A
palavra eutanásia deriva de dous vocábulos gregos: eu, que significa bem, bom,
e thanatos, que significa morte. Portanto, o vocábulo completo significaria boa
morte ou bem morrer, uma morte aprazível, tranqüila, digna, diríamos hoje.
Trata-se duma situação relacionada com a morte e na que o paciente sofre uma
incapacidade total ou está submetido a doenças atrozes e se perderam totalmente
as esperanças de vida. Nestes casos extremos e suficientemente contrastados, o
que cumpre é decidir se se lhe subministram ao paciente, que voluntariamente o pede,
um tratamento que encurta o momento da morte por considerar que a vida deixou
de ser uma vida digna, uma vida humana.
Perante esta questão enfrentam-se
dous modelos éticos:
O
das éticas heterônomas, ou seja, os
modelos éticos no que as normas lhe são impostas ao sujeito por outras pessoas
ou instituições, sejam divinas, e, portanto, religiosas, ou humanas, que mantêm
infantilizado o ser humano e, por isso, tem que receber doutros os preceitos
morais; e o das éticas autônomas,
aquelas nas que as normas são tomadas polos indivíduos isoladamente ou
integrados em grupos de convivência social ou comunidades, que se
auto-determinam a respeito duma coletividade mais ampla. A autodeterminação das
pessoas individuais e dos grupos é uma caraterística distintiva da modernidade,
que arranca com Kant que concebe o homem como um membro legislador universal
num possível reino dos fins, de fins objetivos que não são meios para outra
cousa senão fins em todo querer, auto-legislação que foi assumida polo clima
cultural dos nossos dias. A autodeterminação a respeito do próprio corpo é
especialmente virulenta nas mulheres dos nossos dias, cansas de constatar que
os homens decidem por elas e as submetem a uma violência física que termina
muitas vezes com a sua vida.
Entre
as éticas heterônomas focarei a ética católica, se bem cumpre sublinhar que as
demais religiões também se opõem à eutanásia, ainda que por motivos distintos. Eu
creio detectar nesta ética uma evolução restritiva a partir do concílio
Vaticano II. Na Universidade Pontifícia de Salamanca lecionava-nos aulas de
ética Antônio Peinador, de tendência rigorista, que assistiu em qualidade de
perito ao citado concílio. Depois de falar dos estupefacientes, manifesta que a
eutanásia é lícita sempre que o paciente o exija veementemente: “De aqui que a eutanásia não é lícita quando
o enfermo não está bem preparado para morrer. Mas se se trata dum enfermo que
já proveu suficientemente à sua vida espiritual, deve dizer-se que é lícita, se
o enfermo o exige de boa fé e se tem dores insuperáveis ou máximos. Isto
ter-se-á em conta principalmente se existe perigo de que o enfermo caia em
estado de desesperação” (375).
O
concílio Vaticano II decretou que “todo
o que se opõe à vida, como toda classe de homicídio, o genocídio, o aborto, e
eutanásia e incluso o suicídio deliberado... todas estas praticas e outras análogas
são em verdade infames” (Gaudium ET Spes 27). Manifestar
que estas práticas são infames é mais bem uma manifestação dum sentimento de
rejeição que a exposição duma razão ética pola qual é infame. No Catecismo de
1998 diz-se que “A eutanásia voluntária,
sejam quais for as formas e os motivos, constitui um assassinato. É gravemente
contrária à dignidade da pessoa humana e ao respeito ao Deus vivente, o seu
criador” (2324), mas no caso
de assassinato um dá-lhe morte a outro em contra da vontade deste e com a
finalidade de produzir-lhe um dano irreparável, enquanto que na eutanásia uma
pessoa colabora na morte de outra em conivência com esta e para remediar dores
insofríveis, e, portanto, creio que não se soluciona este problema utilizando
qualificativos tremendistas e assimilando a pessoas bem intencionadas que
pretendem ajudar a outros a morrer dignamente com os maiores delinquentes; não
explicam porque é uma falta de respeito a Deus, e inclusive uma pessoa ousada
poderia dizer que é um indício de malícia que Deus podendo e sabendo fazer
todas as cousas perfeitas, fez um mundo cheio de miséria, malícia e sofrimento.
Assassinato é, não obstante, matar a pessoas em caso de apostasia ou em caso de
resistência a abraçar a religião cristã, como fez o cristianismo no decurso da
história.
O suicídio, pola sua
parte, dizem que é gravemente
contrário `à justiça, à esperança e à caridade. Está proibido polo quinto
mandamento” (2325). Mas aludir ao quinto mandamento suscita a questão do
valor destes mandados e a sua inspiração por Deus, questões muito problemáticas
porque não há indício nenhum de que um ser divino seja o autor, senão que todos
os indícios apontam a que não é assim, e, por outra parte, só seria valido este
argumento para os que os que se proclamam judeus ou cristãos. Aliás, o quinto
mandamento reza: “Não matarás”, e esta é uma formulação tão geral que se
converte em vazia, pois, apesar deste mandado, ninguém põe em questão a
licitude de matar em caso de legítima defesa, em caso de guerra defensiva, etc.
e inclusive distinguem com medalhas a aqueles que mais matem.
Na
Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, Iura et Bona, de 5/05/1980,
aprovada por João Paulo II adota-se um posicionamento integrista, contrário a
qualquer aspiração dos doentes a poder ter uma morte digna, e beligerante para
que os poderes públicos não permitam sob nenhum conceito que se pratique a
eutanásia. “Ora bem, é necessário
reafirmar com toda firmeza que nada nem ninguém pode autorizar a morte dum ser
humano inocente, seja feto ou embrião, menino ou adulto, ancião, doente
incurável ou agonizante. Ninguém ademais pode pedir este gesto homicida para si
mesmo ou para outros confiados à sua responsabilidade nem pode consenti-lo
explícita ou implicitamente. Nenhuma autoridade pode legitimamente impô-lo ou
permiti-lo. Trata-se, com efeito, duma violação da lei divina, duma ofensa à
dignidade da pessoa humana, dum crime contra a vida, dum atentado contra a
humanidade”. Creio que este pronunciamento é singelamente inumano e
totalmente alheio à mentalidade da grande maioria das pessoas humanas nos
nossos dias, que nunca aceitariam que casos como o de Ramón Sampedro ou o de
Anjo Hernández, sejam considerados crimes, o qual indica o afastamento da
Igreja a respeito da maioria social dos nossos dias, que a nível político só
concorda com o ideário do PP e Vox. A Igreja é livre de adotar o posicionamento
que estime pertinente, mas carece de legitimidade para impor o seu ideário ao
corpo social majoritário que se opõe às suas receitas.
A dor ou a vontade do paciente, em
contra do que sustinha Antônio Peinador, não têm para a Congregação citada valor
decisivo algum à hora de decidir sobre esta questão, segundo a citada
Declaração. “As súplicas dos enfermos
muito graves que alguma vez invocam a morte não devem ser entendidas como
expressão duma verdadeira vontade de eutanásia; estas com efeito são quase
sempre petições angustiadas de assistência e de afeto”. Estes clérigos já
sabem qual é a verdadeira e a falsa vontade. As súplicas dos doentes incuráveis
e vítimas de dores insofríveis e inevitáveis não lhe dizem nada aos hierarcas
do Vaticano. “A dor, sobre todo a dos
derradeiros momentos da vida, assume um significado particular no plano
salvífico de Deus; com efeito, é uma participação na paixão de Cristo e uma
união com o sacrifício redentor que Ele ofereceu em obediência à vontade do Pai”.
Simplesmente, tenho que dizer que me parece um texto infundado e sádico, que se
regozija com o sofrimento das pessoas para que prolonguem inutilmente uma vida
que perdeu o seu valor humano e se converteu num martírio para os que sofrem e
para os seus acompanhantes. Colaborar na paixão de Cristo cumpre deixá-lo para
os que crêem na divindade de Cristo e no sadismo dum Deus que quer sacrifícios
humanos e não duvida em sacrificar dum jeito totalmente desnecessário ao seu
próprio filho.
Frente
a esta ética heterônoma pensada por hierarcas religiosos para todas as sociedades
sem distinção de classes, de condicionantes históricos, de valores sociais
comunitários, absolutista, baseada em textos arcaicos de faz três mil anos
supostamente inspirados por uma divindade, e independente da sensibilidade
social, cumpre erguer a bandeira duma ética cívica, laica, autônoma que, a
diferença do que dizia Kant, não significa uma ética individualista e
anti-histórica, senão uma ética comunitária, que muda com o câmbio de condições
socioeconômicas e da sensibilidade social, com objeto de criar uma sociedade
mais fraterna, justa, igualitária e sensível à dor alheia, incluída também a
dos animais infra-humanos.
Esta
ética, naturalmente, tem que promover a vida, o seu valor intrínseco e a
dignidade da pessoa humana. Esta vida não se pode quitar por depressões e/ou
sofrimentos passageiros e/ou curáveis, por caprichos da própria ou doutras
pessoas, por doenças e dores suportáveis, senão só quando a doença é
fidedignamente incurável, desapareceu toda esperança de melhora e é solicitada
em estado de lucidez polo paciente dum jeito contrastado. Estas mesmas condições são válidas para o caso
do suicídio deliberado.
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