Esmorecimento do
seu republicanismo
Em outubro de 1932, a
Asociación al Servicio de la República, com muita pena e pouca glória anuncia a
sua dissolução por considerar que a República estava já consolidada, e que
tinha conseguido o seu objetivo, ainda que, em realidade, não conseguisse nenhum.
Agora Ortega dedica-se a sentenciar por livre.
Da República, -diz Ortega em dezembro 1933- “de tal modo esperava e
presumia por antecipado o seu descarrilamento, que me adiantei a insinuar a
minha discrepância”1. Não só não creia -afirma- que iam ir
bem as cousas senão que não aceita que os monárquicos julguem as possibilidades
históricas dum regime polo acontecido em dous anos e médio depois da sua
natividade. É grotesco –diz- que intentem fazer isto os monárquicos “defensores
dum regime estrangeiro, que não durante dous anos e médio, senão durante dous
séculos e médio mal traiu a Espanha em desmedro, decadência e envilecimento
lamentáveis e constantes, fazendo-a chegar a esta República num estado tal de
desmoralização e de falta de aptidões por parte de massas e minorias, que ele
foi, em definitiva, a causa destes dous anos e médio pesadelescos”2.
Confessa-se republicano uma vez mais, mas já com certos
matizes, pois manifesta que não admite “que se seja republicano, como
costuma dizer-se, «por princípios». Sempre susteve que em política não há isso
que se chama princípio. Os princípios são para a Geometria”3.
Ratifica ele mesmo a interpretação que vimos oferecendo a respeito da sua
volubilidade intelectual e os seus constantes câmbios de pensamento, que são
precisamente consequência da carência de princípios, muito revelador no caso de
alguém que se considera filósofo. A República –continua- expressa uma realidade
nacional ou não pode viver. A República é sinceridade histórica. “A
República é, queira-se ou não, a sinceridade histórica, e essa é a suprema
força a que pode chegar um povo. Quando este conquistou a sua própria
sinceridade, quando cobra essa radical consciência de si mesmo, nada nem
ninguém se lhe pode pôr enfrente. As Monarquias, em câmbio, facilmente se
convertem em máscaras que um povo se põe a si mesmo, e não lhe deixam ver-se e
sentir-se e ser e, ao melhor baixo, baixo o antifaz afetado duma Corte vão-se
morrendo e apodrecendo por dentro..., temos inescusável obrigação os espanhóis
de fazer a fundo a experiência republicana. E esta experiência é longa como
todo o que possui dimensões históricas”4. Utiliza Ortega neste
texto a palavra sinceridade, mas não precisa o seu significado, que parece que
cumpre tomá-lo no significado normal da palavra, e de ai a contraposição que
faz com máscara, e a identificação com consciência de si mesmo, que constitui o
fundamento da sua identidade nacional, fronte à qual nada se lhe pode pôr em
fronte. Mas Ortega não tira nenhuma consequência desta afirmação em ordem a
buscar uma saída a povos, como o catalão, o basco e o galego, com grande
consciência de si. A seguir, recomenda-lhe aos monárquicos que se estejam
quedos porque os espanhóis temos a inescusável obrigação de fazer a fundo a
experiência republicana. “Como temos, pois, a obrigação de fazer essa grande
experiência, saibam-no, estamos resolvidos a defender a República”5.
Que facilmente as palavras voam com o vento! Pouco tardará em apoiar a maior
atrocidade contra a convivência comum dos espanhóis. Como grande «santão»
intelectual, situa-se para além do bem e do mal e reparte críticas a destro e
sinistro sem proposta nenhuma séria, pois os seus princípios reduzem-se a trivialidades
e formulações vazias. Temos que fazer a experiência republicana -afirma- mas
antes era preciso que as «esquerdas» vomitassem todas as necedades que levavam
dentro, e agora -dezembro 1933- vão fazer o mesmo as direitas, “Ao frenesi
do obreirismo vai suceder a exacerbação do senhoritismo, a praga mais velha e
exclusiva de Espanha”6-, mas ultrapassado isto, Espanha
poderá tomar a via ascendente. Não se reduz a criticar organizações, senão que
também ataca diretamente a políticos concretos. Diz-lhe aos espanhóis que se
querem manter-se na conceição da vida estreita, “interessada, sem altitude e
sem arrestos, sem largura de horizonte diante, sem afã de fortes empresas, sem
clareza de cabeça, tendes que contentar-vos polos séculos dos séculos com
eleger entre dom Marcelino Domingo e o senhor Goicoechea”7.
Em concreto, dos governantes republicanos critica a expulsão dos jesuítas, a descrucifixão das escolas e reformas como a
agrária, já que estas “tinham que ter sido acometidas baixo um signo
inverso, sem desplantes revolucionários, baixo o signo rigoroso da mais alta
seriedade e competência”8. Como vemos, isto delata a esta
altura um pensamento profundamente conservador por parte dum político que
qualificava a direita e a esquerda como imbecilidades. Ataca, como vemos, a
reforma agrária e a eliminação dos crucifixos das escolas, e, por tanto, opõe-se
a uma maior igualdade social e à laicidade do Estado.
A República nasceu com a singeleza, plenitude e
indeliberação com a que se produzem os fenômenos biológicos, não foi traída por
ninguém senão que sobreveu espontaneamente em todos os espanhóis, inclusive nos
monárquicos, que colaboraram ficando parados, “paralisados polo
convencimento de que perdera toda a razão, que a Monarquia não podia
justificar-se ante o tribunal da história”9. Este texto que
acabamos de ler é sumamente injusto com todos os que lutaram pola república, e
quiçá somente pretende justificar-se a si mesmo que em realidade não fez nada e
aproveitou-se sempre do calor da monarquia. Os câmbios históricos não são
produto da geração espontânea nem surgem igual que os biológicos, senão que
surgem porque na dialética de forças em conflito, a tradicional é vencida polas
novas forças emergentes. Os espanhóis -segue- sentiam que a Monarquia estava
exausta como força diretora da nação, que mediante ela não se podia sair a
porvir algum. A República não significa o triunfo da «teoria republicana»,
senão a realidade de Espanha ao nu, o destino com que os espanhóis se toparam,
que, portanto, como com todo destino, têm que aceitá-lo. “A República é o destino
que hoje se abre ante os espanhóis para fazer ou refazer uma nação”10.
Segundo este autor, estamos controladas por um destino do que somos títeres, e,
portanto, desacredita as forças sociopolíticas como motoras dos câmbios
históricos.
Alguns republicanos
-diz em 1933- criticaram a Afonso XIII por entregar o regime que representava,
mas dom Afonso o único que fez foi cumprir com o seu dever. “Pôde
perfeitamente sacar o exército à rua para combater o povo espanhol, e é mui
possível que tiver logrado vencer militarmente a este. Mas essa vitória não era
a solução. Dom Alfonso encontrou-se com que a Monarquia, por umas ou outras
causas, esgotara todas as suas reservas e não podia oferecer aos espanhóis
nenhuma solução. Melhor dito, que só podia oferecer-lhes uma: retirar-se”11.
A carência de
princípios em política deixa expedito o caminho para que o exército intente
qualquer assoada para ocupar o poder e vencer o povo espanhol. E sim que o
logrou. Ao produzir-se o golpe de Estado, Ortega sente-se inseguro e, dado que
o perigo para o filósofo provinha do campo republicano, no que o colheu a
guerra, isto indica que era conhecida a sua desafeição pola República em 1936.
Assina, de mui má ganha, um documento de apoio à República que lhe apresenta
Maria Zambrano, agora de tendência esquerdista12. Os seus filhos
alistaram-se voluntariamente no exército franquista, igual que os de Marañón,
Pérez de Ayala e Eugenio D’Ors. Miguel foi oficial médico e José servira em
Artilharia e começara a organizar a Editorial Revista de Occidente. O
posicionamento de Ortega era também claramente pró-franquista. Como nos
testemuña Gregório Marañón, em carta a Pérez de Ayala, o general Franco, por
meio de Arias Paz, ofereceu-lhe ajuda econômica aos intelectuais expatriados,
por crer “«um dever seu, que não estejam em má situação econômica, porque o
crê um dever do seu Estado. Não oferece nada em compensação duma atitude;
basta-lhe saber que estes espanhóis podem viver com dificuldade». Sei que com
Ortega fez alguma gestão. A fez também
comigo”13.
Em fevereiro de 1938 decide instalar-se em Portugal.
Revela-lhe em março a Prieto Bances que Marañón fez as gestões pertinentes
perante o representante de Salamanca, em alusão à administração franquista, e “Parece,
pois, que não há inconveniente de ordem pública”14. Tem a autorização
do general Franco para viver neste pais.
Em setembro de 1938, Ortega faz umas declarações nas que,
após uma reunião mantida por Hitler com o primeiro ministro britânico Neville
Chamberlain, no que este lhe assegurou que a Grã Bretanha não interviria em
favor de Checoslováquia, amostrou-se partidário duma maior implicação de
Mussolini na guerra espanhola. “Eu espero ainda que trás a nova conversação
entre Chamberlain e Hitler, saia à cena Mussolini com uma intervenção para
ampla pacificação”, ou seja que Ortega esperava e desejava que Mussolini
incrementasse a sua intervenção na guerra civil espanhola. Os seus amigos
Maranhón e Pérez de Ayala seguem eufóricos os êxitos do exército franquista.
Ortega, depois de conhecer a entrada das tropas franquistas em Madrid, põe-lhe,
desde Portimão, um telegrama de alvoroço e felicitação a Gregório Maranhón.
Em 1939 o reitor da Universidade de Madrid comunicou-lhe
ao Ministério de Educação que Ortega quedara cessante por não apresentar-se no
prazo previsto. A reação do Ministério, por meio de José Pemartim, Director
geral de ensino, foi a seguinte: “Seria conveniente que se consiga do Sr.
Ortega e Gasset a petição de excedência por mais dum ano e menos de dez”15.
A sua situação era a de «excedente com soldo»16. Em março de 1940
ascende à «terceira categoria do escalão», e em junho de 1945, à segunda
categoria, com soldo de vinte cinco mil pesetas anuais. Abellán afirma que isto
não implicava necessariamente que cobrasse um salário, e inclusive inclui uma
carta do seu filho José na que diz que o seu último soldo percebido foi em 193617.
Também Julião Marias afirma que não cobrou nunca soldo algum18.
Contudo, tal situação administrativa, unida ao facto de que se jubilasse de
acordo com as subas regulares consignadas na sua folha de serviços, indica que
o lógico é que percebesse tal remuneração. Afirma Gregório Morán que “cobrou
regularmente os seus emolumentos de catedrático, incluídas as subas de rigor, e
que se jubilou com a máxima categoria em 1953, trás reconhecer-lhe o regime
quarenta e dos anos e pico de serviços ao Estado,... Não é que o regime de
Franco lhe tiver concedido uma excedência voluntária, não, singelamente lhe
passava um soldo para que calasse... Até que não consegui consultar o
expediente de dom José Ortega e Gasset, no curioso Arquivo da Direção Geral da
Dívida e Classes Passivas, no que constam os seus cobros regulares desde o 13
de fevereiro de 1941, parecia-me difícil de crer”19. A filha do
filósofo confessou-lhe a Gregório Morán numa entrevista que na data da sua
jubilação Ortega lhe disse: “«A mim também me compraram». Parece que acrescentara:
«Como a todos»”20. Ou seja, que se venderam, polo menos
vários deles, e, ao carecer de princípios tampouco teriam remorsos de
consciência.
Retorno ao monarquismo
O 19/03/1945, ante a iminente derrota das tropas do eixo,
Dom João de Bourbon lança o Manifesto de Lausana, no que pede ao general
Franco que abandone o poder, e se postula ele mesmo para substituí-lo.
Ortega e Gasset considerou até bem entrado 1946, o regime
de Franco como necessário e positivo, mas efêmero, e considera que deve deixar
passo á Monarquia. Ajudou a que triunfasse esta operação monárquica, celebrando
ao efeito diversas reuniões com Gil Robles, com o secretário particular do
conde de Barcelona, Ramón Padilla e com o mesmo D. João de Bourbon, na estrada
de Lisboa a Estoril.
O 28/03/1947, Franco envia às Cortes o projeto de Lei de
Sucessão à Chefia do Estado, que define a Espanha como um reino e atribui a
Franco a faculdade de propor a pessoa que deve suceder-lhe21.
O 7/04/1947, Don João de Bourbon faz público um comunicado no que sinala que o
que se pretende é converter em vitalícia a ditadura pessoal e disfarçar com o
manto da monarquia um regime de puro arbítrio governativo. O referendo seria
celebrado o 7/06/1947, e nele o projeto de lei é aprovado por esmagadora
maioria.
Em outubro de 1947, Prieto e Gil Robles reúnem-se em
Londres com objeto de lograr um acordo de socialistas e monárquicos com objeto
de derrubar a Franco22. O 25/08/1948 tem lugar a entrevista
entre Franco e Don João para tratar da formação de João Carlos, e o 30/08/1948
assina-se o «Acordo de São João de Luz» entre socialistas, representados por
Prieto, e monárquicos, representados polo Conde dos Andes. Este pacto, de 8
pontos, deixa a organização política definitiva de Espanha para uma consulta à
«nação»23, que como sabemos nunca se celebrou. O PSOE, que se
proclama republicano, foi quem mais pôs mais empenho em restabelecer o regime
monárquico, e ainda que esparge aos quatro ventos o seu democratismo, não
duvidou em colaborar com a ditadura de Primo de Rivera e susteve que a
democracia tem que ser traída pola burguesia.
1. «¡Viva la República!», em El
Sol, (03/12/1933), OC, T. 11, p.
526.
2. «¡Viva la República!», em El Sol, (03/12/1933), OC, T. 11, p. 526.
3. «¡Viva la República!», em El
Sol, (03/12/1933), OC, T. 11, p.
527.
4. «¡Viva la
República!», em El Sol, (03/12/1933), OC, T. 11, p. 528.
5. «¡Viva la
República!», em El Sol, (03/12/1933), OC, T. 11, p. 528.
6. «¡Viva la República!», en El Sol, 03/12/1933, OC,
T. 11, p. 530.
7. «¡Viva la República!», en El Sol, 03/12/1933, OC,
T. 11, p. 528.
8. «¡Viva la República!», en El Sol, 03/12/1933, OC,
T. 11, p. 529.
9. «E m nombre de la Nación, claridad», em El
Sol, (09/12/1933), OC, T. 11, p.
533.
10. «E m nombre de la Nación, claridad», em El
Sol, (09/12/1933), OC, T. 11, p. 534.
11. «E m nombre de la Nación, claridad», em El
Sol, (09/12/1933), OC, T. 11, p.539.
12. Outros asinantes eran: Menéndez Pidal, Antonio
Machado, Gregorio Marañán, Teófilo Hernando, Pérez de Ayala, Juan Ramón
Jiménez, Gustavo Pittaluga, Juan de la Encina, Gonzalo R. Lafora, Pío del Río
Hortega, e Antonio Marichalar.
13. Carta de Marañón a Pérez de Ayala, de
29/08/1937, en «El Cultural», (4-10/04/2001), de El Mundo
14. MORÁN, GREGÓRIO, El maestro en el erial, Tusquets,
Barcelona, 1998, p. 74.
15. MORÁN, GREGÓRIO, El maestro en el erial, Tusquets,
Barcelona, 1998, p. 93.
16. MORÁN, GREGÓRIO, El maestro en el erial, Tusquets,
Barcelona, 1998, pp. 92-93 e 485-486..
17. ABELLÁN, JOSÉ LUÍS, Ortega y Gasset y los
orígenes de la transición democrática, p. 197.
18. MORÁN, GREGÓRIO, El maestro en el erial, Tusquets,
Barcelona, 1998, pp. 92-93 M 2, p. 61.
19. MORÁN, GREGÓRIO, El maestro en el erial, Tusquets,
Barcelona, 1998, p. 13..
20. MORÁN,
GREGÓRIO, El maestro en el erial, Tusquets, Barcelona, 1998, p. 14.
21. . En CCV, p. 463, dise
que foi o 31/03/1947. Cf. HIE, T. 10, pp. 230-231.
22. . SUEIRO, DANIEL, e DÍAZ,
NOSTY. Historia del franquismo, Sarpe, Madrid, 1986, T. I, p. 259.
23. SUEIRO, DANIEL, e DÍAZ, NOSTY. Historia
del franquismo, Sarpe, Madrid, 1986, T. I, p. 260..
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