Em solidariedade com a luta
pola igualdade das mulheres
Assistimos nos nossos dias a uma cerimônia da confusão e de
impotência na igreja, incapaz de reagir perante o enorme mal-estar das mulheres
pola sua situação de inferioridade, subordinação e violência que padecem frente
ao sexo masculino. Esta instituição está tão condicionada polos seus documentos
fundacionais, que poderíamos denominar a sua constituição, integrada pola
Bíblia, o magistério eclesiástico e a escritos dos chamados Santos Padres, que
corre o risco de rachar-se se toma alguma medida para remediar esta sanguinolenta
situação de discriminação salarial e social frente ao homem. Hoje imos falar da
misoginia, misossexualidade, misohedonismo e misocósmia, ou seja do ódio às
mulheres, ao sexo, ao prazer e a este mundo e da subordinação e inferioridade
da mulher num dos teólogos que exerceu grande influência no cristianismo, ainda
que tecnicamente não seja considerado como um Santo Padre por ter abandonado a
Igreja.
O cartaginês e brilhante polemista, Tertuliano (ca.
160-225), chamado o pai da cristandade latina e o fundador da teologia
ocidental, converteu-se ao cristianismo cara ao ano 197, que abandonaria dez
anos depois para integrar-se na seita rigorista do montanismo, que também
abandonaria para fundar a sua própria confissão. Como apologista, combateu
diversas «heresias»: marcionitas, valentinianos, nicolaítas,... Esteve casado,
mas converteu-se em ardente defensor do celibato e inclusive da castração em
seguimento do que diz Jesus em Mateo,
19,12 a propósito dos que se fazem eunucos polo reino dos céus. Segundo Shaum Tougher, Tertuliano utiliza os
termos castratus, eunuchus e spado (castrado, eunuco (em grego) e eunuco (em
latim) algumas vezes como
intercambiáveis. No livro Ad Uxorem, faz um panegírico da
continência num contexto plenamente misossexual, de desprezo do sexo, no que este
aparece como um estorvo para achegar-se à divindade. Os que não estão casados
não devem casar e os que o estão devem viver como se não o estivessem, e os que
perderam a sua parelha não devem volver casar. “Quantos não ha que, por
mútuo consentimento suprimem os deveres do matrimônio, eunucos voluntários,
para conquistar melhor o céu! Se se abraça a continência no matrimônio, com
quanta mais razão cumpre impô-la quando a morte o rompeu?”. O ódio ao sexo
é tal que não se recata em emendar a obra divina, tal como o cristianismo a
entende, que criou seres sexuados e dotados de libido para segurar a
procriação. No livro De cultu feminarum volve insistir na continência
sexual, que tem uma das suas múltiplas
raízes no Apóstolo Paulo, e carga contra o ornato feminino. “Se o Apóstolo
ordena aos maridos viver com as suas esposas como se não as tivessem, que
pensaria dos ornatos vãos dos que se carregam? Não é por este motivo e a causa
do reino de Deus que muitos se convertem em eunucos, renunciando com uma
vontade tão firme e confiada a prazeres imperiosos dos que o uso puder ser
legítimo?”. O que autoriza aos cristãos a obrar deste modo é a sua predestinação por Deus para abolir os
princípios mundanos, desde uma posição misossexual, misohedonista e
misocósmica, de radical ódio deste mundo. “Nós somos aqueles para os que
transitaram os fins dos séculos; destinados por Deus antes do juízo dos tempos,
somos instruídos por Deus, como castigar e castrar, como disse, o mundo. Somos
a circuncisão de todos, espiritual e carnal. Pois circuncidamos no espírito e na
carne a mundanidade”. Temos condensado em poucas palavras a animadversão do
cristianismo por este mundo, polas paixões, polos prazeres, porque o mundo
cristão é um mundo lúgubre, um mundo de trânsito que odeia o estádio presente
em aras dum futuro imaginário que seria o mundo autêntico, um mundo, em
definitiva, que denigra a sabedoria e bondade do seu criador. Deus situou ao
ser humano neste mundo para que o odiasse e escapasse dele e todo gozo dos
escassos prazeres e satisfações que este mundo nos dá é visto como suspeitoso
de pecado e de transgressão.
No Véu das Virgens, partindo da, para ele, natural inferioridade da mulher, submetidas em
todas as cousas ao homem, critica que estas não se velem e que levem
marcas que as distingam das demais mulheres e a razão é que os homens não o
fazem: “Polo demais, seria uma cousa bastante estranha que as mulheres,
submetidas em todas as cousas ao homem, levassem como sinal de honor uma marca
da sua virgindade que atraísse a atenção e o respeito dos seus irmãos, enquanto
que tantos homens virgens, tantos eunucos voluntários, estariam limitados a
esconder a sua virtude, não levando nada que os possa distinguir”. Podemos
observar que neste texto, Tertuliano cita a submissão total das mulheres ao
homem em todo, que ele considera normal e não a condena, ao tempo que acredita
na existência de muitos eunucos voluntários, dos que louva a sua virtude, e,
por tanto, aprova implicitamente esta prática, que confirmaria a sua adesão à mensagem
de Jesus a este respeito. Estes eunucos voluntários são distinguidos claramente
dos celibatários ou virgens, e, por tanto, trata-se de pessoas emasculadas
fisiologicamente. Descreve outro traço que é importante como princípio hermenêutico,
que consiste na ocultação da castração.
Em Exortação à Castidade, faz um novo alegado em
prol da vida de castidade, aconselhando não casar ou fazê-lo com uma esposa
puramente espiritual, ao tempo que critica aos que se opõem à eleição deste
modo de vida: “Eu sei com que pretextos coloreamos a nossa insaciável cobiça
da carne. A necessidade duma assistência, uma casa a governar, servidores a conduzir, armazéns e
chaves a guardar, obras de lã a distribuir, gastos aos que ha que atender; eis
o que alegamos. Com efeito, não andam bem administradas mais que as casas dos
homens casados! Todo vai mal com os celibatários; os bens dos eunucos perecem; a
fortuna dos soldados é dilapidada; os viageiros sem esposas estão arruinados!
Esquecemos pois que nós somos também soldados, soldados submetidos a uma
disciplina tanto mais severa quanto a nossa casa é mais grande? Não somos nós viageiros neste
mundo? Por que pois esta disposição, ó cristão, que ti não possas viver sem
esposa?̋. A vida neste mundo é de trânsito e o melhor é viver sem esposa. A
luta contra a carne, de por si pecaminosa, em contra do espírito, leva a este
autor a optar por um amor platônico, emendando a natureza humana, da que as
paixões, impulsos, sentimentos, pulsões, etc. som um constitutivo natural e
propõe um modo de vida de pessoas herméticas entre si vivendo uma vida de castidade,
que é a que nos faz santos já neste mundo.
No livro primeiro Contra Marcião, escreve: “Si,
Marcião, ti és mais odioso que as bestas daquela barbárie. Com efeito, que
castor é mais castrador da carne que
quem destruiu as núpcias”. Em contra do que afirmava no texto
anterior, neste indica claramente que quem condena ou destrui o matrimônio,
como Marcião de Sinope (85-161 e,c.), é um castrador da carne. Apresenta-se,
pois, Tertuliano como um defensor do matrimônio, frente ao ataque a ele de
Marcião, que só batizava os que não estavam casados: virgens, viúvas,
celibatários, divorciados e eunucos.
Em Sobre a Monogamia posiciona-se entre os que
chama heréticos e os psíquicos; os primeiros repudiam o matrimônio, não se
casam nem uma vez; os segundos não só uma vez. Ele considera que o seu
posicionamento é um justo termo médio, que ele denomina espirituais. “Entre
os eunucos alheios e os teus aurigas tanto te lamentas do serviço doméstico
quanto do desprezo alheio; portanto ofendem os que abusam como os que não usam.
Em verdade nem a continência se deve louvar porque é herética nem defender a
licença, porque é psíquica; aquela blasfema, esta entrega-se à luxuria; aquela
destrui o deus das núpcias, esta ofusca-o”
Nesta mesma obra afirma Tertuliano que Jesus era um
eunuco, igual que o apóstolo Paulo: “Mas se a monogamia é onerosa, também o
é a descarada doença da carne; mas, se também é nova é o que imos ver agora.
Dizemo-lo mais amplamente: embora que o Paracleto estabelecesse no dia de hoje
uma total e sólida virgindade ou continência, de modo que não permite apaziguar
com umas núpcias únicas o fervor da carne, assim também nada novo parece
induzir-se, tendo em conta que o mesmo senhor lhe abriu o reino dos céus aos
eunucos sendo ele também eunuco; em quem fixando-se, o apóstolo, ademais sendo
ele castrado, preferiu a continência. mas deixando a salvo, dizes, o direito de
casar. (ipso domino spadonibus aperiente regna caelorum ut et ipso spadone,
quem spectans et apostolus, propterea et ipse castratus, continentiam mavult.
'Sed salvo', inquis, 'iure nubendi') Totalmente a salvo e veremos até
onde; não obstante o destruiu naquela parte em que prefere a continência. É bom
para o homem não aproximar-se a nenhuma mulher, logo é mau acercar-se, pois não
ha nada contrário ao bom mais que o mau. Portanto fica (a dizer), que os que
tenham mulheres obrem como se não as tivessem, e tanto mais os que não as têm
não devem tê-las. Explica também as causas porque aconselha isto, que os não
casados pensem sobre Deus, mas os casados que cada um se satisfaça no seu matrimônio.
E podo suster que não somente é bom o que se permite, senão que o que se
permite não é puramente bom, pois o que é puramente bom não se permite senão
que ademais é lícito. A permissão tem alguma vez por causa a necessidade.
Finalmente nesta classe não há vontade do permissivo de casar, senão que quer
outra cousa: quero que vós, diz, todos sejais como eu”. Apresentamos este
longo texto por crer que é indicativo do pensar da Igreja a través da sua
história. Em primeiro lugar, Tertuliano opta pola monogamia, entendida como o
facto de possuir uma mulher única, tanto simultânea como sucessivamente, e, por
tanto, condena as segundas núpcias em caso de que lhe morra a um dos esposos o
seu companheiro/a. Esta era a posição dos montanistas, mas não foi seguida no
futuro pola igreja oficial, que terminou tolerando as segundas núpcias ainda
que de mal grau. Em segundo lugar, assume a ideologia platonizante do ódio
contra a matéria, contra o corpo, contra a carne, emendando a própria obra
divina. Em terceiro lugar, apesar de reconhecer que o impulso sexual não se
logra apaziguar com umas únicas núpcias, a única solução que oferece é a
continência, pois, segundo ele, igual que Deus é único, o matrimônio também
deve ser único. Em quarto lugar, acredita que Deus também acolhe aos eunucos no
reino dos céus, como escreve o Trito-Isaías. Em quinto lugar, declara que tanto
Jesus como o Apóstolo Paulo eram eunucos, no sentido fisiológico de castrados,
palavra esta última intercambiável para ele com eunuco neste texto. Em sexto
lugar, sustém, como tradicionalmente a Igreja, que a continência é preferível
ao matrimônio, se bem permite este, não como um bem verdadeiro, senão só em aras à procriação da espécie, que seria a
única finalidade da união matrimonial. Inclusive ousa manter que os que têm
mulher devem obrar como se não a tivessem, o qual poderia ser um tema para um
debate dum cursinho pré-matrimonial. Em sétimo lugar, já aparecem nele a razão
que fundamenta tanto o celibato como o eunuquismo, que é a dedicação total a Deus,
melhor seria dizer à Igreja, que seria incompatível com as preocupações
matrimoniais.
Muitos exegetas cristãos interpretam que Jesus se refere
neste texto ao celibato, à virgindade, mas isto não tem fundamento e inclusive
o apóstolo Paulo parece refutá-lo claramente quando diz que “a respeito das
virgens não tenho preceito do Senhor”. Por conseguinte, Jesus, segundo
Paulo, não disse nada a respeito do celibato. Tampouco é verdade, como veremos,
o que dizem vários exegetas que os Padres da Igreja e os Escritores
Eclesiásticos entendiam o terceiro suposto dos eunucos em referência a pessoas
celibatários.
Jesus aconselhava a castração polo reino dos céus, e
agora Tertuliano indica que tanto ele como Paulo eram eunucos, e deste último
precisa expressamente que estava castrado. Não sabemos quais são as fontes que
lhe permitem a Tertuliano afirmar que Jesus era um eunuco, se bem poderia
recolher uma tradição oral presente no seio da Igreja. Alguns autores afirmam
que o mesmo Jesus foi acusado em vida polos seus adversários de ser um eunuco,
mas eu não achei nenhum documento dos primeiros tempos que o acredite. Creio
que se pode afirmar com todo fundamento que Jesus era um eunuco polo menos espiritual,
no sentido de que optava claramente, a nível ideológico, pola castração em aras
do reino dos céus, e que isso era o que ele recomendava aos seus discípulos,
mas é uma questão aberta se estava castrado ou não, ainda que a sua conduta a
respeito do sexo com mulheres, faceta
totalmente enigmática, oculta, e inexistente segundo vários autores
eclesiásticos, e o seu trato com elas, indiferente, distante, salvo os seus
episódios com a Magdalena, numa sociedade que considerava ter filhos como uma
benção de Deus e a eleição exclusiva de homens como discípulos, a misoginia dos
essênios da que ele quiçá participou, indicam que podia ser esse o motivo,
embora também é provável que Jesus for mais bem misossexual e miso-nupcial ao
estilo dos essênios.
O professor medievalista da Universidade de São Diego,
Mathew Kuefler, especialista em temas de sexualidade, considera que “se
Jesus estava familiarizado com os galli e as suas auto-emasculações como
práticas religiosas, então é polo menos possível que as suas palavras eram
tencionadas literalmente e que ele estava recomendando aos seus seguidores
varões que se castrassem fisicamente a si próprios”. Tem presente este
autor a animadversão que sentia o que ele chama a aristocracia romana pola
auto-emasculação que punha em questão a possibilidade de penetração do
cristianismo no Império Romano e que, portanto, cumpria suprimi-la, por muito
que estivesse apoiada na autoridade de Jesus. A supressão consistiu em mudar o
seu sentido literal polo alegórico, passando os devotos a serem uns castrados
espiritualmente. Entendo que mais que de aristocracia haveria que falar das
elites cultas e/ou sensíveis, pois muitas pessoas das elites econômicas altas
tinham, no Império Romano, eunucos ao seu serviço. Além disso, creio que é
pouco instrutivo falar de que é possível que as palavras de Jesus pretendiam
ter um sentido literal, pois possível é quase todo. Creio ademais que ha um
dado que o professor citado não tem em conta que é a legislação romana
formalmente oposta à auto-castração, e muito especialmente ao controle da
natalidade, que explica que Jesus não pudesse falar abertamente e se refugiasse
nas palavras crípticas: «quem poda entender que entenda», que nenhum
comentarista cristão é capaz de explicar satisfatoriamente. Se temos em conta
que é polo menos raro que um no mesmo texto misture o sentido literal com o
alegórico, a conduta distante, desprezativa e indiferente de Jesus a respeito
do sexo, a sua crença de que o fim do mundo está próximo, e a prática eclesial
no cristianismo primitivo, creio que podemos concluir que Jesus estava
recomendando a auto-emasculação física, que lhe estava a inculcar o ideal do eunuquismo,
e que inclusive, se ele se estava a referir-se a si mesmo no terceiro suposto
de eunucos, como afirma Tertuliano, que ele fosse também um eunuco, não só no
sentido espiritual, que creio que é claro, senão também no sentido físico, se
bem não temos a este respeito mais que alguns elementos indiciários e não
provas conclusivas.
A razão profunda alegada por Tertuliano para a prática da
emasculação é a crença, tão presente no cristianismo primitivo, recebida de
Jesus, de que o fim do mundo está próximo, e isso invalida o preceito
veterotestamentário «crescei e multiplicai-vos», e explica o câmbio na
valoração dos eunucos, que foram convidados ao reino dos céus. “Pois depois
que o fim dos tempos volveu inútil este preceito: «Crescei e multiplicai-vos»;
depois que o Apóstolo disse: «Que vos queda por fazer, senão que aqueles que
têm esposas sejam como se não as tivessem, porque o tempo da recoleção chegou e
a uva verde, comida polos pais cessou de irritar os dentes dos meninos, pois
cada um morrerá no seu pecado», desde esse momento não só os eunucos não estão
já submetidos ao opróbrio, senão que mereceram a graça e foram convidados ao
reino dos céus”.
Neste mesmo livro apresenta a Cristo como o novo Adão, ao
que o cristão deve parecer-se, que é um modelo tanto mais perfeito quanto mais
íntegro, “Mais dada à enfermidade da tua carne, o exemplo da sua, o Adão
mais perfeito, ou seja, Jesus Cristo, tanto mais perfeito quanto mais íntegro,
apresenta-se ante ti, se o desejas, como eunuco na carne; mas se não tens
forças suficientes, apresenta-se como monógamo em espírito, tendo a igreja como
esposa figurativamente, que o apóstolo
interpreta daquele grande sacramento de Cristo e da Igreja”. Para
interpretar o sentido de eunuco na carne, pode ser clarificador aduzir outros
textos paralelos deste livro De monogamia.
“Só encontro a Pedro como marido, pola sua sogra; pressinto que era monógamo
pola igreja; que funda sobre monógamos todo o seu rango hierárquico. Aos demais
não encontro que estivessem casados, e entendo que necessariamente eram eunucos
ou continentes”. Distingue, pois, claramente Tertuliano entre eunucos e
continentes entre os não casados, e, por tanto, isto cumpre aplicá-lo aos
demais textos.
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