Não
saber mais do que convém
Faz
uns dias topei-me polas ruas da velha Compostela um ilustre teólogo que me
perguntou que fazia. Respondi-lhe que terminara um novo livro também sobre o
cristianismo. Perguntou-me o título e disse-lhe que não ia gostar; que se vai
titular O cristianismo contra a razão. A sua reação foi de visceral
oposição, porque dizia, o cristianismo nunca combateu a razão e não se pode
desqualificar desta maneira uma instituição. Retruquei-lhe que o cristianismo
proibira incluso ler a Bíblia, ao que, ante a minha surpresa, manifesta que a
Igreja nunca proibiu a sua leitura. Quedei em mandar-lhe um artigo no que se
demonstra que assim é, e como penso que também lhe pode ser de utilidade a
outras pessoas, decidi publicá-lo para que se conheça outra história da sem razão,
repressão e obscurantismo cristão.
A
Igreja exerceu historicamente uma espécie de sequestro da Bíblia, no sentido da
sua apropriação e retenção ilegítima, em benefício próprio para impor a toda a
sociedade uma interpretação única e ao mesmo tempo exercer um monopólio na direção
espiritual das consciências, baseado na ignorância da mensagem bíblica polos fiéis.
Com esta finalidade, a partir do século 11, proibiu reiterada e
persistentemente que os cristãos lessem, traduzissem e pusessem a Bíblia a disposição
dos demais, incluído o Antigo Testamento, livro base da religião judia,
irrogando-se também o monopólio da sua interpretação fidedigna. Polo que eu
conheço, foi um caso único na história que uma religião se atrevesse a coartar
a liberdade de leitura do seu livro sagrado aos mesmos fiéis aos que,
teoricamente, ia dirigido por Deus. A proibição da leitura pode realizar-se
direta ou indiretamente. No primeiro caso emite-se uma norma em que se
contemple essa proscrição, e no segundo tomam-se as medidas precisas para que
os fiéis não tenham acesso a traduções que eles possam entender, permitindo,
por exemplo, só as edições em latim e proibindo que se façam nas línguas vernáculas..
A
proibição de ler a Bíblia começa já no século IX, quando Nicolau I arremete
contra os que se amostram interessados na leitura da Bíblia e reafirma a proibição
do seu uso público. Será, contudo, a
partir do século XI quando se acentua a proibição, num momento em que os papas
intentam estabelecer uma teocracia nos países desmembrados do Império romano de
Ocidente, propósito iniciado por Gregório VII (1073-1085), o grande
uniformizador da liturgia na Igreja que impôs o ritual gregoriano a toda a
humanidade, empobrecendo enormemente a espiritualidade cristã, convertida em
mero ritualismo vácuo. O papa considerava que tinha autoridade suprema sobre
todos os cristãos e que ninguém, salvo Deus, podia julgá-lo, enquanto que ele
podia julgar e depor o imperador e os reis se não atuavam dum jeito cristão. O
duque de Boêmia solicitou do papa Gregório VII permissão para publicar
as Sagradas Escrituras em eslavo, mas o papa exortou, em 1080, o citado Duque
de que não permitisse a publicação das Escrituras na língua do país1.
No
ano 1184 o papa Lúcio III fundou, pola bula Ad Abolendas, a «Santa Inquisição», a inquisição
medieval episcopal no Languedoc, sul da França, com o objetivo de combater a
heresia dos cátaros e albigenses. Com esta finalidade, a Igreja decreta o monopólio
da prédica, reservando para a instituição eclesial «ortodoxa» toda comunicação
com os fiéis, anulando de raiz qualquer liberdade de pensamento e expressão.
Esta proibição afetou aos cátaros, patarinos, pobres de Lyon, passaginos,
josefinos e arnaldistas. “Mas visto que alguns de entre eles, sob a máscara
de piedade, mas pervertendo o seu significado, como diz o Apóstolo, reivindicam
para si a autoridade de pregar, esquecendo o que diz este mesmo Apóstolo: «como
pregarão se não são enviados?», (condenamos) a todos aqueles que, bem impedidos,
bem não enviados, presumissem pregar quer seja em público quer em privado, sem
ter recebido autorização do bispo do lugar... Determinamos que fiquem sujeitos à
mesma sentença todos os seus encobridores e defensores e todos aqueles que
prestassem alguma ajuda ou favor aos mencionados hereges com o fim de fomentar
neles a depravação da heresia, bem a aqueles (que chamam) consolados ou
crentes, ou perfeitos, ou com qualquer dos nomes supersticiosos com que sejam
denominados”2.
O
papa Inocência III, na bula De contemptu mundi, expõe a sua conceição
teocrática do poder como uma república cristão presidida polo papa, assistido
polo imperador, os reis e os príncipes. “Dizia-se plenipotenciário de «Quem
da os reinos a quem lhe parece».E por quem os vai dar e recobrar se não é pola
do papa? O papa «está por cima de todos os príncipes, posto que é ele quem há
julgá-los». E mais ainda: «Nós instituímos príncipes de toda a Terra»”3. Natural de Agnani e sobrinho do papa
nepotista Clemente III (1187-1191), acedeu ao papado quanto só tinha 29 anos de
idade e levado polo seu zelo fanático religioso promoveu a IV Cruzada que tinha
como finalidade a conquista de territórios egípcios, mas que posteriormente foi
desviada contra os cristãos orientais de Constantinopla, provocando nesta
cidade uma massacre nesta cidade. Mas ainda mais sanguinária seria a cruzada
que organizou contra os cátaros, em território francês, que produziu um autêntico
banho de sangue nas cidades de Béziers, Carcassone, Minerve. A consigna era
matar ao maior número de cátaros possível. O catarismo, uma doutrina próxima ao
maniqueísmo, condenava o mundo material por considerar que era obra demoníaca,
praticavam o ascetismo e defendiam a castidade e o vegetarianismo. Foi
condenada nos concílios ecumênicos III e IV de Letrão dos anos 1179 e 1215.
O
12/07/1199, Inocêncio III (1198-1216) dirige-lhe a Epístola «Cum ex
iniuncto» aos cristãos de Metz, França, na que lhe diz ter sido informado
polo bispo de Metz, “que tanto na diocese como na cidade de Metz uma
quantidade não pequena de laicos e mulheres, movidos por certo desejo das
Escrituras, fez traduzir para si os Evangelhos, as Epístolas de Paulo, o Saltério,
os livros Morais, Jó e muitos outros livros, a uma tradução feita com boa
vontade, mais prudentemente? pretendendo que os laicos e mulheres presumam
eructar tales cousas entre si e pregar-se mutuamente; quem também desprezam a
relação com aqueles, que não se misturam com eles e semelhantes e consideram
alheios os que não prestam ouvidos e sentimentos aos (seus) iguais, aos que
quando algum dos sacerdotes da paróquia quiseram corrigi-los sobre estas
cousas, eles se lhes resistiram, pretendendo aduzir razões das Escrituras, que
segundo estes não deveram nunca ser proibidas. Alguns deles molestam a
simplicidade dos seus sacerdotes; e quando se propõe por eles a palavra de
salvação, murmuram ocultamente que dominam melhor os seus livros e podem falar
mais prudentemente. Embora o desejo de entender as Escrituras divinas e segundo
elas incitar ao estudo não se deve repreender, senão mais bem encomendar, porém
nisso aparecem que com pretexto de argüir, celebram os seus conventículos,
usurpam para si o oficio da predicação, eludem a simplicidade dos sacerdotes e
desprezam a convivência de aqueles que não aderem a tales cousas.... Mas os
sacramentos de fé não se devem expor a todos indistintamente, dado que não
podem ser entendidos por todos indistintamente, senão só a aqueles que podem
concebê-los fielmente.... Tanta é a profundidade da Escritura divina, que não
somente os simples e iletrados, senão inclusive os prudentes e doutos não se
bastam plenamente para investigar a inteligência da mesma.... Polo qual diz o
Apóstolo: «Não saber mais do que convém saber, senão saber com sobriedade» (Rom
12, 3). Como existem muitos membros do corpo, porém não todos os membros têm o
mesmo ato, assim há muitas ordens na Igreja, mas não todas têm o mesmo ofício,
porque segundo o Apóstolo «uns deu-lhes aos apóstolos, outros aos profetas,
outros não obstante aos doutores, etc. (Ef. 4, 11). Como a ordem dos doutores é
quase a principal na Igreja, não deve qualquer usurpar para si indiferentemente
o oficio da predicação”4. Este texto transluz que, a esta altura, polo menos na diocese de Metz
estava proibido ler as Escrituras, que era mal visto polos que queriam lê-las.
O fundamento da proibição, apoiado polo Papa, é a pretensão dos clérigos de ter
um couto reservado para si no que não se metam intrusos, especialmente aqueles
que os podem deixar em ridículo. Denota também a sua ignorância, por ver-se
acurralados ante os seus contraditores e receiam perder o oficio da predicação.
O clérigo deve ser o profissional do culto e os demais não devem imiscuir-se no
seu terreno, consistindo a solução que propõe o papa Inocêncio III, a ignorância
e consequentemente que não convém traduzir a Bíblia porque isso pode desacreditá-los
e, por conseguinte, o melhor é que esteja em latim, para que os fiéis não a
entendam. Isto também explica porque a Igreja oficiou a Missa em latim e de
costas ao povo até 1965. Não vi texto semelhante no que um Papa nada menos,
neste caso, promotor de cruzadas, se atreva a aconselhar saber pouco, nesta
ocasião sob o pretexto de que as Escrituras são difíceis de compreender, e,
portanto, para aforrar-lhe trabalho à gente, se lhe proíbe lê-las. Chegamos à
situação paradoxal de que uns livros inspirados por Deus, é de supor que não só
para os hierarcas, senão para toda a gente, os seus destinatários não podem lê-los
e deve reduzir o seu rol a escutar o seu sentido tamisadas pola mediação
clerical.
Presunção
de culpabilidade e controlo das consciências
Federico
II Hohenstaufen (1220-1250) estava muito interessado em terminar com a heresia
nos seus domínios por entender que a presença de hereges podia atrair sobre ele
a ira divina, e, para lograr este objetivo, não lhe foi difícil chegar a um
acordo com Gregório IX. No 1231 este papa criou, pola bula Excomunicamus,
a Inquisição papal controlada polo bispo de Roma, que, portanto, passa a ser
inquisição pontifícia ou papal, e executada polas ordens mendicantes,
principalmente os dominicanos. No ano
1232, pola bula Ile Humani Generis, criou o tribunal da Inquisição
destinado a castigar exemplarmente aos dissidentes ideológicos. As penas aplicadas
terão como objetivo atormentar os hereges e destruir as suas fontes de
ingressos por meio da confiscação. Além da repressão da heresia também vão
combater todas as formas de saber. Em 1249 implantou-se a inquisição no reino
de Aragon, sendo a primeira de caráter estatal. Ao mesmo tempo a Igreja romana
alenta o enfrentamento com os demais cristãos, com os judeus e com os muçulmanos
promovendo e alentando as Guerras das Cruzadas.
A
Igreja destruiu qualquer proteção ou garantia para poder desfrutar dum juízo
justo, pois o acusado, em vez de gozar da presunção de inocência salvo que
outros demonstrem a sua culpabilidade, é considerado culpável salvo que seja
capaz de demonstrar a sua inocência. Ao mesmo tempo, promulgou-se um edito de fé
que obrigava a todos os habitantes duma região a denunciar a todos os
suspeitosos de heresia e os seus cúmplices, incluídos os familiares. O
testemunho de duas testemunhas era considerado prova de culpabilidade. A sua
declaração não era pública e o seu testemunho era secreto, pois tanto o delator
como as testemunhas permaneciam desconhecidos. Em caso de não reconhecer a
culpabilidade começavam as promessas, ameaças, cárcere e torturas. Deste modo,
a Igreja criou todas as condições necessárias para que as pessoas solvessem as
rixas e desavenças familiares e vizinhais delatando aos que consideravam seus
inimigos ao tribunal da inquisição. Deste jeito criaram-se as condições para o
desencadeamento do terror entre a população, porque ninguém se sente seguro.
Por outra parte, os inquisidores dotavam-se duma couraça de insensibilidade do
seu atroz proceder porque consideravam que a sua atuação estava guiada polo
zelo da causa divina e pola salvação da alma dos hereges, valor muito superior
tormentos corporais a que eram submetidos.
No
Sínodo de Toulouse, celebrado em novembro de 1229, sendo papa Gregório
IX, num momento agudo de perseguição contra os cátaros, obrigou-se aos
arcebispos, bispos e sacerdotes a que buscassem hereges e os castigassem. Estes
deviam levar como distintivo uma cruz no lado direito e outra no esquerdo e não
podiam aceder a serviços litúrgicos até receber o certificado de pureza do Papa
ou o seu legado. Portanto, os famosos sambenitos com os que se humilhou
publicamente o povo judeu durante a época nazi, tiveram uma famosa maternidade,
que não é outra que a Santa Igreja católica, igual que o medo, o terror, o
racismo e a destruição de qualquer ética. Os homes, a partir dos doze anos, e as
mulheres, a partir dos catorze, deviam negar toda relação com a heresia e
demonstrar a sua inocência. No Cânon 14 deste concílio, estatui-se: “Proibimos
também que se lhe permita aos laicos ter os livros do Velho ou do Novo
Testamento, salvo um saltério ou um breviário e as horas da Virgem; e incluso não
se lhes permite ter estes dous últimos livros traduzidos em língua vernácula.
Cumpre que esta proibição esteja fundada no abuso que se fazia dos livros
sagrados traduzidos a língua vernácula nestas províncias nas que havia um
grande número de hereges que se dedicavam a dogmatizar e a explicar a sagrada
Escritura à sua maneira”5. Ou seja, que se lhe permite, em casos excepcionais, ter algum livro de
devoção, mas só em latim, língua reservada a mui poucos e nada de Sagradas
Escrituras. O objetivo, como vemos, é o controlo total das consciências por
parte da Igreja, que se auto-proclamam como as únicas intérpretes fiéis dos
livros sagrados. Tal era o poder da instituição eclesial a esta altura que os
que ousassem dissentir do seu critério ficavam convertidos em párias sociais. “Os
que são suspeitosos de heresia não exercerão a função de médico e não podem
acercar-se aos doentes até depois de que tenham recebido o viático... Proibição aos bispos e aos barões de dar os
cargos que dependem deles aos hereges, e de ter como domésticos ou conselheiros
pessoas suspeitosas de heresia”6. A irresponsabilidade destas normas é clara,
pois se um médico não pode acercar-se ao doente até que este tenha recebido o
viático, a sua morte pode ser fruto dessa demora na recepção do tratamento.
No
ano 1233 o imperador do Sacro Império Romano Germânico, Federico II Federico II
de Hohenstaufen decretou que qualquer que seja condenado por heresia em todo o
império, seja queimado vivo, e pede-lhe ao papa que colabore com ele para que a
loucura herética seja eliminada com as suas espadas. Como é natural, neste
casos, o papa não pode negar-se a colaborar numa empresa que a ambos beneficia.
O
Concilio de Tarragona, de 1234, estatuiu no seu segundo Cânon que: “Ninguém
pode ter os livros do Velho e Novo Testamento na língua romance, e se alguém os
possui tem que voltá-los ao local episcopal dentro de oito dias após a publicação
deste decreto, de tal modo que possam ser queimados, seja um clérigo ou um
laico, é suspeitoso até que fique limpo de toda suspeita”7. A Igreja estabeleceu, como vemos, métodos
expeditivos para evitar que se lesse o seu livro «sagrado», com a finalidade de
manter, desta maneira, os fiéis na ignorância da sua religião, salvo a mensagem
convenientemente filtrada pola hierarquia.
O
cânon 36 do Concílio de Béziers de 1246 diz: “Procurai completamente,
segundo todo o que souberdes que é justo e legal, a que os livros teológicos não
sejam possuídos, incluso em latim, polos laicos, nem em língua vernácula polos
clérigos”8.
1. GREGORIO VII,
"Epist.", VII, XI.
2. Lúcio III, Ad abolendam.
3. DOMINIQUE, PIERRE, La inquisición,
Luis de Caralt, Barcelona, 1973, p. 21.
4. Inocêncio III, Cum ex iniuncto, im PL 214, 696, Regestorum, Lib.
II, Ep. 141. Cf. DENZINGER, Enchiridiom Simbolorum, Herder,
Barcelona, 1960, 770-771.
5. PELTIER, L’ABÉ, Dictionaire des conciles, tom. 2, Ateliers catholiques du
petir Montroure, Paris, 1847, Concílio de Toulouse, cânon 14, p. 1017.
6. Ibidem, Cóncílio de Toulouse, cânones 15 e 17, pp. 1017-1018.
7. LORTSCH, D, Historie de la Bible
en France, 1910, p.14. Cf. The 1913 Catholic Encyclopedia, art. the Scripture. Bible
possession once banned by the Catholic
Church!.www.aloha.net/~mikesch/banned.him
8. [Catholique] Historique de l'interdiction de la Bible : Catholique
...www.forum-religion.org › Religion du Christianisme › Catholique
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