Com a Constituição
de 1978 passou o que tinha que passar; o que é inevitável que passasse quando
se põe em prática uma política que não é assumida com convicção e
responsabilidade. Quando se redigiu a Constituição introduziram-se certos
condicionantes dos poderes fáticos do Estado, que são quem realmente mandam,
que desnaturalizaram o processo. Foram os militares vencedores quem impuseram
as suas decisões em aspectos decisivos como os relacionados com a distribuição
territorial do poder, que se concretizou na modificação do artigo 2 tal como
fora proposto polo relatório, que dizia: “A Constituição fundamenta-se na
unidade de Espanha e na solidariedade entre os seus povos e reconhece o direito
á autonomia das nacionalidades e regiões que a integram”. Esta redação foi
duramente combatida por pressões externas sobre a UCD para que se retirasse o
termo nacionalidades, em contra do critério dos nacionalistas e comunistas.
Finalmente, os poderes fáticos propõem como inegociável a seguinte redação: “A
Constituição fundamenta-se na unidade de Espanha como pátria comum e
indivisível e todos os espanhóis e reconhece o direito á autonomia das
nacionalidades e regiões que integram a indissolúvel unidade da nação espanhola”,
que com ligeiros retoques é a que se vai aprovar, ao tempo que o relatório
elimina toda referência a este termo no título VIII. Por tanto, cumpre ter
presente que uns poderes que não se apresentam ás eleições e que não dão a cara
ante os que têm que decidir, são os que estabelecem as regras de jogo sobre as
que têm que decidir. Por outra parte, que os vencedores imponham as suas
condições é incompatível com a sua apresentação ante os eleitores da farsa da
Constituição da concórdia e da superação das feridas causadas pola guerra civil, porque mantém os ressabios
franquistas de que a guerra se fez principalmente contra os nacionalistas. O
seguinte passo vai ser a desnaturalização do termo nacionalidades, deixando-o
sem nenhum significado preciso e convertido, todo o mais por alguns, numa
espécie de nação cultural sem implicações políticas.
Quando se debateu o
Título VIII, ao tempo que se aceitaram as autonomias, decide-se, no artigo 141,
manter a organização centralista provincial com as deputações ou organismos
equivalentes, que se converteram em autênticos ninhos de corrupção e
clientelismo, que tantos quebramentos está a causar ainda nos nossos tempos.
Mantêm-se, pois, o centralismo da direita e o velho jacobinismo, de procedência
francesa que lhe impede ao PSOE dar passos coerentes na reformulação do Estado.
Uma segunda conclusão é que, além de conservar ressabios franquistas,
incrementados com a restauração dum monarca nomeado por Franco, esta
Constituição é ineficiente, porque encarece enormemente o custo dos serviços
para os cidadãos.
Uma vez terminada a
discussão do Título VIII. Da organização territorial do Estado, o deputado de
Euskadiko Ezquerra Francisco Letamendia Belzunce propôs uma emenda de
introdução dum novo artigo sobre o princípio de autodeterminação dos povos, que
se materializaria a proposta duma quarta parte dos deputados duma Comunidade
Auônoma e o voto favorável da maioria absoluta do censo eleitoral. Esta emenda
somente foi apoiada com os votos a favor do PNV e do próprio Letamendia, votando
em contra os nacionalistas de CiU e os socialistas e comunistas, apesar de que
teoricamente levavam nos seus programas a defesa do direito de autodeterminação
dos povos de Espanha. Dizia, por exemplo, o programa do V Congresso do Partido
Comunista de Espanha do ano 1954: “A unidade do Estado espanhol não será
nunca verdadeiramente sólida e democrática se se assenta sobre a força e a
assimilação violenta, sobre a negação dos direitos nacionais. Por isso, os
comunistas estamos contra a subjugação dumas nações por outra e defendemos o
direito dos povos á livre autodeterminação. Susteremos, pois, o direito dos
povos de Catalunya, Euzkadi e Galicia a decidir livre e democraticamente o seu
destino”.
O relator
constitucional Jordi Solé Tura, do Partido Comunista, reconhece que “o
direito de autodeterminação dos povos é, ao meu parecer, um princípio
democrático indiscutível, pois significa que todo povo submetido contra a sua
vontade a uma dominação exterior ou obrigado a aceitar por métodos não
democráticos um sistema de governo rejeitado pola maioria tem direito á sua
independência e á suas forma de governo que deseje livremente” (Nacionalidades
y nacionalismo en España, Alianza Editorial, Madrid, 1985, p. 141). Mas
confessa abertamente que a esquerda espanhola não nacionalista o entendia como
“um princípio que permitiria derrotar aos independentistas com métodos
democráticos, quer dizer, opondo ás pretensões de separação e independência a
vontade duma maioria democraticamente forjada” (Ibid, p. 147).
Formidável confissão. Reconhece-se um direito mas com a finalidade de derrotar
aos que o propugnam. Esta é também na atualidade o posicionamento de Podemos:
não meneia-lho e se outros o forçam, votar em contra. Outros
opõem-se a este direito pretextando que os textos da ONU nos que se recolhe
somente o reconhecem para contextos coloniais e que esse não seria o caso
espanhol. Ou seja, que se pretende limitar um direito por nascer num
determinado contexto e, por tanto, seria a primeira vez que se restringe um direito
ao contexto que lhe deu origem. Seria o mesmo que limitar o direito á liberdade
individual somente aos casos em que exista escravatura.
Uma vez vigorante a
Constituição, houve vários fatores que contribuíram a incrementar a pressão
centralista. Em primeiro lugar, o afundimento do UCD e a ocupação do seu lugar
político pola neo-franquista e hiper-centralista Alianza Popular, matriz do
atual PP, cinco de cujos membros nem sequer apoiaram a Constituição de 1978 e
três se abstiveram, dum total de 16, apesar de que optara por defender o si no
referendo. Os motivos principais foram a introdução do termo nacionalidades, a
constitucionalização do sistema proporcional, a formulação do sistema econômico
social e a deficiente definição da família.
Em 1982 a UCD e o PSOE
propõem-se reconduzir o processo autonômico e a estes efeito aprovam a LOAPA
(Lei de Harmonização do Processo Autonômico) na que se reconhece a
interferência do poder central na competência legislativa das CCAA e se
estabelece a prevalência das normas ditadas polo Governo central sobre as
normas das CCAA, que foi declarada parcialmente inconstitucional polo Tribunal
Constitucional. Mas a politização crescente deste Tribunal a partir de 1985,
faz que as suas decisões se inclinem cada passo mais polas políticas
re-centralizadoras postas em marcha com persistência polos governos centrais,
convertendo grande parte das competências exclusivas das CCAA em papel molhado,
tendência incrementada pola pertença a UE, que vaziou de contido parte das
competências estatutárias.
O processo
re-centralizador incrementou-se na segunda legislatura do governo de Aznar, e
com a política de recursos de Rajoy ante o Tribunal Constitucional quando
estava na oposição e de espanholização intensa uma vez que o PP recupera o
governo em Galiza em 2009, acede ao governo Fabra em Valência em 2011, Bauzá em
Mallorca em 2011 e o próprio Rajoy também em 2011. Todos eles se caracterizam
por não apoiar medidas normalizadoras, a promoção do bilingüismo como passo
cara ao monolingüismo social, o voluntarismo lingüístico desde uma liberdade
individual fundamentada em séculos de marginação desde o fomento do auto-ódio
cara aos valores próprios, e marginação, e o desmantelamento das línguas
próprias nos meios de comunicação e na escola, e o isolamento da língua do seu
tronco natural: galego-português ou catalão.
Um fito
particularmente relevante foi a sentença do Tribunal Constitucional dada a
conhecer o 28/06/2010 na que invalida um texto previamente proposto polas
formações políticas catalães, aprovado, após a sua domesticação, polas Cortes
Espanholas, e finalmente referendado favoravelmente polo povo de Catalunya. A
essa altura o Tribunal estava anormalmente constituído porque os partidos
turnantes no governo central se negaram a renová-lo, além de ser um Tribunal
muito desacreditado por estar politizado aos serviço do bipartidismo reinante.
Esta sentença foi definida polo catedrático de Direito Constitucional Javier
Pérez Royo como um golpe de estado. “Formalmente a STC 31/2010 é uma sentença
constitucional. Materialmente é um golpe de Estado. Formalmente foi uma
operação de defesa da Constituição. Materialmente foi uma operação de derruba”.
A razão está em que cambia a filosofia que estabeleceu os estatutos de
autonomia, que consistia em que os estatutos não se podem impor nem alterar sem
o consentimento duma Comunidade, e, a partir dessa sentença, si que se pode
fazer.
A altura dos nossos
dias, ante a atitude de resistência das CCAA, especialmente da catalã, frente a
esta assimilação forçada, a reação dos partidos PP-PSOE e do emergente
Ciudadanos e os seus abundantes corifeus tertulianos, foi a de condena dos
dirigentes da Generalitat, tachando-os de radicais, extremistas,
masismoleninistas (González dixit), de estar fora da realidade, únicos
responsáveis da aloucada deriva independentista,... imitando a dialética
utilizada na luta antiterrorista contra ETA. Aqui não há causas que expliquem
os fenômenos, só atoleimados nacionalistas que surgem por geração espontânea
sem causa nenhuma antecedente.
Agora o problema
que se apresenta é: quê fazer? A reforma é difícil porque é obstaculizada
agrestemente polo PP porque com os câmbios introduzidos pola prática
político-judicial destes anos de vigência foi domesticada de tal modo que cumpre
á perfeição os objetivos que partido mais centralista que teve Espanha na sua
história, Alianza Popular, -agora em competência com Ciudadanos e UPyD- demanda
á norma suprema; por outra parte, fez-se com uma série de cláusulas de
intangibilidade, no referente á monarquia, por exemplo, para obstaculizar a sua
reforma; e, por outra parte, estabeleceu-se um bipartidismo por meio do sistema
eleitoral que a faz inviável se algum destes partido se nega e reformá-la, como
vêm fazendo desde faz tempo; ao tempo que a composição do Senado impede a
instauração dum Estado federal. A iniciação dum processo constituinte não está
agora sobre a mesa porque é obstaculizado pola deriva monárquica do PSOE, pola
defesa numantina da monarquia por parte do PP, Ciudadanos e UPyD e o abandono
desta opção por parte de Podemos. Do qual se desprende que continuaremos tendo
um Chefe de Estado sem legitimidade de origem, porque se lhe nega aos espanhóis
o direito a decidir se querem um Chefe de Estado eletivo ou dinástico por
imposição franquista.
Há alguns aspectos
nos que desejaria manifestar o meu desacordo com o Sr. Pérez Royo. Ele afirma
que uma constituição ou um estatuto não podem, contrariamente com o que sucede
com qualquer outra lei, impor-se coativamente, salvo que se precise, que não se
pode impor se queremos ter uma democracia de qualidade, porque creio que o
usual é que haja povos regidos por constituições que se vem impossibilitados de
cambiar. A nivel do Estado espanhol nega-se reiteradamente a resolver o
problema territorial porque, seguindo a Ortega, dizem que é um problema que não
se pode resolver, dando-lhe aos povos o que estes pedem, senão que há que
«conllevarlo», ou seja, há que agüentá-lo como quem tem um vizinho molesto do
que não pode prescindir. Uma solução digna de fazer história na filosofia
política.
Em segundo lugar,
creio que põe demasiado ênfase nas virtualidades da constitucionalização do
problema territorial, porque em todos os Estados federais há uma tendência
também á centralização, por mais que esteja reconhecido o federalismo na
Constituição. O problema não está só na constitucionalização duma solução
federal senão também na existência dum Tribunal Constitucional independente e
constituído em clave federal para que evite a apropriação paulatina dos
competências estatutárias por parte dos partidos pro-espanholistas do governo
central. Finalmente, creio que não se pode dizer que a Constituição espanhola
não existe, ainda que si está em fase cadavérica, mas os políticos, ao igual
que os taumaturgos, podem ressuscitar mortos..
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