Os conflitos com Latino-América sucedem-se
periodicamente. Os da minha idade podem lembrar-se bem da enorme gafe diplomática
do embaixador espanhol na Habana, Juan Pablo de Lojendio, marquês de Vellisca,
que, considerando que todo é ourego, se apresentou nos estudos da Televisão
cubana para repreender pessoalmente dum jeito visceral e impertinente ao líder
máximo da revolução cubana Fidel Castro, por ter acusado ao governo espanhol e
ao citado embaixador de conspiração e ajuda aos contra-revolucionários. Visivelmente
irritado manifestou: «Quero falar aqui,
porque se me caluniou»”. Às palavras do moderador de que tinha que pedir
permisso, retrucou: «Isto é uma
democracia e o senhor moderador é quem dirige», ou seja, o colmo do
desatino e da impertinência. Castro, pola sua parte, também irado, manifestou: «Vai-me
falar de democracia o embaixador da maior ditadura de Europa!». Os encontrões
com Castro foram constantes na etapa do governo Aznar, nos que reluziu o seu ar
de superioridade o governante espanhol, como quando, depois dum intercâmbio de
gravatas, presumia que a sua gravata era melhor que a dele. «Fidel levou uma
das melhores gravatas que se pôs nunca».
O 21/11/207 fez-se célebre a cominação impertinente do
rei João Carlos I ao presidente de Venezuela Hugo Chavez, dizendo-lhe: «Por
que não te calas?», que parece delatar um grande sentimento de
superioridade sobre o mandatário de Venezuelano, e isto a todo um presidente
dum país. As críticas constantes e o clima mediático adverso com esta república
foi uma constante na etapa dos governos de Rajoy, que só serviu para enrarecer
o ambiente entre os dous países, que repercute muito negativamente sobre os
cidadãos galegos e espanhóis naquele país. Mas a fase aguda destas desavenças
foi o alinhamento do governo de Sánchez com o de Estados Unidos para sacar pola
força do poder ao presidente Nicolás Maduro, ao que não se lhe intui outra
motivação que apoderar-se das enormes riquezas que alberga este país. Se os
EEUU e Espanha querem autêntica democracia têm trabalho no seu país. O conflito
catalão põe de relevo as enormes debilidades da democracia espanhola e a falta
duma autêntica divisão de poderes, mas isto não é óbice para que os políticos
espanhóis do 155 dêem lições de democracia a destra e sinistra. Esta míngua na
divisão de poderes quer compensar-se com a propaganda, mas isto não chega,
porque é impossível ter divisão de poderes quando os membros da cimeira da
judicatura são elegidos polos representantes dos partidos políticos, até o
momento presente do bipartito, que se pelejam ente si a ver quem nomeia um
representante mais que o outro. Se é como dizem, que nos expliquem estas leias
para controlar o poder judicial. Todos sabemos que quem nomeia os cargos vai
ter poder para controlá-los.
O processo de descolonizaç4ao das colônias hispanas
produziu-se dum modo traumático e violento, porque o império espanhol nunca
quis dialogar sobre as demandas que lhe transmitiam de América. Isto deu como
resultado uma convivência difícil depois da independência, cheia de tensões e
conflitos, e com uma tendência do Estado espanhol a intrometer-se nos assuntos
internos dos países latino-americanos, e inclusive, nos nossos dias, de
confluir com o imperialismo estadunidense para impor regimes do seu interesse,
como se pôs de relevo no caso de Cuba e Venezuela. Com esta finalidade, não
duvida o ex-falangista e promotor com mentiras da guerra do Iraque Aznar
fazer-se passar por modelo de democrata.
O que acabamos de relatar é pecata minuta se o comparamos
com o que aconteceu durante a fase da colonização, que recebe o nome de
descobrimento, que muitos consideram um autêntico genocídio, mas não só os críticos
tradicionais com Espanha, senão também os próprios cronistas espanhóis, salvo
que, por uma deformação intelectual, não consideremos como tais aos freires
relatores da colonização de América, como Antônio de Montesinos e Bartolomeu
das Casas. Alguns dirigentes políticos, como o Sr. Borrell não se lhe ocorre
nada melhor que comparar o citado genocídio cometido com os índios americanos
indefensos e sem capacidade nenhuma de reação com a guerra da independência de
1808 contra os franceses na que pelejavam dous exércitos profissionais. Polas
mesmas razões, tampouco é comparável este caso com as guerras seculares entre
cristãos e muçulmanos, que receberam o nome de reconquista.
No processo de colonização de América atuaram ao uníssono
a Igreja e o Estado para impor:
- A redução a escravidão dos índios americanos, na que a
força coativa era exercida polo estado e a ideologia era abençoada polo
cristianismo. O papa Nicolau V promulgou a bula Dum diversas, o
18/06/1452, pola que autorizava o rei Afonso V de Portugal a reduzir à escravidão
os muçulmanos (sarracenos), pagãos e os outros incrédulos a escravidão perpétua.
O papa, após expressar a sua habitual queixa contra os inimigos da fé, que
buscam eliminar a religião cristã, e declarar que o faz inflamado polo ardor da
fé e fortificado com o amor divino,... escreve “concedemos-te por este edito, devido à autoridade apostólica,
poder total e livre para invadir, conquistar, dominar, subjugar os sarracenos e
pagãos e outros infiéis e outros inimigos de Cristo, e onde quer estabeleceram
os seus reinos, ducados, palácios reais, principados e outros domínios, países,
lugares, quintas, campos e qualquer outras possessões, bens móveis e imóveis
achados em todos estes locais... e reduzir as suas pessoas a escravidão perpétua
e apropriar-se reinos, ducados, palácios reais, principados e outros domínios,
possessões e bens de todas classes para ti e o teu uso e os teus sucessores os
reis de Portugal”. Esta bula é uma clara demonstração da conivência da cruz
e da espada, que pretende facilitar o colonialismo mais desapiedado de submissão
doutros povos em benefício mútuo. O rei obtém novos territórios que lhe vão
permitir estender o domínio temporal a mais países e incrementar os ingressos
das arcas públicas, e a Igreja novos aderentes que compartam o discurso único
em aras de liderar o domínio espiritual das consciências e procurar uma nova
fonte de tributos para a Igreja. Esta faculdade de escravização foi ratificada
e estendida a outros territórios na bula Romanus Dominus, de 5/01/1455,
dirigida por Nicolau V ao mesmo rei Afonso. Consagra-se assim a redução à
escravidão aos indígenas de África, que foi o início do tráfico massiva de
escravos a América, bula que consagra o domínio colonial temporal de Portugal
em África, que vai fundamentar posteriores reclamações territoriais de
Portugal, mas que vai chocar com os interesses da outra potência colonial ibérica
nesse momento, que a vai impugnar.
- O tandem da espada e da cruz de Espanha e o Portugal
também exportou a Latino-América a instituição da inquisição com a finalidade
de semear o terror na população com a pretexto de que o primeiro era salvar a
sua alma, e na década de 1560 a inquisição decidir trasladar-se a América, e em
1572 os membros da inquisição de México chegaram a Veracruz, ao mando do
inquisidor em chefe Pedro Moya de Contreras. O terror e a hipocrisia começaram
a estender-se polo continente americano, afetando também agora às fações
dissidentes do catolicismo, os protestantes. O catolicíssimo rei Felipe II
estava muito interessado em outorgar um poder mundial à instituição espanhola,
e do que se tratava era de que ninguém estivesse livre de suspeita e que se
lograsse instaurar a cultura do medo. Toby Green relata como se produzia o
processo de redução as escravidão uma vez que a inquisição começou a atuar em
América. Os prisioneiros nativos eram trasladados “encadeados em grupos de até mil e, uma vez que chegavam às minas eram
obrigados a trabalhar sem paga e com rações exíguas. Para castigar a estes
escravos podia castrá-los, derreter-lhe graxa de porco com uma vela e deixá-la
cair sobre a sua pele, cortar-lhes uma orelha, uma mão ou uma perna, ou forcá-los”
- Os maus tratos que recebiam os nativos é
descrito por Frei Bartolomeu das Casas num sermão pronunciado o 21/12/1511 nos
seguintes termos: “Todos estais em pecado mortal e nele viveis e morreis,
pola crueldade e tirania que usais com esta inocentes gentes. Dizei, com que
direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão a estes índios?
Com que autoridade tendes feito tão detestáveis guerras a estas gentes, que
estavam nas suas terras mansas e pacíficas, onde tão infinitas delas com mortes
e estragos nunca ouvidos tendes consumido? Como os tendes tão oprimidos e
fatigados, sem dar-lhes de comer e curá-los nas suas doenças, que dos
excessivos trabalhos que lhes dais incorrem e se vos morrem, e por melhor dizer
os matais, por sacar e adquirir ouro cada dia? E que cuidado tendes de quem os
doutrinem, e conheçam o seu deus e criador, e sejam batizados, ouçam missa e
guardem as festas e os domingos? Estes não são homens? Não têm ânimas
racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Isto não entendeis,
não sentis? Como estais nesta profundidade de sonho tão letárgico, dormidos?
Tende por certo que, no estado em que estais não vos podeis mais salvar, que os
mouros e turcos que carecem e não querem a fé de Jesus Cristo”
Deve Espanha pedir perdão? A nível legal não tem
nenhuma obrigação, mas outra cousa é que a obrigue a isso, mas outra cousa é
se, tendo em conta a história da colonização e o exemplo dado polo Pontífice de
Roma e que os excessos cometidos por Espanha forma horrendos, não lhe seria
mais conveniente fazê-lo para que esse passado não assumido como o que
realmente foi, não perturbe as relações com uns povos que para os ibéricos
devem ser sócios fraternos enquanto ligados a nós por uma língua e cultura
comum. Deve evitar-se falar de descobrimentos e de dias da raça e da hispanidade,
exaltada a festa nacional e que não se sabe que bem que pode significar e que
trai lembranças que estes povos não podem passar por alto. Deve também isto
servir de reflexão sobre a política que se está a aplicar com Catalunha e com
todos os demais povos do Estado espanhol aos que se quer obrigar a conviver
conjuntamente numas condições forçadas que eles não estão dispostos a aceitar.
A convivência comum é possível se se criam as condições que os conviventes
aceitem voluntariamente, mas uma imposição forçada parece que não vai dar
resultado.
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