Toda comunidade, seja
democrática ou autoritária, rege-se por umas normas jurídicas, quer
legislativas quer consuetudinárias, que constituem o seu estado de direito, e
sem o qual a sociedade não pode funcionar. Este estado de direito existiu em
todas as sociedades anteriores, mas agora alguns querem consubstancializar estado
de direito com a democracia, que, na sua modalidade de democracia liberal, só
começou a implantar-se, como forma de governo, no século XX, e tem um significado
completamente distinto ao de estado de direito. Querer identificá-los é
indicativo dum déficit democrático importante em quem o faz. Os que defendem
esta alternativa teriam que suster que no Império Romano ou na Espanha em
tempos de Carlos V ou de Carlos III não
havia estado de direito.
As
normas sempre são impostas polos que têm o poder e o controlo da sociedade e
estes podem ser elegidos pola cidadania ou podem alçar-se com o poder pola
tradição, por uma sublevação militar, polo carisma dalgum dirigente, etc. O
estado de direito concretiza-se, nos Estados modernos, na constituição e nas
leis, que expressam um sistema de valores que se querem implantar a nível
social. Nos nossos dias, o sistema de valores mais relevante é o que se recolhe
nos pactos e tratados internacionais referentes aos direitos humanos. A
legislação não se restringe à que aprova o parlamento estatal, senão que
compreende também os tratados internacionais que os mandatários dum país
assinaram e assumiram como próprios. Entre os tratados relativos aos direitos
coletivos estão: O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o
Tratado Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, que
formam parte da legislação espanhola e ambos consagram o direito de
autodeterminação dos povos. O desprezo pola legislação internacional e polos
seus representantes por parte dos dirigentes do Estado espanhol foi posto em
evidência pola negativa do governo de Sánchez a libertar de imediato os presos
políticos preventivos como lhe exigiu o Grupo de Trabalho sobre Detenções
Arbitrárias da ONU por considerar que a sua detenção é arbitrária; em vez de
fazer-lhe caso, dedicou-se a insultá-los acusando-os de conflito de interesses
e de ignorância do problema catalão, e incluso se atreveu a pedir a recusação
dalguns dos seus membros. Mas foi desautorizado o dia 6/06/2019, polo Tribunal
Europeu de Direitos Humanos que reconheceu o citado Grupo de Trabalho como um
referente e assumiu os seus critérios como «instância
internacional», à que se pode
recorrer.
A
nível do Estado espanhol a política que se seguiu historicamente polos
unionistas consistiu em impossibilitar a toda custa o exercício dos direitos
coletivos e fomentar a animosidade da cidadania contra os que defendem o
direito de autodeterminação dos povos ou simplesmente uma remodelação do Estado
espanhol em clave federal, atitude que se complementa com a denigração com
grossos qualificativos do independentismo, comparando-o com o golpismo,
nazismo,... animosidade que explica a autocensura e auto-limitação nas suas
propostas de autores como Alfredo Branhas, que rebaixa as pretensões de Galiza
para evitar qualquer suspeita de radicalidade e as correspondentes acusações
dos unionistas. A propagação desta animadversão contra os nacionalistas e
independentistas, que se manifesta em expressões como «a por eles», no flamejar patrioteiro de bandeiras e no clima asfixiante do discurso único
unionista, foi de par com a oposição a qualquer medida que possa entender-se como
uma concessão às legítimas demandas dos povos. O estado espanhol esteve
dominado pola «Santa» Inquisição até 1834 e isso cria caráter, no caso que nos ocupa, em
contra duma política de diálogo e de negociação política dos problemas
políticos. Um inquisidor pode ser laico, mas não por isso é menos inquisidor. A
situação não tem visos de melhorar, senão que tende a empiorar com a entrada na
cena política de atores como C’s e Vox, que identificam o bom espanhol com o
intransigente em temas de política territorial principalmente e em ondear aos
quatro ventos a bandeira da nação espanhola.
O clima
sociopolítico rareou-se tanto que apesar de que o Estado espanhol tem um dos
códigos penais com sanções mais elevadas, consideram que as penas não são
suficientes para afogar o nacionalismo e propõem agora complementá-las com
medidas políticas que os excluam do Congresso dos Deputados para minimizar a
sua capacidade de influência na vida política espanhola. Os «maus espanhóis»,
dizem, não devem decidir nos problemas de Espanha e, entre os «maus espanhóis»,
incluem, naturalmente, os habitantes mais conscientes politicamente dos povos
diferenciados que são os «manipuladores» dos povos malditos. Frente a estes
alçam-se os «bons espanhóis», que se auto-proclamam como constitucionalistas, e
que não são outra cousa que imobilistas a respeito da «Constituição espanhola»
de 1978, concebido como um código fechado que todos devemos venerar.
No juízo ao process catalão, os juízes, em vez de ajuizar uns factos,
inventaram um relato com a suposta finalidade de impor um castigo exemplar que
sirva de escarmento a todos os demais povos do Estado para que ninguém ouse no
futuro pôr em questão a «sagrada unidade da pátria», mas o problema não fica
aqui senão que também se quer enturvar o relato com acusações de golpistas aos
políticos independentistas, além do de rebeldes. O artigo 472 do Código Penal estabelece
que são réus dos delito de rebelião os que se alçarem violenta e publicamente
para declarar a independência duma parte do território nacional. Tem que haver,
por conseguinte intencionalidade de derrubar a ordem estabelecida e violência
apropriada para conseguir o seu fim, e não vale que algum indivíduo ou grupo de
participantes coaja um polícia numa manifestação, como pudo ter passado em
Catalunha. Por outra parte, quem estão acusados de rebelião são os dirigentes
políticos catalães e não os participantes em eventuais algaravias. Imaginemos
que algum indivíduos ou grupo de participantes nos atos do 1O desejasse
derrubar o ordenamento constitucional espanhol, disso não se pode concluir que
os culpáveis são os dirigentes que o único que fizeram foi convidar a votar, se
não existem provas a este respeito. Aliás, em todo governo democrático, o
princípio de mando é ostentado polo presidente, que é o responsável das ações
de governo, mas, neste caso, como o presidente está exilado, carrega-se a
culpabilidade máxima no vice-presidente, utilizado como um bode expiatório.
Como a acusação
de rebelião não se ajusta aos factos do 1O pretende-se magnificar o relato perante
a cidadania com declarações de que esse dia se produziu um golpe de estado, mas
esta figura, além de ser falsa, não está incluída no código penal e como tal
não é sancionável. Segundo a ERA o característico dum golpe de estado é que se
imponha pola força um câmbio de governo, mas como nada disso se acha no
acontecido o 1O, para fazer mais crível esta acusação, o fiscal e a acusação
particular do process dizem que foi um golpe de estado keynesiano, expressão que
deve este nome ao filósofo e jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973). Para Kelsen, uma revolução ou
golpe de estado “dá-se quando a ordem
jurídica duma comunidade é anulada e substituída de forma ilegítima por uma
nova ordem”. Esta anulação ou substituição “é toda modificação, câmbio ou substituição da constituição que não se
produz seguindo o disposto pola constituição em vigor”. Ora bem, se isto é
assim os máximos culpáveis de dar golpes de estado são os que ostentam o poder,
e, por citar um exemplo, o próprio Rajoy e o Tribunal Constitucional o teria
dado quando decidiram invalidar o sistema de estatutos de autonomia que prevêem
que, para que sejam válidos, qualquer modificação tem que ser referendada polo
povo afetado, e isto não se cumpre no estatuto catalão, uma vez modificado polo
Tribunal Constitucional.
Estas
bravatas de golpismo surtem o seu efeito psicológico numa comunidade que foi
traumatizado historicamente polas frequentes intervenções militares para alterar
o normal desenvolvimento do devir político quando não coincidia com o seu modo
de pensar ou com os seus interesses estamentais. A intervenção do exército na
vida pública em 1923, 1936 e 1981 sim que foram autênticos golpes de Estado,
mas que tem que ver com isto fomentar que os cidadãos votem pacificamente,
livremente para decidir o seu futuro como povo?
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