parte, os dous casos seguintes, especialmente o segundo, todo indica que se referem à castração em sentido literal, e haveria, em todo caso, que acarretar justificações de por que num caso tem um sentido e a seguir outro distinto. O que sim é certo é que no Império Romano, a partir do século II se aplica a palavra eunuco também a não castrados, como são os que se abstêm voluntariamente do matrimonio, mas isso não implica que se refira aos homossexuais, senão que isto obedece a uma reinterpretação em clave espiritualista do que se vinha praticando em clave literal. As leis romanas proibiam a castração e os cristãos, para não colidir com a legislação, interpretaram os textos referidos a ela em sentido espiritual. Isto é, como veremos, o que acontece na Igreja primitiva por parte dalguns dos seus seguidores enquanto que outros continuaram a defender o sentido literal e a prática emasculadora real por entender que isso foi o que defendeu Jesus. O texto que citam os defensores da referência de Jesus á homossexualidade é um do Digesto de Justiniano: O termo «eunuco» é um termo de aplicação geral, e sob ele incluem-se não somente pessoas que são eunucos por natureza, senão também os que se fizeram eunucos por esmagamento ou compressão, assim como qualquer outra classe de eunucos qualquer que for” (Tit. 16, 128). Não há nenhuma evidência que indique que os eunucos naturais são os homossexuais, e tampouco podemos afirmar que o são os da terceira classe, porque a homossexualidade não é unha opção voluntaria senão uma situação na que um está.

            Os contemporâneos de Jesus seguiam as normas relativas à impureza ritual do Antigo Testamento. A Virgem, depois de superar o período de impureza de quarenta dias por ter dado luz a um menino, apresenta-se no Templo com ele para ser declarada legalmente pura polo sacerdote para assim poder tomar parte nas celebrações litúrgicas, oferecer os sacrifícios estipulados na lei, oferecer o primogénito ao Senhor e resgatá-lo mediante o pagamento de cinco siclos, porque num princípio os primogênitos estavam destinados ao culto. “Terminados os dias da purificação deles, segundo a lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém, para apresentá-lo ao Senhor (conforme está escrito na lei do Senhor: Todo primogênito será consagrado ao Senhor), e para oferecerem um sacrifício segundo o disposto na lei do Senhor: um par de rolas, ou dous pombinhos” (Lc. 2, 22-24). Esta festividade de purificação celebraram-na ainda as nossas mães até os nossos dias o 2 de fevereiro, que é a  data fixada pola igreja. Fixemo-nos que o texto fala da purificação deles, em plural, e a questão que surge é saber quem são estes eles. Considero que a opinião mais acertada é referi-los a Maria, por ser impura como resultado do parto, e a Jesus porque ao estar em contato com o sangue também se contagiaria com a impureza.  

            Jesus contribuiu a dividir as famílias em aras duma adesão incondicional à sua pessoa, como se transluze nos seguintes versos incendiários: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim”. (Mt. 10, 34-37). Jesus não se contenta com ordenar que ele deve ser preferido à própria família senão que incluso obriga a odiar a própria família para segui-lo a ele. “Se alguém vier a mim, e não aborrecer a pai e mãe, a mulher e filhos, a irmãos e irmãs, e ainda também à própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc. 14, 26). Este posicionamento de Jesus criou muita divisão e muita dor no seio das famílias, que, segundo ele, era o que pretendia, e, por isso, não se arreda de premiar aos que dividem as famílias sempre que se faça por ele. “todo o que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras, por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna” (Mt.. 19, 29). Quando estudava em Salamanca, lá polo ano 1962, fui consultar-lhe, ao eminente bispo José Maria Setién que nos lecionava uns exercícios espirituais, sobre este pronunciamento de Jesus, e o único que me disse foi: «Deixa isto». Evidentemente, é difícil que uma instituição se sinta cômoda com estas declarações. Com estes antecedentes, como pode o cristianismo pavonear-se de que defende a família? Mas Jesus não se contenta com isto, senão que também ordena que renuncie aos bens aquele que quer ser o seu discípulo. “Assim, pois, todo aquele dentre vós que não renuncia a tudo quanto possui, não pode ser meu discípulo” (Lc. 14, 33). Entretanto existem estes mandados de Jesus nos evangelhos, a igreja católica dedica-se a apropriar-se do alheio, inscrevendo a seu nome dezenas de milhares de bens que não lhe pertencem e nos que não investiu um patacão. 

            As relações de Jesus com a sua família não estiveram isentas de conflitualidade. Algumas respostas referidas à sua mãe e irmãos parecem pouco delicadas, pois incluso parece que se atreve a negá-los. “Enquanto ele ainda falava às multidões, estavam do lado de fora sua mãe e seus irmãos, procurando falar-lhe. Disse-lhe alguém: Eis que estão ali fora tua mãe e teus irmãos, e procuram falar contigo. Ele, porém, respondeu ao que lhe falava: Quem é minha mãe? e quem são meus irmãos? E, estendendo a mão para os seus discípulos disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Pois qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt.. 12, 47-49; Mc. 3, 31-35; Lc. 8, 19-21). Strauss (Nueva vida de Jesus,c p. 231) considera que a razão pola que a mãe e os irmãos desejam falar com ele era porque a sua família punha em dúvida o seu equilíbrio mental e questionava os seus milagres: “Depois entrou numa casa. E afluiu outra vez a multidão, de tal modo que nem podiam comer. Quando os seus ouviram isso, saíram para o prender; porque diziam: Ele está fora de si. E os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam: Ele está possesso de Belzebu; e: é pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios” (Mc.3, 20.22). Jesus corrige um elogio dirigido à sua mãe em vez de agradecer a gentileza da mulher que lho dedica. “Ora, enquanto ele dizia estas cousas, certa mulher dentre a multidão levantou a voz e lhe disse: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que te amamentaste. Mas ele respondeu: Antes bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus, e a observam” (Lc. 11, 27-28). Quando Jesus tinha doze anos sobe a Jerusalém com os seus pais para assistir à festa da Páscoa, ele ficou em Jerusalém e seus pais retornam sós crendo que o seu filho volveria com a caravana. Quando se dão conta de que não foi com os outros, dão volta e volvem a Jerusalém para encontrá-lo. Sua mãe repreende-o com ternura dizendo-lhe: “Filho, por que procedeste assim para conosco? Eis que teu pai e eu ansiosos te procurávamos. Respondeu-lhes ele: Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu Pai?”(Lc. 2, 49), o qual não deixou de chocar-lhe aos pais. Nas bodas de Canaã, quando sua mãe lhe diz que não têm vinho, responde-lhe: “Mulher, que tenho eu contigo?Jo. 2, 4). Os seus irmãos pagavam-lhe com a falta de confiança nele e nos seus milagres. “Disseram-lhe, então, seus irmãos: Retira-te daqui e vai para a Judéia, para que também os teus discípulos vejam as obras que fazes. Porque ninguém faz coisa alguma em oculto, quando procura ser conhecido. Já que fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo. Pois nem seus irmãos creiam nele” (Jo. 7, 3-5).