Quero expor a conceção
da monarquia em Hegel e Marx, mas previamente considero que é preciso que
explique a sua conceção do Estado no primeiro deles, e, para isso, começarei
por apresentar a noção de Estado que entendo que é a mais aceitada.
Alguns autores põem
o acento no Estado como associação, começando pelo mesmo Aristóteles, enquanto
que outros o põem nos poderes de que se dotou esta associação. Para definir o
Estado, o moralista britânico D.D. Raphael parte da distinção estabelecida por
Tönnies (1855-1936) entre comunidade e associação. A primeira carateriza-se
pela vida íntima, privada e exclusiva, onde predomina o sentimento, ex.: uma
parelha de amantes, um grupo de amigos, os vizinhos duma paróquia rural, etc.,
enquanto que a segunda se define pela vida pública, consciente e deliberada,
baseada preferentemente no interesse, ex.: os partidos políticos, sindicatos,
etc.. Segundo D.D. Raphael, parece "mais adequado considerar o Estado
como uma associação, e não como uma comunidade. É óbvio que o Estado está
organizado; de facto, quiçá seja a mais organizada de todas as formas de
associação. Não resulta fácil, sem embargo, especificar um conjunto de
objetivos concretos que podam ser-lhe atribuídos. A cidade-estado grega
desempenhava um número praticamente ilimitado de funções sociais; e as do
Estado moderno acrescentaram-se enormemente ao longo dos séculos XIX e XX"
(RAPHAEL, D.D.: Problemas de filosofía política, Alianza
Universidad, Madrid 1.983, p. 49-50).
Segundo o fundador
do idealismo absoluto, Hegel, todo se desenvolve a partir do pensamento, da Idéia,
que se converte no autêntico demiurgo e substância do real, por meio dum
processo de auto-desenvolvimento, o qual implica que a Lógica se converte em
Ontologia e a realidade num epifenômeno ou manifestação da Idéia. Em vez de
partir da realidade e procurar representá-la tal qual é o que faz este autor é
partir do conceito e violentar a realidade para que se acomode aos conceitos
previamente formados na sua mente, mas como a realidade é muito mais complexa
que o que o filósofo berlinês se pôde imaginar, o fracasso deste tipo de
filosofia, aliás convertida numa pura logomáquia, está servido, e isso foi o
que lhe passou a Hegel. Vou intentar expor a sua conceção do Estado tal como a
expõe na Enciclopédia das ciências filosóficas, escrita em 1817, e nos Princípios
de Filosofia do Direito, obra escrita no ano 1821.
O Estado á a
personificação da ética, a concreção da idéia ética, é o Espírito ético revelado
como a vontade substancial e consciente de si, e, por tanto, toda outra idéia ética
é inferior ao Estado. Essa vontade identifica-se com o racional em si e por si
da vontade e não é a “vontade comum que resulta das vontades individuais
como conscientes” (P. 258), num contrato, como defendiam Rousseau e Fichte,
mas o racional em si e por si da vontade não é uma expressão operativa, senão
mais bem mística. Como aglutinam as diversas racionalidades individuais para
formar uma unidade? Nos Princípios começa definindo o Estado como a
norma e a lei moral, o padrão supremo da moralidade, á qual está subordinada a
moralidade dos cidadãos. O Estado é a “realidade em ato da idéia moral
objetiva – o espírito moral como vontade substancial revelada, clara a si mesma,
que se conhece e se pensa e realiza o que sabe e porque ela sabe” (P. §
257; “a substância ética autoconsciente” (E. 535). Por tanto, a idéia
moral objetiva realiza-se como Estado; e como a idéia moral objetiva é somente
algo ideal, o Estado viria a ser a atualização duma idéia; em palavras
equivalentes, o Estado é o espírito moral como vontade substancial revelada, ou
seja, que o espírito moral que se identifica com o Estado carateriza-se por
querer e decidir fazer cousas. Essa vontade é clara para si mesma, mas a
maneira de realizar-se é pelo saber e a atividade do indivíduo, que somente
adquire a sua liberdade integrando-se no estado “como a sua essência, fim e
produto da sua atividade”. Por tanto, o indivíduo é o que é se se integra e
tem como fim e como o seu quefazer o Estado, do qual resulta que o Estado é a
essência das nossas aspiração, o grande Leviatão ao que devemos render culto,
por ser o que nos permite ser o que somos. Em vez de afirmar que o Estado é um órgão
criado pela vontade cidadã para regular a convivência grupal, estabelece um vínculo
místico entre o indivíduo e o Estado, convertido numa meta absoluta, imóvel, no
que a liberdade individual obtém o seu valor supremo, “e assim esta meta
final tem um direito soberano a respeito dos indivíduos, cujo dever mais
elevado é ser membros do Estado” (P. § 258). O Estado “é o racional em
si e por si” (P. 258), e os indivíduos reduzem-se a ser membros da
totalidade que é o Estado, sem que a sua individualidade seja anulada, senão que o todo existe e pensa a travês dos indivíduos
concretos, que são conscientes de ser membros do Estado. Ë evidente que o
Estado como instituição não pensa, senão que quem pensa são os indivíduos, mas
o problema reside no protagonismo que se lhe assinala aos indivíduos concretos,
e não só a certos indivíduos concretos como podem ser os dirigentes; se os
indivíduos são cidadãos ativos e protagonistas dos destinos do Estado, ou meros
súbditos, como parece ser o sentir de Hegel. Deste modo, Hegel oferece-lhe um
magnífico serviço ao absolutista Federico Guilherme III, que ele pretendia
restaurar, interessado em subordinar o âmbito da moral e do saber, ao que ele
considerava os supremos interesses do Estado.
Disto desprende-se
que Hegel cria um Estado forte, absoluto e divino, “o Estado é a vontade
divina como espírito presente ou atual que se desenvolve na formação e organização
dum mundo” (P. 270), o máximo órgão decisório não só no térreo jurídico senão
também no âmbito da ética, a máxima expressão da lei moral, além da jurídica,
sem explicitar nenhuma justificação nem racional nem histórica deste asserto, e sem ter em conta
que as relações entre ética e política são, como pôs de manifesto Maquiavelo,
sempre problemáticas e conflituosas, porque um sistema de poder, como é o
Estado, não pode muitas vezes regular a sua atuação por critérios éticos, e
muitas outras vezes tão-pouco está interessado em fazê-lo, e não podemos nunca
suster que todo o que decida o Estado é a norma ética, pois mais que encarnação
do espírito ético, o Estado é a sua negação. Eu entendo que a o máximo
regulador da moralidade somente pode ser a consciência cidadã quando reflexiona
e decide sobre os princípios e normas que devem regular a convivência social
tendo em conta os interesses da maioria social e ajudada por personalidades de
grande sensibilidade moral, como Sócrates, Gandi, Mandela, Teresa de Jesus,
Castelao,...
Hegel concebe o
Estado como um organismo vivo, dotado de essência consciente e pensante, dotado
da sua razão e do seu Espírito, que se carateriza pela atividade, e que se
identifica com o Espírito da nação ou o espírito do povo. “O povo enquanto
que Estado, é o Espírito na sua racionalidade substancial e a sua realidade
imediata. É pois ô poder absoluto sobre a terra. Em conseqüência, em relação
aos outros, o Estado é soberanamente autônomo” (P § 331) Mas esta conceção
tem o inconveniente que dota de ser e entidade a uma estrutura que domina sobre
os indivíduos e á qual estes devem estar subordinados, além que fomenta uma
relações internacionais baseadas na força, no domínio, na expansão e na guerra.
Na realidade somente existem indivíduos, seres concretos que, agrupados em
comunidade, chegam muitas vezes a ter um pensamento majoritário, que alguns
chamam espírito do povo ou espírito da nação, e Hegel concebe que este espírito
do povo se identifica com o Estado, mas, na prática, somente é uma abstração
mais.
O espírito duma nação
determina o seu futuro histórico, pois só reafirmando-se a si mesma frente ás
demais consegue ter um lugar na história, mas esta reafirmação somente terá êxito
se logra dotar-se dum Estado próprio, afirmações com as que coincidimos. “Na
existência duma nação, o objetivo substancial é ser um estado e preservar-se
como tal. Uma nação sem estado (uma mera nação), não tem história falando
estritamente, como as nações que existiram antes do surgimento dos estados e
outras que ainda existem numa condição de estado selvagem” (E. § 549).
Hegel sublinha que
o Estado não se pode confundir com a sociedade civil e ter como objetivo a
segurança e proteção da propriedade e da liberdade individuais, ou seja o
interesse dos indivíduos, porque neste caso um poderia ou não ser membro dum
Estado, senão que, dado que o Estado é espírito objetivo, o indivíduo não tem
objetividade, verdade e moralidade mais que integrando-se num Estado.
Distingue, pois, o estado da sociedade civil para poder estabelecer esse vínculo
essencial e não meramente utilitário entre o indivíduo e o Estado.
Em que se distingue
o Estado da família e da sociedade civil? Segundo Hegel, estas regem-se pelo
direito privado e o interesse particular, enquanto que o Estado “é, duma
parte, uma necessidade externa e um poder mais elevado; á sua natureza estão
subordinados as suas leis e os seus interesses, que dependem dele, mas, doutra
parte, é a sua meta imanente e tem a sua força na unidade da sua meta final
universal e dos interesses particulares do indivíduo, unidade que se expressa
no facto que eles têm deveres para com ele na medida em que eles têm ao mesmo
tempo direitos” (P. § 261). Esta conceção de Hegel implica negar o
protagonismo dos cidadãos, por subordinar os seus interesses aos do Estado,
que, por tanto, dependem dele e é quem decide em última instância o que cumpre
fazer por acima do que pensem os indivíduos. Além que, como dizia Marx, um
Estado que se apresenta, por uma parte, como algo exterior aos indivíduos, e,
pela outra como a sua meta imanente somente pode ser um Estado ideal, porque se
é algo exterior implica que é transcendente e o fim que pode ter alguém a
respeito de algo transcendente nunca pode ser imanente. Desta maneira Hegel
consegue conceber o Estado como algo alheio ás aspirações da cidadania salvo
quando estas coincidam com o hipotético fim do Estado, quando na realidade o
Estado não é outra cousa que o instrumento que a cidadania constrói para
propiciar a convivência pacífica e fomentar e defender, por todos os meios, os
interesses e necessidades do grupo.
Hegel assinala-lhe
como fim ao Estado o interesse geral, expressão que se diferencia do fim
assinalado para o Estado por Tomás de Aquino que é o bem comum, mas cumpre
afirmar que tanto num caso como noutro trata-se dum fim puramente ideal, porque
não existe nem bem comum nem interesse geral, senão que o que existem são
interesses e preocupações de indivíduos concretos, que podem corresponder, em
muitos casos, com os interesses da maioria social, e estes são os que devem
constituir, numa política de esquerdas, o objetivo do Estado, enquanto que, uma
política de direitas defenderá que o interesse geral se identifica
prioritariamente com o interesse do sistema oligárquico. Diz Hegel: “Que o
fim do Estado é o interesse geral enquanto tal e como o interesse geral é a
substância dos interesses particulares, é também a salvaguarda dos interesses
particulares” (P. § 270). Quiçá Hegel tenha um sentido do que eu careço
porque eu enquanto se me fala de substância dos interesses particulares já não
sei o que se quer dizer, e creio que é uma maneira de falar que não conduz a
nenhures. Que lhe digam ás pessoas que foram enganadas como preferentistas ou
aos despejados das suas vivendas como resultado duma crise á que eles são
totalmente alheios, que o Estado está defendendo os seus interesses
substanciais, parece uma brincadeira de mau gosto. Continua Hegel afirmando que
no facto de que o fim do Estado é o interesse geral e, enquanto tal a substância
dos interesses particulares, reside “1. a sua realidade abstrata ou a sua
substancialidade; mas também 2. A sua necessidade tal como se divide nos diferentes
aspetos do seu conceito, aspetos que por esta substancialidade, são outras
tantas determinações fixas e reais : os poderes”. (P. § 270) Segundo
Hegel, a realidade abstrata do Estado, a sua substancialidade é uma necessidade
porque a pura finalidade do Estado e a pura subsistência social somente podem
realizar-se mercê aos diferentes poderes do Estado. Que o Estado é uma
necessidade parece claro, porque toda comunidade precisa dotar-se de órgãos de
poder para a defesa dos seus interesses, alguns dos quais são compartilhados
por todos os membros do grupo, como a defesa frente a um ataque do exterior, e
não há inconveniente em que, neste caso, se fale de interesses gerais, enquanto
que no referido á política interior, há interesses de grupo, individuais,
majoritários e minoritários, e toda medida que poda adotar qualquer governo tem
os seus beneficiários e os seus prejudicados. Este Estado, segundo Hegel, não
deve ser considerado como uma pura realidade, senão que tem que ser considerado
ao mesmo tempo como atividade. Com todo, o problema não está em se o Estado é
necessário, senão que tipo de Estado se precisa.
Mas há ainda um
terceiro elemento do Estado que é o Espírito, que, para este autor se
identifica com a substancialidade do Estado, que se converte num Sujeito
pensante, consciente e autoconsciente, que se sabe, se quer e decide, no qual
fundamenta a autonomia do Estado, por conseguinte converte em sujeito as
categorias lógicas, o pensamento abstrato, ao que submete a realidade concreta.
“3. Ma esta substancialidade do Estado é precisamente o Espírito que, pelo
progresso da civilização deveio Espírito que se sabe e se quer ele mesmo. Assim
o Estado sabe o que quer e sabe-o na sua universalidade, como alguma cousa de
pensado, pois, obra e comporta-se de acordo com fins conhecidos, com princípios
explícitos, e de acordo a regras que são não somente regras em si senão também
regras para a consciência, e igualmente a sua ação sobre as situações e as
circunstâncias existente é feita de acordo ao conhecimento preciso que ele tem”
(P. § 270).
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