5 mar 2019

Misogínia, misossexualidade e misocósmia Tertuliano


Em solidariedade com a luta pola igualdade das mulheres

            Assistimos nos nossos dias a uma cerimônia da confusão e de impotência na igreja, incapaz de reagir perante o enorme mal-estar das mulheres pola sua situação de inferioridade, subordinação e violência que padecem frente ao sexo masculino. Esta instituição está tão condicionada polos seus documentos fundacionais, que poderíamos denominar a sua constituição, integrada pola Bíblia, o magistério eclesiástico e a escritos dos chamados Santos Padres, que corre o risco de rachar-se se toma alguma medida para remediar esta sanguinolenta situação de discriminação salarial e social frente ao homem. Hoje imos falar da misoginia, misossexualidade, misohedonismo e misocósmia, ou seja do ódio às mulheres, ao sexo, ao prazer e a este mundo e da subordinação e inferioridade da mulher num dos teólogos que exerceu grande influência no cristianismo, ainda que tecnicamente não seja considerado como um Santo Padre por ter abandonado a Igreja.
            O cartaginês e brilhante polemista, Tertuliano (ca. 160-225), chamado o pai da cristandade latina e o fundador da teologia ocidental, converteu-se ao cristianismo cara ao ano 197, que abandonaria dez anos depois para integrar-se na seita rigorista do montanismo, que também abandonaria para fundar a sua própria confissão. Como apologista, combateu diversas «heresias»: marcionitas, valentinianos, nicolaítas,... Esteve casado, mas converteu-se em ardente defensor do celibato e inclusive da castração em seguimento do que diz Jesus em Mateo, 19,12 a propósito dos que se fazem eunucos polo reino dos céus.  Segundo Shaum Tougher, Tertuliano utiliza os termos castratus, eunuchus e spado (castrado, eunuco (em grego) e eunuco (em latim) algumas vezes como  intercambiáveis. No livro Ad Uxorem, faz um panegírico da continência num contexto plenamente misossexual, de desprezo do sexo, no que este aparece como um estorvo para achegar-se à divindade. Os que não estão casados não devem casar e os que o estão devem viver como se não o estivessem, e os que perderam a sua parelha não devem volver casar. “Quantos não ha que, por mútuo consentimento suprimem os deveres do matrimônio, eunucos voluntários, para conquistar melhor o céu! Se se abraça a continência no matrimônio, com quanta mais razão cumpre impô-la quando a morte o rompeu?”. O ódio ao sexo é tal que não se recata em emendar a obra divina, tal como o cristianismo a entende, que criou seres sexuados e dotados de libido para segurar a procriação. No livro De cultu feminarum volve insistir na continência sexual, que tem uma das  suas múltiplas raízes no Apóstolo Paulo, e carga contra o ornato feminino. “Se o Apóstolo ordena aos maridos viver com as suas esposas como se não as tivessem, que pensaria dos ornatos vãos dos que se carregam? Não é por este motivo e a causa do reino de Deus que muitos se convertem em eunucos, renunciando com uma vontade tão firme e confiada a prazeres imperiosos dos que o uso puder ser legítimo?”. O que autoriza aos cristãos a obrar deste modo é a  sua predestinação por Deus para abolir os princípios mundanos, desde uma posição misossexual, misohedonista e misocósmica, de radical ódio deste mundo. “Nós somos aqueles para os que transitaram os fins dos séculos; destinados por Deus antes do juízo dos tempos, somos instruídos por Deus, como castigar e castrar, como disse, o mundo. Somos a circuncisão de todos, espiritual e carnal. Pois circuncidamos no espírito e na carne a mundanidade”. Temos condensado em poucas palavras a animadversão do cristianismo por este mundo, polas paixões, polos prazeres, porque o mundo cristão é um mundo lúgubre, um mundo de trânsito que odeia o estádio presente em aras dum futuro imaginário que seria o mundo autêntico, um mundo, em definitiva, que denigra a sabedoria e bondade do seu criador. Deus situou ao ser humano neste mundo para que o odiasse e escapasse dele e todo gozo dos escassos prazeres e satisfações que este mundo nos dá é visto como suspeitoso de pecado e de transgressão.
            No Véu das Virgens, partindo da, para ele, natural inferioridade da mulher, submetidas em todas as cousas ao homem, critica que estas não se velem e que levem marcas que as distingam das demais mulheres e a razão é que os homens não o fazem: “Polo demais, seria uma cousa bastante estranha que as mulheres, submetidas em todas as cousas ao homem, levassem como sinal de honor uma marca da sua virgindade que atraísse a atenção e o respeito dos seus irmãos, enquanto que tantos homens virgens, tantos eunucos voluntários, estariam limitados a esconder a sua virtude, não levando nada que os possa distinguir”. Podemos observar que neste texto, Tertuliano cita a submissão total das mulheres ao homem em todo, que ele considera normal e não a condena, ao tempo que acredita na existência de muitos eunucos voluntários, dos que louva a sua virtude, e, por tanto, aprova implicitamente esta prática, que confirmaria a sua adesão à mensagem de Jesus a este respeito. Estes eunucos voluntários são distinguidos claramente dos celibatários ou virgens, e, por tanto, trata-se de pessoas emasculadas fisiologicamente. Descreve outro traço que é importante como princípio hermenêutico, que consiste na ocultação da castração.
            Em Exortação à Castidade, faz um novo alegado em prol da vida de castidade, aconselhando não casar ou fazê-lo com uma esposa puramente espiritual, ao tempo que critica aos que se opõem à eleição deste modo de vida: “Eu sei com que pretextos coloreamos a nossa insaciável cobiça da carne. A necessidade duma assistência, uma casa a  governar, servidores a conduzir, armazéns e chaves a guardar, obras de lã a distribuir, gastos aos que ha que atender; eis o que alegamos. Com efeito, não andam bem administradas mais que as casas dos homens casados! Todo vai mal com os celibatários; os bens dos eunucos perecem; a fortuna dos soldados é dilapidada; os viageiros sem esposas estão arruinados! Esquecemos pois que nós somos também soldados, soldados submetidos a uma disciplina tanto mais severa quanto a nossa casa é mais  grande? Não somos nós viageiros neste mundo? Por que pois esta disposição, ó cristão, que ti não possas viver sem esposa?̋. A vida neste mundo é de trânsito e o melhor é viver sem esposa. A luta contra a carne, de por si pecaminosa, em contra do espírito, leva a este autor a optar por um amor platônico, emendando a natureza humana, da que as paixões, impulsos, sentimentos, pulsões, etc. som um constitutivo natural e propõe um modo de vida de pessoas herméticas entre si vivendo uma vida de castidade, que é a que nos faz santos já neste mundo.
            No livro primeiro Contra Marcião, escreve: “Si, Marcião, ti és mais odioso que as bestas daquela barbárie. Com efeito, que castor é mais castrador da carne que  quem destruiu as núpcias”. Em contra do que afirmava no texto anterior, neste indica claramente que quem condena ou destrui o matrimônio, como Marcião de Sinope (85-161 e,c.), é um castrador da carne. Apresenta-se, pois, Tertuliano como um defensor do matrimônio, frente ao ataque a ele de Marcião, que só batizava os que não estavam casados: virgens, viúvas, celibatários, divorciados e eunucos.
            Em Sobre a Monogamia posiciona-se entre os que chama heréticos e os psíquicos; os primeiros repudiam o matrimônio, não se casam nem uma vez; os segundos não só uma vez. Ele considera que o seu posicionamento é um justo termo médio, que ele denomina espirituais. “Entre os eunucos alheios e os teus aurigas tanto te lamentas do serviço doméstico quanto do desprezo alheio; portanto ofendem os que abusam como os que não usam. Em verdade nem a continência se deve louvar porque é herética nem defender a licença, porque é psíquica; aquela blasfema, esta entrega-se à luxuria; aquela destrui o deus das núpcias, esta ofusca-o
            Nesta mesma obra afirma Tertuliano que Jesus era um eunuco, igual que o apóstolo Paulo: “Mas se a monogamia é onerosa, também o é a descarada doença da carne; mas, se também é nova é o que imos ver agora. Dizemo-lo mais amplamente: embora que o Paracleto estabelecesse no dia de hoje uma total e sólida virgindade ou continência, de modo que não permite apaziguar com umas núpcias únicas o fervor da carne, assim também nada novo parece induzir-se, tendo em conta que o mesmo senhor lhe abriu o reino dos céus aos eunucos sendo ele também eunuco; em quem fixando-se, o apóstolo, ademais sendo ele castrado, preferiu a continência. mas deixando a salvo, dizes, o direito de casar. (ipso domino spadonibus aperiente regna caelorum ut et ipso spadone, quem spectans et apostolus, propterea et ipse castratus, continentiam mavult. 'Sed salvo', inquis, 'iure nubendi') Totalmente a salvo e veremos até onde; não obstante o destruiu naquela parte em que prefere a continência. É bom para o homem não aproximar-se a nenhuma mulher, logo é mau acercar-se, pois não ha nada contrário ao bom mais que o mau. Portanto fica (a dizer), que os que tenham mulheres obrem como se não as tivessem, e tanto mais os que não as têm não devem tê-las. Explica também as causas porque aconselha isto, que os não casados pensem sobre Deus, mas os casados que cada um se satisfaça no seu matrimônio. E podo suster que não somente é bom o que se permite, senão que o que se permite não é puramente bom, pois o que é puramente bom não se permite senão que ademais é lícito. A permissão tem alguma vez por causa a necessidade. Finalmente nesta classe não há vontade do permissivo de casar, senão que quer outra cousa: quero que vós, diz, todos sejais como eu”. Apresentamos este longo texto por crer que é indicativo do pensar da Igreja a través da sua história. Em primeiro lugar, Tertuliano opta pola monogamia, entendida como o facto de possuir uma mulher única, tanto simultânea como sucessivamente, e, por tanto, condena as segundas núpcias em caso de que lhe morra a um dos esposos o seu companheiro/a. Esta era a posição dos montanistas, mas não foi seguida no futuro pola igreja oficial, que terminou tolerando as segundas núpcias ainda que de mal grau. Em segundo lugar, assume a ideologia platonizante do ódio contra a matéria, contra o corpo, contra a carne, emendando a própria obra divina. Em terceiro lugar, apesar de reconhecer que o impulso sexual não se logra apaziguar com umas únicas núpcias, a única solução que oferece é a continência, pois, segundo ele, igual que Deus é único, o matrimônio também deve ser único. Em quarto lugar, acredita que Deus também acolhe aos eunucos no reino dos céus, como escreve o Trito-Isaías. Em quinto lugar, declara que tanto Jesus como o Apóstolo Paulo eram eunucos, no sentido fisiológico de castrados, palavra esta última intercambiável para ele com eunuco neste texto. Em sexto lugar, sustém, como tradicionalmente a Igreja, que a continência é preferível ao matrimônio, se bem permite este, não como um bem verdadeiro, senão só  em aras à procriação da espécie, que seria a única finalidade da união matrimonial. Inclusive ousa manter que os que têm mulher devem obrar como se não a tivessem, o qual poderia ser um tema para um debate dum cursinho pré-matrimonial. Em sétimo lugar, já aparecem nele a razão que fundamenta tanto o celibato como o eunuquismo, que é a dedicação total a Deus, melhor seria dizer à Igreja, que seria incompatível com as preocupações matrimoniais.
            Muitos exegetas cristãos interpretam que Jesus se refere neste texto ao celibato, à virgindade, mas isto não tem fundamento e inclusive o apóstolo Paulo parece refutá-lo claramente quando diz que “a respeito das virgens não tenho preceito do Senhor”. Por conseguinte, Jesus, segundo Paulo, não disse nada a respeito do celibato. Tampouco é verdade, como veremos, o que dizem vários exegetas que os Padres da Igreja e os Escritores Eclesiásticos entendiam o terceiro suposto dos eunucos em referência a pessoas celibatários.
            Jesus aconselhava a castração polo reino dos céus, e agora Tertuliano indica que tanto ele como Paulo eram eunucos, e deste último precisa expressamente que estava castrado. Não sabemos quais são as fontes que lhe permitem a Tertuliano afirmar que Jesus era um eunuco, se bem poderia recolher uma tradição oral presente no seio da Igreja. Alguns autores afirmam que o mesmo Jesus foi acusado em vida polos seus adversários de ser um eunuco, mas eu não achei nenhum documento dos primeiros tempos que o acredite. Creio que se pode afirmar com todo fundamento que Jesus era um eunuco polo menos espiritual, no sentido de que optava claramente, a nível ideológico, pola castração em aras do reino dos céus, e que isso era o que ele recomendava aos seus discípulos, mas é uma questão aberta se estava castrado ou não, ainda que a sua conduta a respeito do sexo com mulheres, faceta  totalmente enigmática, oculta, e inexistente segundo vários autores eclesiásticos, e o seu trato com elas, indiferente, distante, salvo os seus episódios com a Magdalena, numa sociedade que considerava ter filhos como uma benção de Deus e a eleição exclusiva de homens como discípulos, a misoginia dos essênios da que ele quiçá participou, indicam que podia ser esse o motivo, embora também é provável que Jesus for mais bem misossexual e miso-nupcial ao estilo dos essênios.
            O professor medievalista da Universidade de São Diego, Mathew Kuefler, especialista em temas de sexualidade, considera que “se Jesus estava familiarizado com os galli e as suas auto-emasculações como práticas religiosas, então é polo menos possível que as suas palavras eram tencionadas literalmente e que ele estava recomendando aos seus seguidores varões que se castrassem fisicamente a si próprios”. Tem presente este autor a animadversão que sentia o que ele chama a aristocracia romana pola auto-emasculação que punha em questão a possibilidade de penetração do cristianismo no Império Romano e que, portanto, cumpria suprimi-la, por muito que estivesse apoiada na autoridade de Jesus. A supressão consistiu em mudar o seu sentido literal polo alegórico, passando os devotos a serem uns castrados espiritualmente. Entendo que mais que de aristocracia haveria que falar das elites cultas e/ou sensíveis, pois muitas pessoas das elites econômicas altas tinham, no Império Romano, eunucos ao seu serviço. Além disso, creio que é pouco instrutivo falar de que é possível que as palavras de Jesus pretendiam ter um sentido literal, pois possível é quase todo. Creio ademais que ha um dado que o professor citado não tem em conta que é a legislação romana formalmente oposta à auto-castração, e muito especialmente ao controle da natalidade, que explica que Jesus não pudesse falar abertamente e se refugiasse nas palavras crípticas: «quem poda entender que entenda», que nenhum comentarista cristão é capaz de explicar satisfatoriamente. Se temos em conta que é polo menos raro que um no mesmo texto misture o sentido literal com o alegórico, a conduta distante, desprezativa e indiferente de Jesus a respeito do sexo, a sua crença de que o fim do mundo está próximo, e a prática eclesial no cristianismo primitivo, creio que podemos concluir que Jesus estava recomendando a auto-emasculação física, que lhe estava a inculcar o ideal do eunuquismo, e que inclusive, se ele se estava a referir-se a si mesmo no terceiro suposto de eunucos, como afirma Tertuliano, que ele fosse também um eunuco, não só no sentido espiritual, que creio que é claro, senão também no sentido físico, se bem não temos a este respeito mais que alguns elementos indiciários e não provas conclusivas.
            A razão profunda alegada por Tertuliano para a prática da emasculação é a crença, tão presente no cristianismo primitivo, recebida de Jesus, de que o fim do mundo está próximo, e isso invalida o preceito veterotestamentário «crescei e multiplicai-vos», e explica o câmbio na valoração dos eunucos, que foram convidados ao reino dos céus. “Pois depois que o fim dos tempos volveu inútil este preceito: «Crescei e multiplicai-vos»; depois que o Apóstolo disse: «Que vos queda por fazer, senão que aqueles que têm esposas sejam como se não as tivessem, porque o tempo da recoleção chegou e a uva verde, comida polos pais cessou de irritar os dentes dos meninos, pois cada um morrerá no seu pecado», desde esse momento não só os eunucos não estão já submetidos ao opróbrio, senão que mereceram a graça e foram convidados ao reino dos céus”.
            Neste mesmo livro apresenta a Cristo como o novo Adão, ao que o cristão deve parecer-se, que é um modelo tanto mais perfeito quanto mais íntegro, “Mais dada à enfermidade da tua carne, o exemplo da sua, o Adão mais perfeito, ou seja, Jesus Cristo, tanto mais perfeito quanto mais íntegro, apresenta-se ante ti, se o desejas, como eunuco na carne; mas se não tens forças suficientes, apresenta-se como monógamo em espírito, tendo a igreja como esposa  figurativamente, que o apóstolo interpreta daquele grande sacramento de Cristo e da Igreja”. Para interpretar o sentido de eunuco na carne, pode ser clarificador aduzir outros textos paralelos deste livro De monogamia. “Só encontro a Pedro como marido, pola sua sogra; pressinto que era monógamo pola igreja; que funda sobre monógamos todo o seu rango hierárquico. Aos demais não encontro que estivessem casados, e entendo que necessariamente eram eunucos ou continentes”. Distingue, pois, claramente Tertuliano entre eunucos e continentes entre os não casados, e, por tanto, isto cumpre aplicá-lo aos demais textos.

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