Inferioridade e submissão da mulher
Uma
das ideias mais recorrentes do Novo Testamento é a do submissão da mulher ao
homem, a qual, depois de enorme insistência e repressão, terminou por ser
interiorizada tanto polos varões, convertidos em repressores, como pola mulher,
que viu anulada a sua personalidade. São Paulo quer que as mulheres de Corinto
evitem assistir sem véu à igreja, que ele considera um abuso que se opõe às
tradições ou ensinança catequética que ele lhes transmitiu. Aproveita esta
prática para deixar bem assentada a inferioridade da mulher com respeito ao
varão que ele fundamenta em considerações místicas, à margem de qualquer
fundamentação racional e, com esta finalidade, elabora um sistema piramidal,
para dar uma forma mais claramente misógina ao relato do Gênesis incorporando a
ele a Cristo, na que os elos de major a menor perfeição e hierarquia são:
Deus-Cristo-homem-mulher. “Quero porém,
que saibais que Cristo é a cabeça de todo homem, o homem a cabeça da mulher, e
Deus a cabeça de Cristo” (I Cor.
11, 3). Esta hierarquização, com a conseguinte subordinação e dependência da
mulher, obedece, pois, a desígnios divinos e, portanto, não se pode quebrantar,
como sucederia se o homem assistisse à igreja com a cabeça coberta e a mulher
com ela descoberta, pois, neste caso, a mulher ousaria fazer-se igual ao varão,
o qual é totalmente inadmissível, para Paulo. Nesta mística paulina, totalmente
gratuita e infundada, a mulher fica descabeçada, sem pensamento próprio,
reduzida a uma cabeça de «chorlito», que somente pode pensar pola mente do
varão.
A
seguir realiza o apostolo Paulo toda uma série de afirmações para apoiar as
suas teses, carentes do mais mínimo rigor, a respeito da desonra da sua cabeça,
pois o que desonra não são as vestes, mas a atitude perante a divindade ou
perante os outros seres humanos e todo o demais são convenções sociais criadas
polos que dominam para distinguir-se dos demais e sacralizar o seu sistema de
dominação sobre eles, labor que, neste caso, é realizada polos relatos bíblicos
do Gênesis, que agora adquirem em Paulo uma nova ratificação. O apóstolo
considera que se o homem se cobre e a mulher se descobre não mostrariam o plano
hierárquico de dominação estabelecido por Deus que é o citado:
Deus-Cristo-varão-fêmea. O homem, se se cobrisse não refletiria a glória de
Cristo, e a mulher, se não se cobrisse, pretenderia igualar-se ao varão. O
homem é imagem e glória de Deus e a mulher é imagem do homem, um reflexo sempre
pálido da autêntica realidade. A razão de todo isto é que a mulher proveu do
homem, enquanto que o homem proveu de Deus; este foi criado por si mesmo,
enquanto que a mulher foi criada a causa do varão, o qual lhe permite concluir
que somente o homem é imagem e glória de Deus, enquanto que a mulher é glória
do homem, e, por isso, deve cobrir-se em sinal de submissão ao varão, que é já
o paroxismo da misoginia, ou senão rapar-se. “Todo homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta desonra a sua
cabeça. Mas toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a
sua cabeça, porque é a mesma cousa como se estivesse rapada. Portanto, se a
mulher não se cobre com véu, tosquie-se também; se, porém, para a mulher é
vergonhoso ser tosquiada ou rapada, cubra-se com véu. Pois o homem, na verdade,
não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e glória de Deus; mas a mulher é a
glória do homem. Porque o homem não proveu da mulher, mas a mulher do homem;
nem foi o homem criado por causa da mulher, mas sim, a mulher por causa do
homem. Portanto, a mulher deve trazer sobre a cabeça um sinal de submissão, por
causa dos anjos” (I Cor. 11,
4-10). Em vez dos anjos deveria dizer em interesse dos misóginos celibatários.
O Gênesis não precisa claramente se a mulher é ou não imagem de Deus, cousa que
sim faz agora o apóstolo Paulo, limitando a imagem de Deus ao sexo masculino.
Para
intentar remendar o seu discurso profundamente misógino e consolar a mulher
acrescentando que “nem a mulher é
independente do homem, nem o homem é independente da mulher. pois, assim como a
mulher veio do homem, assim também o homem nasce da mulher, mas tudo vem de
Deus” (I Cor. 11, 11-12), mas
pouca independência pode ter um ser que está totalmente submetido a outro e
carece de total autonomia. A seguir, Paulo dá-lhe voz aos coríntios para que
julguem se convém que a mulher ore com a cabeça descoberta, pretendendo
inclinar o seu juízo polo não em base a que já a natureza nos ensina que é uma
desonra para o homem ter os cabelos longos enquanto que é uma desonra para a
mulher não tê-los longos. “julgai entre
vós mesmos: é conveniente que uma mulher com a cabeça descoberta ore a Deus?
Não vos ensina a própria natureza que se o homem tiver cabelo comprido, é para
ele uma desonra; mas se a mulher tiver o cabelo comprido, é para ela uma
glória? Pois a cabeleira lhe foi dada em lugar de véu” I Cor. 11, 13-15). É evidente que a natureza não ensina nada, senão
que somente adquire sentido mercê à atividade avaliadora do ser humano. O que
desonram são as condutas e atitudes incorretas para com os demais seres
humanos, os restantes seres vivos, a natureza inerte, mas nunca os cabelos
longos ou curtos. Se a cabeleira lhe foi dada por véu, por que ao homem, que
também tem cabeleira, se não se rapa ou lhe cai o pelo, também lhe seria dada
por véu. Aliás, se a cabeleira lhe foi dada por véu à mulher, por que precisa
outro véu a maiores?
De
acordo com as pautas acima estabelecidas, Paulo atua coerentemente exigindo que
as mulheres calem na igreja, obedeçam e perguntem-lhes aos maridos se querem
aprender. “as mulheres estejam caladas
nas igrejas; porque lhes não é permitido falar; mas estejam submissas como
também ordena a lei. E, se querem aprender alguma cousa, perguntem em casa a
seus próprios maridos; porque é indecoroso para a mulher o falar na igreja”
(I Cor. 14, 34-35). É uma mágoa que não precise Paulo por que para ela é
indecoroso falar na igreja, enquanto que para o homem não.
Tanto
nas cartas atribuídas erroneamente a Paulo como nas epístolas denominadas
católicas, mantém-se esta tendência misógina de clara subordinação da mulher a
respeito do homem. Na carta pseudoepigráfica dirigida aos efésios no ano 62, o
seu autor insiste no tema da submissão da mulher ao marido «em todo» e, a
câmbio, aos homens aconselha-lhe que as amem. “Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o
marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele
próprio o Salvador do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo,
assim também as mulheres o sejam em tudo aos seus maridos. Vós, maridos, amai a
vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por
ela” (Ef. 5, 22-25). A expressão
«em tudo» deveria desaparecer de qualquer relato em que se fale da relação dum
ser humano com outro. Se o homem lhe indica que tem que matar a outro ser
humano, deve ela obedecer? Estaria ela eximida do delito de homicídio ou
assassinato alegando que atuou por obediência devida? Isto é totalmente
inaceitável. O home deve amar a mulher e esta reverenciar ao marido (Ef. 5, 32), e as mulheres idosas devem
ensinar as jovens a amar os seus maridos (Tit.
2, 4-5). Também se insiste na submissão na Carta aos Colossenses, escrita
no ano 62 e de autenticidade duvidosa. “Vós,
mulheres, sede submissas a vossos maridos, como convém no Senhor. Vós, maridos,
amai a vossas mulheres, e não as trateis asperamente” (Col. 3. 18-19).
O
autor da I Carta a Timóteo, escrita
arredor do ano 100, amostra-se mais rude e imperativo e justifica a
inferioridade da mulher no facto de que Adão foi criado primeiro e em que Eva
atuou como sedutora para induzi-lo a pecar . “A mulher aprenda em silêncio com toda
sujeição. Porque não permito à mulher ensinar, nem exercer domínio sobre o
home, senão estar em silêncio“ (I Tim. 2, 11-12), e justifica-o
aludindo ao invento do pecado do paraíso e oferece-lhe como saída parir filhos
e ser boa. “Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado,
mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando
à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, no amor e na santificação” (I
Tim. 2, 13-15) .
E postos a ordenar, também lhe prescreve como devem vestir. “que as
mulheres se ataviem com traje decoroso, com modéstia e sobriedade, não com
tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos custosos” (I Tim. 2, 9). Tanto os bispos como os
diáconos devem ser maridos de uma só mulher, e as mulheres devem ter as
virtudes dos subordinados: “sérias, não
maldizentes, temperantes, e fiéis em tudo” (I Tim. 3, 11). Não se deve eleger
nenhuma viúva menor de sessenta anos, porque “quando se tornam levianas contra Cristo, querem casar-se; tendo já a
sua condenação por haverem violado a primeira fé; e, além disto, aprendem
também a ser ociosas, andando de casa em casa; e não somente ociosas, mas
também faladeiras e intrigantes, falando o que não convém. Quero pois que as
mais novas se casem, tenham filhos, dirijam a sua casa, e não dêem ocasião ao
adversário de maldizer” (I Tim. 5,
11-15).
Na I Carta de Pedro, pseudoepigráfica,
escrita arredor do ano 65 e.c. insiste-se também na submissão das mulheres aos
homes para que “se alguns deles não
obedecem a palavra, sejam salvos pola conduta das suas mulheres, considerando a
vossa vida casta em temor” (I Ped. 3.
1-2). Imitando as mulheres dos patriarcas, o seu adorno não deve ser o enfeite
exterior, senão o íntimo do coração. E a conduta do marido deve ser a da
compreensão, tratando-as como vaso frágil.
Estes
são os relatos bíblicos que os clérigos ousam afirmar que foram inspirados por
Deus, por mais que não exista neles nenhum indício sério que indique que é
assim. Estes relatos, esclerosados e convertidos em imutáveis e, pretensamente,
na expressão da autêntica verdade, acarretaram enorme dor, sofrimento e
alienação a mais de meia humanidade que viveu no mundo cristão e de algumas
outras religiões. Esta cosmovisão deve mudar-se por outra que reconheça que as
religiões positivas são também produtos humanos, criados para iluminar,
dirigir, submeter, consolar e dar esperança aos seres humanos, úteis quiçá
nalgum momento passado, mas que hoje são uma rêmora para a sua libertação e
reconciliação consigo mesmo.
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