12 nov 2015

Democracia para os nossos dias (III)



Democracia e representação


No dia de hoje, o modelo de democracia vigorante é a representativa, e não a direta, imperante em várias cidades gregas, principalmente Atenas, na época clássica, que praticamente desapareceu da cena política, apesar de ser, teoricamente, a mais apropriada para um momento em que rege a soberania popular, a soberania dos povos, entendendo por povo o conjunto dos cidadãos duma comunidade dada, e não a soberania nacional, a soberania duma enteléquia abstrata ou ser imaginário, somente existente na imaginação. Segundo Rousseau, a democracia direta é a única legítima, porque, como a lei é expressão da vontade geral, no poder legislativo o povo não pode ser representado. “A soberania não pode ser representada, pola mesma razão pola que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa; é a mesma ou é outra; não há termo médio. Os deputados do povo não são nem podem ser os seus representantes, não são mais que os seus mandatários; não podem concluir nada definitivamente. Toda lei não ratificada polo povo em pessoa é nulo; não é uma lei. O povo inglês crê ser livre, e engana-se muito: não o é senão durante a eleição dos membros do parlamento; desde o momento em que estes são elegidos, o povo já é escravo, não é nada” (O Contrato Social, liv. 3, 15). A vontade geral não se identifica com a vontade de todos, senão com o bem e o interesse comum que prevalece sobre o bem dos particulares. “Há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral: esta atende somente ao interesse comum, a outra mira ao interesse privado, e não é mais que uma soma de vontades particulares” (Ibid. I2, 3). Eu não acredito no conceito idealista da vontade geral, independentemente e á margem das vontades particulares, dos interesses e necessidades dos indivíduos reais e concretos, e considero que a ética deve ter como finalidade ocupar-se destas realidades concretas e não de entidades abstratas e irreais. Também me parece idealista e irreal propugnar a existência dum bem comum, á margem da satisfação das necessidades e interesses dos indivíduos concretos e reais, que ninguém foi capaz de definir com precisão, e que foi uma expressão utilizada para justificar as maiores repressões a atrocidades. Tomás de Aquino afirmava que a lei tende ao bem comum, mais isto não foi óbice para que condenasse com a pena de morte a apostasia e justificasse a escravatura como de direito natural enquanto á sua utilidade. Os repressores da Inquisição estavam fomentando o bem comum quando castigavam aos que dissentiam ideologicamente, porque assim se procura a salvação eterna das suas almas. Tão-pouco acredito em que a soberania não pode ser representada, ainda que si considero que não pode ser alienada, porque é um direito fundamental dos povos.



Sim considero que a atuação do povo em pessoa é a mais autêntica e deve ter a preferência sempre que seja possível sobre as atuações por representação. Um dos requisitos incluso da eficácia em qualquer gestão é que se aplique o princípio de subsidiaridade que exige que qualquer assunto deve ser resolvido polos agentes ou pola autoridade mais próximos ao problema, e assim, legislar para a agricultura galega é muito distinto que fazê-lo para a andaluza ou valenciana. Quem melhor conhecem os problemas e necessidades são os que estão em contato com eles e não políticos ou técnicos forâneos, polo menos se acreditamos na igual capacidade dos indivíduos que integram os diversos povos, e não em redentores ou supervalores alheios, que tanto racional como cientificamente não se sustém. Isto implica que as decisões devem tomar-se nas comunidades nas próximas aos próprios cidadãos, sempre que não excedam do âmbito comunitário. 



As razões da implantação da democracia representativa obedece, por uma parte, á magnitude dos povos, que não têm comparação com as muito limitadas cidades gregas, mas também a que fornece um marco mais adequado e mais influenciável para o domínio do sistema oligárquico, hoje implantado nos países ocidentais denominados democráticos, e para o seu anseio de desapoderamento da cidadania, que converte a democracia atual muitas vezes, como no Estado espanhol, numa oligarquia com votos. Uma maneira de evitá-lo é aperfeiçoar a noção de representação, e, pola outra, complementar a democracia representativa, hoje quase exclusiva, com a democracia direta mediante a convocatória de referendos. Os povos pequenos, como o galego, podem ter uma qualidade de democracia mais perfeita porque os representantes estão mais em contato com os representados e com os problemas a que se vem enfrentados. Montesquieu definia “o governo republicano como aquele em que o povo inteiro, ou parte do povo, tem o poder soberanoDo espírito das leis, liv. 2, 1). Segundo Montesquieu, “pertence á natureza da república não possuir mais que um pequeno território, pois sem esta condição não pode subsistir. ... Numa República extensa, o bem comum sacrifica-se ante mil considerações, subordina-se a exceções, depende de acidentes. Numa república pequena, o bem público apalpa-se, conhece-se melhor, está mais perto de cada cidadão, os abusos estão menos protegidos e, por tanto, menos protegidos” (Ibid. Liv. 8, 16). Rousseau considerava que a democracia convém aos países pequenos e pobres, (Ibid. Liv. 3, 8), mas considero que a história não lhe deu a razão no tocantee á pobreza. Nos nossos dias, um país como Luxemburgo, é muito pequeno e rico. 



Dizer um povo pequeno não significa um povo fechado em si mesmo. Devemos ter presente também que vivemos numa sociedade global, que fomenta as intercomunicações e intercâmbios de todas classes entre os países e os cidadãos, e, por tanto, existe a necessidade de apertura á comunidade mundial, se bem isto nunca deve ser motivo de que se diluam as diferenças, as personalidades dos povos diferenciados e os seus sinais de identidade no coletivo global, criando um home informe, cosmopolita, desenraizado sem vida e sem alma, uma cultura de «aeroporto», homogeneizadora dos modos de sentir, pensar, consumir, etc. Um povo somente pode contribuir criativamente ao acervo cultural comum da humanidade desde o seu fato diferencial.   



Mandado representativo e mandado imperativo



O mandado representativo entende-se como um apoderamento político que se caracteriza por ser livre, tanto por parte de quem o dá como do seu destinatário; geral, enquanto que não se precisa o seu alcanço; e não revogável, ou seja, que os que o outorgam não podem deixálo sem efeito. Contrapõe-se ao mandado imperativo, que é um poder outorgado a outro com a finalidade de desenvolver alguma atividade ou gestão, definida, enquanto ao tempo e ao contido, no contrato de apoderamento, sem admitir nenhuma modificação por parte do destinatário, e revogável em qualquer momento. Quando Rousseau diz que os deputados não podem ser mais que os seus comissários ou mandatários, está apelando ao mandado imperativo, que seria o único válido.



A maioria das constituições ocidentais tem proibido o mandado imperativo, e isso indica que os representantes elegidos podem atuar segundo o seu próprio critério e sem ter que respeitar os compromissos adquiridos ou aceitados verbal e/ou programaticamente com os seus eleitores, e sem que estes, por mais burlados que se sintam, podam fazer outra cousa que penalizá-lo não renovando-lhe o mandado nas vindoiras eleições. Um caso bem eloqüente é o do presidente Rajoy que inclusive se ufanava de que não cumpria o seu programa mas si o seu dever, como se a apelação á sua hipotética consciência individual o libertasse de qualquer responsabilidade política. A proibição do mandado imperativo remonta á Revolução Francesa, que na Constituição do ano 1791, estatuiu que “Os representantes eleitos polos departamentos não serão representantes de nenhum departamento em particular, senão da Nação inteira e não se lhes poderá conferir nenhum mandado” (art. 7, Secc. III, Cap. I, Título III). Na Constituição de Cádiz desaparece o mandado imperativo, próprio da sociedade estamental, e estipula-se no seu artigo 27 que as “Cortes são a reunião de todos os Deputados que representam a Nação, nomeados polos cidadãos”, e este mandado representativo renovou-se nas constituições sucessivas, incluída a de 1978. Na Constituição da II República diz-se que “os deputados uma vez eleitos, representam á nação” (Art. 53). Cumpre ter presente que uma cousa é afirmar que os deputados representam a nação ou o povo espanhol, como se diz na CE de 1978, e outra os condicionantes dessa representação, que, de por si, não exclui certa submissão ás demandas cidadãs assumidas polos candidatos, senão somente das que sejam incompatíveis com a representação do todo, enquanto que a proibição expressa do mandado imperativo si que a elimina.



As razões para a defesa do mandado representativo apelam a que a assembléia é o espaço de confrontação de idéias e de construções de consensos, que seria inviável se os representantes tivessem que respeitar compromissos previamente adquiridos sem poder modificá-los. Não sei se noutros países o Parlamento cumpre esta função, mas é claro que no Estado espanhol não é assim. Os consensos não se forjam nos plenos senão nos cenáculos ou escritórios e nos plenos unicamente se expõem as racionalizações do acordado que se querem transmitir á cidadania. Isso poderia aplicar-se ao Parlamento da Segunda República, na que alguns oradores como Ortega chegaram a cambiar o voto dos deputados para evitar uma República federal. Por outra parte, os acordos entre partidos políticos, muitas vezes impresindíveis, poderiam e deveriam ser contemplados nos mesmos programas eleitorais e inclussive prever certa margem de manobra na atuação do representante ou precisando a ratificação dos acordos por parte dos representados.



A proibição do mandado imperativo permitiu-lhe aos deputados assaltar o céu da soberania popular e erigir-se de fato, durante toda a legislatura, nos autênticos soberanos, destronando, desta arte, a soberania popular, que se reduz a selecionar, normalmente cada quatro anos, quem vão ser de fato os novos soberanos. Cria-se assim um corpo intermédio, usurpador da soberania, entre a cidadania e o Estado. As conseqüências não se deixam esperar, e traduzem-se na expressão duma cidadania irada que gritava no 15 M: não nos representam! Não nos representam!, ante a surpresa dos próprios afetados, mas essa é a realidade pura e simples. Um dos efeitos perversos do mandado representativo exempñlifica-se com os freqüentes casos de transfuguismo político, nunca devidos a autênticos câmbios de critério a nível ideológico, senão a puros interesses crematísticos dos afetados. Estamos assistindo a esta altura na Galiza, a um segundo tamaiazo, por parte do deputado provincial lucense Martínez, que, protegido pola proibição de mandado imperativo, se enraivece caprichosamente porque outro partido distinto não o apoiou para presidente da Deputação por estar imputado judicialmente, como se tiver direito algum natural ou divino, a ocupar esse carrego político, e deixando a toda a cidadania provincial numa situação de beco sem saída durante toda a legislatura em que mantém a alíquota parte usurpada de soberania.



Por outra parte, a CE, art. 1, estabelece que a “soberania nacional reside no povo espanhol do que emanam os poderes do Estado”, e todos os deputados que se consideram que não pertencem ao povo espanhol, senão ao vasco, catalão ou galego, vem-se obrigados a representar a soberania dum povo que não é o seu e que nega a sua própria realidade nacional no mesmo ato constitucional. Este é outro câmbio que procederia fazer para deixar claro que a soberania reside nos povos nação do Estado espanhol e não só num deles.



Por outra parte, os estados atuais são estados de partidos, considerados pola mesma CE como “instrumento fundamental para a participação política” (art. 6), que são os que apresentam os candidatos, pagam as campanhas e decidem a ordem nas listas ele, o qual implica que considerem que existe uma certa dependência dos deputados eleitos a respeito do partido, que não deveria ver-se chantageado irracionalmente por parte deles, e os mesmos eleitores podem ver-se burlados por decisões deste tipo. Por outra parte, a proibição do mandado imperativo é dificilmente compatível com o estabelecido na Lei Orgânica 6/2002, de 27/06/2002, de Partidos Políticos que estabelece que é “obrigação dos afiliados a de aceitar e cumprir os acordos validamente adotados polos órgãos do partido”, e esse dever de aceitação implica um mandado imperativo do partido sobre o afiliado eleito. O mandado imperativo véu conservando-se, dum modo rotineiro nas constituições, como um resto arcaico, mas considero que, para proteger a soberania popular, haveria que proceder á sua supressão e a sua substituições por mecanismos, como pode ser a sujeição a um programa comum, a realizar de modo obrigatório, salvo que se aduzam e o povo aprove câmbios excepcionais, que garantam que exista também uma política global de país e não só um cúmulo de interesses particulares.



Na Galiza, Vicente Risco defendia em 1930 que “se admitimos, como é necessário admitir dentro do sistema liberal, que o povo é o depositário da soberania, a relação que há entre ele e os deputados é de mandante a mandatário. Isto não tem volta. Então temos que, sendo todo mandado essencialmente revogável, pois o mandado não pode ter mais duração que o tempo que lhe atribua o mandante, todo mandado eleitoral deveria ser limitado. Por que o que se admite em Direito civil não de há admitir em Direito político” (O problema político de Galiza, VII).  




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