Observamos
que nos nossos dias estão proliferando as denúncias contra os que caricaturam
humoristicamente as práticas religiosas católicas, incluso em tempos de
subversão efêmera da ordem social e principalmente de crítica dos privilegiados
da sociedade. A caça começou com Guilherme Zapata, concelheiro de cultura do
concelho de Madrid com Carmena, denunciado em junho de 2015 pola associação
Dignidade e Justiça por uns tuítes de humor negro sobre Irene Vilha e as
raparigas de Alcásser, e foi ampliada a Pablo Soto por um chiste sobre Ruiz
Galhardão. Rita Mestre foi imputada, também em junho de 2015, por um delito de
ofensa aos sentimentos religiosos, por entrar em top less na igreja da
Universidade de Madrid em protesta pola presença duma capela confessional num
centro público estatal. Em abril de 2016 foi imputado, agora chama-se
investigado, o diretor de La Tuerka, Facu Diaz por um possível delito de ódio por um tuíte
humorístico publicado em 2013 no que afirmava que “Queimar igrejas parece-me
uma barbaridade se não há ninguém dentro”. Foi também imputado o edil de EUiA
de Palafolls, João Andrés Ossório, por retuitá-lo. Em março iniciou-se
expediente de investigação, a raiz da apresentação duma denuncia da Associação
de Advogados Cristãos contra Borja Casillas, conhecido como «Drag Sethlas», por uma representação no que se caracterizava
a Virgem Maria e a Cristo crucificado e se acompanhava com canções e
frases como: “queres o meu perdão? Agacha
te e desfruta. Sente-o na tua boca», ajoelha te”. Também em março de 2017 foi imputado o concelheiro de cultura da
Corunha José Manuel Sande, por um delito contra os sentimentos
religiosos um cartel do carnaval obra de Alberto Guitião, no que se representa
um papa, a raiz duma denúncia da Associação de Viúvas de Lugo, que entendem que
a caricatura é do papa Francisco. Em março de 2017 também se deu a conhecer o
falho da sentença contra a transexual Cassandra Vera, julgada de acordo com o
artigo 578 do Código Penal e condena condenada a um ano de cárcere e sete de
inabilitação por ter sido declarada culpável dum delito de humilhação ás
vítimas do terrorismo por 13 tuítes publicados entre novembro de 2013 e janeiro
de 2016 com chistes sobre o delfim do ditador Francisco Franco, que durante 40
anos reprimiu violentamente a todos os que dissentiam do discurso único. A neta
de Carrero Blanco, num gesto que a honra, enviou uma carta a El País na que
manifesta que lhe parece um «disparate» pedir cárcere a uma pessoa por uns
tuítes. Finalmente, em abril de 2017 foi denunciado Wyoming-Dani Mateus, por um
chiste em El intermédio no que dizia que a Cruz do Vale dos Caídos era uma m...
Creio que alguns dos tuítes
não causam precisamente graça alguma, mas o problema não é esse senão se uma
pessoa que faz um chiste desagradável ou não, uma representação lúdica impactante
ou não, ou uma protesta pacífica e legítima num centro religioso, pode ser
considerado um delinquente, independentemente ou não do que diga uma legislação
interessada em qualificar certos atos como ofensa aos sentimentos religiosos ou
como atos de terrorismo. Estas denúncias e condenas produzem-se num contexto
caracterizado por: a) Uma forte repressão das protestas cidadãs ao amparo da
Lei Mordaça e da reforma regressiva do Código Penal, que se promulgaram
precisamente por um governo interessado em silenciar a crítica cidadã e polo
câmbio da normativa da CRTVE para manipular e tergiversar as informações á
cidadania e emudecer o eco social das queixas dos desconformes com a solução
que se lhe deu á crise. b) Uma isenção da Igreja católica de qualquer
contributo para solucionar a crise econômica, que se incrementa á isenção de
impostos que vão cair sobre o lombo dos demais cidadãos. c) Uma legislação educativa
feita a medida do poder clerical para incrementar a presença da religião
confessional nas aulas, que se traduz também num incremento dos ingressos
econômicos para a Instituição eclesial. d) Uma grande disparidade de opiniões
entre a Igreja e os setores majoritários da população sobre os temas referidos
á moral sexual. e) Uma animosidade visceral do sistema de poder vigorante desde
a transição e da mesma Igreja contra o partido político Podemos, por considerar
que atenta contra a perpetuação desse poder. Isto explica que as denúncias
fossem tramitadas por setores conservadores e aderentes dóceis ás diretrizes da
hierarquia católica, ambos os dous com interesses muito coincidentes, pois por
algo Deus sempre foi conservador. Na relação anterior, que não pretende ser exaustiva,
aparecem alguns delitos que se repetem com mais insistência, que são os
referidos á ofensa aos sentimentos religiosos das pessoas.
Os sentimentos religiosos são mui
respeitáveis, mas não só os dos católicos senão também os de praticantes
doutras religiões e os dos ateus, patriotas, cosmopolitas, espanholistas,
nacionalistas periféricos, homossexuais, transexuais, etc. Porém, qualquer
observador imparcial pode comprovar que no Estado espanhol há membros dalguns
grupos que estão efetivamente protegidos pola legislação, enquanto que outros
estão desprotegidos. Nenhum homossexual teria êxito apresentando uma denuncia
por ofensa aos seus sentimentos polos impropérios lançados impunemente polos
bispos e sacerdotes contra ele desde os púlpitos e meios de comunicação contra
a sua identidade sexual. O artigo 34 da CE afirma claramente que ninguém pode
ser discriminado por razão de nascimento, raça, sexo, religião, opinião ou
qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social. Isto na prática não
se cumpre porque os membros de qualquer confissão religiosa estão mais
protegidos que os membros doutros grupos. Um religioso pode mandar para o
inferno publicamente e condenar em qualquer tribuna a homossexualidade e aos
membros do orgulho gay, mas não ao revés. O Código Penal de 2016, no apartado
consagrado aos delitos contra a liberdade de consciência e os sentimentos
religiosos, estabelece no artigo 525 que serão penalizados com multa “os que,
para ofender os sentimentos religiosos dos membros duma confissão religiosa,
façam publicamente, escárnio dos seus dogmas, crenças, ritos ou cerimônias ou
vexem publicamente a quem os professam ou praticam. Igualmente “nas mesmas penas incorrerão os que façam
publicamente escárnio, de palavra ou por escrito, de quem não professam
religião ou crença alguma”. Esta redação representa uma melhora a respeito
da anterior, na qual nada se dizia a respeito da proteção dos que não professam
nenhuma religião, mas é ainda insuficiente, porque não impede que se poda fazer
escárnio das pessoas e grupos que praticam ou defendem a homossexualidade,
sempre que não se faça por não praticar qualquer religião.
O delito contra os sentimentos
religiosos não deixa de ser surpreendente porque os delitos de sentimentos não
se podem medir nem comprovar, e todo delito deveria ter uma definição
operacional para saber quando realmente se produz a sua transgressão. No caso
do roubo está claro que se transgride quando se
demonstra que um se apropria de algo que não lhe pertence e temos provas
disso. Mas a respeito dos sentimentos religiosos temos que fiar-nos de alguém
que diz que está ofendido e sem prova nenhuma. Isto explica que os interessados
em criar problemas a certas pessoas ou grupos acudam a este gênero de
denúncias, que o legislador consente e promove por ativa ou por passiva. Por
esta razão, considero que este delito devia ser eliminado do Código Penal e
qualquer manifestação lúdica e/ou irreverente deve merecer unicamente uma
sanção quando colide com outros direitos humanos, como pode ser o honor, a
intimidade, a boa imagem, integridade das pessoas, etc., mas nunca deve servir
de pretexto para limitar a liberdade de pensamento e expressão. É um resto dum
passado em que a religião era a coluna vertebral do sistema político, mas deixa
de ter sentido quando a religião se converte num assunto de consciência
individual.
Por outra parte, uma
instituição está legitimada para pedir respeito aos seus sentimentos se
respeitou historicamente e respeita os sentimentos dos demais, incluídas as
demais confissões religiosas. Vou citar alguns exemplos da prática católica. O
papa Gregório XVI condenou “o
indiferentismo, quer dizer, aquela perversa opinião que, por engano de homes
malvados, se propagou por todas as partes, de que a eterna salvação da alma
pode conseguir-se com qualquer profissão de fé,... E desta de todo ponto
pestífera fonte do indiferentismo, mana aquela sentença absurda e errônea, ou
mais bem aquele delírio de que a liberdade de consciência há ser afirmada e
reivindicada para cada um” (D 1613).
Duma tacada o papa carrega-se a liberdade de cultos e de consciência, numa
linguagem sumamente afetuosa.
Pio XI qualificou de peste o
laicismo na Encíclica Quas Primas, de
dezembro de 1925. “Peste da nossa idade
dizemos ser o que chamam laicismo com os seus erros e criminais intentos...
Logo, pouco a pouco, foi igualada a religião de Cristo com as falsas religiões
e posta com absoluto indecoro no seu mesmo gênero; foi submetida depois ao
poder civil e deixada quase ao arbítrio dos governantes e magistrados.... E não
faltaram Estados que creram que podiam passar sem Deus, e que a sua religião
consistia na impiedade e no abandono de Deus” (D2197). Como podemos comprovar, este texto rejeita a
aconfessionalidade do Estado e o ateísmo com os grossos qualificativos de peste
criminais. Na Encíclica Divini Illius
Magistri de 1929 condenou o ensino laico porque “as escolas laicas socavam
e transtornam todo fundamento de educação cristã” (D 2219), e proibiu que os
cristãos frequentem as citadas escolas por nenhum motivo.
O mesmo papa condenou na
Encíclica Casti Mirari,de dezembro de
1930, a emancipação da mulher da sua
submissão ao marido, considerando que empanam “o brilho da fidelidade e da castidade nupcial, eles mesmos, como
mestres do erro, facilmente botam por terra a confiada e honesta obediência da mulher
ao marido. E mais audazmente alguns deles charlataneiam que tal obediência é
uma indigna escravidão dum conjugue a respeito do outro; que todos os direitos
são iguais entre os dous” (D. 2247). Este pronunciamento impede qualquer
emancipação real da mulher a respeito do varão e a igualdade de direitos entre
todos os seres humanos. O matrimônio cristão reduz-se a uma união mística que
pretende encobrir a desigualdade real das pessoas concretas. Nos séculos IV e V
foram perseguidos com sanha os maniqueus, «pérfidos» judeus, arianos, macedoninanos,...
O catolicismo forçou a
milhões de pessoas a converter-se em aderentes das suas crenças e condenou a
ser queimados vivos a todos aqueles que não aderissem á fé católica ou que não
demonstrassem que a sua conversão era real e efetiva, e isso ainda que não
compreendessem as crenças que eram forçados a abraçar. Exemplos eloquentes
disto são os judeus conversos ou marranos, os muçulmanos ou mouriscos, os
protestantes, os índios americanos, e tantos e tantos hereges, etc. Acaso lhe
preocuparam alguma vez os sentimentos destes milhões de pessoas a se ver
violentamente forçados a aderir a um credo que era totalmente alheio a sua
cultura e as suas crenças e tradições? Que credibilidade merece agora quando se
sente ofendida nos seus sentimentos por uma representação teatral que por si se
produz num contexto irreverente contra aqueles que ostentam o poder real na
comunidade ou que propalam uma ideologia como a de gênero que dissente da
sensibilidade moral do grupo? Creio que o humor, incluso referido a si mesmo,
pode ser libertador de tensões, especialmente para aqueles que não lhes queda
nenhum outro meio de libertação mais que a mental. Quero manifestar a minha
solidariedade com todos os que possam ver-se afetados por condenas de cárcere,
inabilitação ou multas por ter publicado chistes mais ou menos acertados ou
realizado atos que sejam punidos em base a supostas ofensas de sentimentos.
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