Em contraposição com os direitos
individuais, entendidos como direitos formais, que lograram abrir-se passo com
muita mais facilidade, os direitos coletivos topam muita resistência por parte
dos Estados que, amparando-se num suposto perigo de instabilidade política,
pretendem homogeneizar os diversos povos que convivem num Estado e submetê-los
aos ditados dum poder político interessado em preservar os interesses de classe
dos que dominam os aparatos do Estado. Na Espanha este conflito foi e segue a
ser especialmente virulento; podemos constatar que os partidos de obediência
estatal, especialmente os da direita, se negam simplesmente a aceitar que os
povos galego, basco e catalão tenham direitos como tais povos e sentem
urticária quando se fala do seu direito de autodeterminação. Ao máximo que chegam
é a conceder-lhe algumas migalhas em contrapartidas de apoios políticos, mas sem
reconhecer nunca a sua personalidade própria. A política espanhola, tanto interior
como exterior, vertebra-se na oposição ao direito dos povos a decidir o seu
futuro.
A lei do referendo de Catalunya, que
pretendem celebrar o 1/10/2017, justifica a sua celebração no Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos das Nações Unidas do 16/12/1966, ratificado por Espanha no ano
1977, publicado no BOE o 30/04/1977, que no seu artigo 2 determina que “Todos os povos têm direito de livre
determinação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição
política e provêm assim mesmo ao seu desenvolvimento econômico, social e
cultural”. Não acode a outros documentos importantes nos que também se defende
este direito porque ainda são duma grande força moral, carecem de virtualidade jurídica
por não ter sido assumidos por nenhuma organismo público internacional. Entre estes
documentos estão a Declaração dos Direitos dos Povos promulgada em Argélia o
4/07/1976, que proclama o direito de autodeterminação no seu artigo 5 que reza:
“Todo povo tem o direito imprescritível e inalienável à
autodeterminação. Ele determina o seu status político com toda liberdade e sem
nenhuma ingerência exterior”; e finalmente, também a Declaração dos Direitos dos Povos aprovada pola Conferência das
Nações sem Estado, em Barcelona, em maio de 1990, artigo 6: “Todo povo tem o direito de se auto-determinar
de forma independente e soberana”. Do qual se deduz que o direito de
autodeterminação ou direito de decisão é uma reivindicação constante dos povos
não só do Estado espanhol senão de todo o mundo. Dado que ninguém é capaz de
negar que Catalunya seja um povo, é lógico afirmar que tem direito de
autodeterminação. Alguns pretextam que o direito de autodeterminação não se
aplica a Catalunya senão que surgiu num contexto colonial, mas nunca se pode
restringir a aplicação dum direito ao contexto determinado no que surgiu.
Também o direito ao voto da mulher surge num contexto determinado e ninguém se
atreve a limitá-lo a esse contexto.
Qualquer tratado internacional para
que tenha força de lei num Estado soberano tem que ser ratificado por este e
publicado oficialmente, condições que cumpre no caso do Tratado Internacional
dos Direitos Civis e Políticos, pois, como se diz no Preâmbulo da Lei de
Referendo, o artigo 96 da CE estabelece que “os tratados internacionais validamente celebrados, uma vez publicados
oficialmente em Espanha, formarão parte do ordenamento interno”. Também
aduz a citada lei, a título interpretativo, o artigo 10.2.- que determina que “as normas relativas aos direitos
fundamentais e às liberdades que a Constituição reconhece, interpretar-se-ão de
conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e os tratados e
acordos internacionais sobre as mesmas matérias ratificados por Espanha”,
mas esta alegação tem o inconveniente de que o direito de autodeterminação não
está reconhecido pola CE.
A Corte Internacional de Justiça emitiu,
numa sentença emitida o 22/07/2010, à propósito da independência unilateral de
Kosovo, um pronunciamento importante especialmente para países como Espanha que
têm povos que aspiram a reformular as suas relações com o Estado central. Esta
foi a razão pola que o Estado espanhol defendeu que a independência de Kosovo
vulnerava a legalidade internacional, pois o objetivo da sua política exterior
foi sempre sufocar qualquer pronunciamento que possa favorecer as aspirações
dos bascos, catalães e galegos. A Corte tratou a questão de se o direito
internacional proíbe a um território declarar unilateralmente a independência e
não se o direito internacional lhe confere o direito de declarar
unilateralmente a independência, que são questões distintas. É evidente que se
o direito internacional não lhe proíbe a uma entidade dum Estado poder declarar
a independência dum jeito unilateral, com muita mais razão não lhe proíbe poder
referendar a opinião da cidadania sobre o futuro que desejam para o país e
também implica que essa declaração é conforme com o direito internacional. Segundo
a mencionada Corte, nos séculos XVIII, XIX e começos do XX “a prática dos Estados não sugere em
nenhum caso que o facto de promulgar a declaração se considerara contrário ao
direito internacional”(79). Na segunda
metade do século XX, o direito internacional em matéria de livre determinação
evoluiu até dar lugar a um direito à independência dos povos dos territórios
não autônomos e dos povos submetidos à subjugação, dominação e exploração
estrangeiras. Se esta é a prática dos Estados nos períodos indicados, já
podemos concluir que a essa altura os Estados eram mais tolerantes que nos
nossos dias, em que tampouco se pode comparar a atitude do Canadá e Reino Unido
com o que acontece no Estado espanhol. Com todo, segundo a CIJ, o problema duma
parte da população que quer separar-se dum Estado é mais debatido, mas tampouco
este é propriamente o caso catalão que não é o caso simplesmente duma parte da
população senão dum povo com personalidade histórica de seu ao que se lhe
cerceou o seu autogoverno nos despachos. A Corte inclina-se a
pensar que não existe nenhuma proibição a declarar unilateralmente a
independência dum país. “Em opinião da Corte, o caráter excepcional
das resoluções antes mencionadas parece confirmar que não cabe inferir nenhuma
proibição geral das declarações unilaterais de independência da prática do
Conselho de Segurança” (81). A respeito da independência
de Kosovo a Corte opina que não se vulnerou a legalidade internacional. “Polos motivos expostos, a Corte considera
que o direito internacional geral não contém nenhuma proibição das declarações
de independência aplicável e chega, portanto, à conclusão de que a declaração
de independência de 17/02/2008 não vulnerou o direito internacional geral”
(84).
Em
resumidas contas, no Tratado de Direitos Civis e Políticos da ONU estabelece-se
o direito de autodeterminação dos povos como um direito coletivo fundamental,
tratado que foi ratificado e publicado polo Estado espanhol, passando a formar
parte da sua legislação. Em segundo lugar, na legislação internacional não há
nada que proíba declarar unilateralmente a independência, e, em consequência,
tampouco há nada que impeça consultar a cidadania se quer que o seu país seja
independente. O que vai contra o espírito da legislação internacional é não
dar-lhe a um povo outra saída que a sua submissão e a sua auto-imolação. Mas,
os partidos espanholistas declaram reiteradamente que a celebração dum
referendo de autodeterminação é ilegal fazê-lo. Mas esta parece uma desculpa da
mal pagador porque, em primeiro lugar, ainda que a CE não contempla que se
possa celebrar um referendo de autodeterminação, tampouco o proíbe. Aliás, de
ter vontade política, sempre se poderia aprovar pola via de urgência uma
reforma da Lei Orgânica de referendo que possibilitasse que se celebrasse uma
consulta negociada com todas as garantias ao povo catalão para que expressasse
qual quer que seja a sua relação com o Estado espanhol. Isto é o que está em
questão no referendo do 1/10/2017 e não a declaração de independência, se bem
poderia dar-se o caso de que a população se incline por esta opção. É certo que
o artigo 2 da CE não permite que a soberania de povo espanhol se divida, mas este
foi imposto polos poderes fáticos durante o tramite da elaboração da CE e já
faz bem tempo que deveria ter sido eliminado dela. Aliás, cumpre ter presente
um princípio mínimo democrático que é que as leis têm que adaptar-se à
realidade social e não a realidade social às leis. Os povos não estão para ser
sacrificados no altar de nenhuma constituição.
Além
de legal, qualquer decisão política deve ser também legítima, e isto implica que
se têm que cumprir determinados requisitos para efetivá-la. Segundo a Corte
Internacional de Justiça esses requisitos são: que não se recorra à força; que
se tivessem esgotado antes todas as vias possíveis para um acordo negociado;
que se demonstre mediante um procedimento democrático que a maioria da
população comparte estes objetivos. O processo catalão foi sempre pacífico;
está claramente demonstrado que o executivo espanhol se nega obstinadamente a entabular
qualquer negociação que possa conduzir a uma resolução do conflito, que passa naturalmente
pola possibilidade de que a cidadania de Catalunya possa manifestar livremente
a sua vontade num referendo no que todos os cidadão de Catalunya possam votar. Alguns pretextam que é um referendo sem
garantias porque não se estabelece uma percentagem mínima de participação, mas,
se esta é a objeção, então haveria que declarar carentes de garantias todas as
votações realizadas no Estado espanhol no período democrático, o mesmo Estatuto
de Autonomia de Galiza seria ilegítimo porque a participação foi somente dum
vinte e pico por cento.
A única alternativa
que contempla o Governo espanhol é parar como seja o pronunciamento democrático
do povo de Catalunya, evitando que o referendo se celebre. Cospedal ameaça com
o intervenção do exército; outras possibilidades são o recurso do artigo 155 de
CE para deixar em suspenso a autonomia de Catalunya ou recorrer à lei de
segurança nacional, que parece que se quer utilizar para garantir a segurança
da soberania única e indivisível da nação espanhola. O que já está a pleno
rendimento é a utilização do TC como instrumento do poder executivo para sancionar
e/ou inabilitar a todo aquele que participe na realização de qualquer consulta,
sob o pretexto de mantimento do estado de direito. Em última instância, só
medidas de força e nenhuma solução, apesar de que a resolução 2625 das Nações
Unidas prescreve que “Todo Estado tem o
dever de se abster de recorrer a qualquer medida de força que prive do seu
direito à livre determinação e à liberdade e à independência aos povos aludidos
no princípio da igualdade de direitos e da livre determinação”. Isto também
é estado de direito.
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