O papa Francisco é uma boa
pessoa, mas o pobre pode fazer o que pode fazer porque entre os dogmas
inalteráveis, perenes e imutáveis e os seus confidentes ultra-arcaicos vê-se
totalmente impotente para mudar as cousas qualitativamente e limita-se a gestos
sugestivos, com pouca virtualidade para cambiar as estruturas da Igreja, por
mais que algumas vezes não deixe de surpreender-nos positivamente. Ao ritmo que
vai dentro de cinquenta anos pode que já coincidamos, ainda que não possamos
ter consciência dessa concordância.
A mediados do mês de abril
consolou a um menino, de nome Emanuel, que lhe perguntou se o seu pai que era
ateu e morreu faz pouco estaria ou não no céu, dizendo-lhe que Deus não
abandona às pessoas boas. Eis o que eu já pensava quando tinha vinte e quatro
anos aproximadamente, se bem, como. não era clérigo mais que em projeto, somente
afirmava que “Deus, se existe, nunca pode abandonar a uma pessoa que é boa e
obra corretamente”. Passaram já desde então muito tempo na perspectiva humana,
e agora já não podo crer no Deus no que daquela creia e que não se diferenciava
muito do Deus do papa Francisco. Considero o Deus bíblico judeu-cristão como um
Deus tribal, zeloso, guerreiro, justiceiro, vingativo e intransigente; uma divindade
que mudou no cristianismo num deus uno e trino, um absurdo lógico e metafísico,
que foi asseteado sem trégua polos
dardos dos teóricos filhos seus até a situação agônica em que agora se topa. Este
Deus, como dizia Nietzsche, morreu e somos nós quem lhe demos morte, assassinos
entre os assassinos, mas ainda sobrevive fossilizado em certos sectores
atrasados da sociedade.
Deus,
como dizia Schleiermacher não é mais que uma criatura humana que encarna em si
todo o que o home de cada momento histórico considera o melhor e o mais sublime
e excelso. Para um home duma sociedade tribal, o seu deus será também um representante
dos melhores valores tribais; para um membro duma sociedade guerreia, o seu
deus vai ser um deus guerreiro; para um membro duma sociedade escravista, o seu
deus defenderá a escravidão. Por conseguinte, a criatura humana, chamada deus,
que cria o home hoje tem que ser distinta e estar livre de toda uma série de
conotações arcaicas. Eis a razão pola que o meu deus não pode concordar com o
duma sociedade de faz quatro mil anos, um deus retrógrado e obsoleto, um fóssil
vivente, que não me entenderia.
O papa Francisco louvou Emanuel
e o seu pai dizendo: "Que bonito que
um filho diga que o seu papá era bom. Um bonito testemunho de aquele home para
que os seus filhos possam dizer de ele que era um home bom. Se esse home foi
capaz de ter filhos assim, é verdade que era um grande home". Bonito
louvor o de Francisco, se bem eu precisaria que um home é bom polas suas obras
retas e não pola procriação dos seus filhos, porque a bondade ou malícia
humana, enquanto valor moral dos atos humanos, não se transmite de pais a
filhos, porque não estão enraizados nos genes. Seguramente o papa Francisco
conhece muitos clérigos que tiveram uuns pais de conduta nada edificante.
O
seu louvor da bondade dum home ateu suscita o interrogante de para que serve a
religião. Os adeptos a religiões são mais cumpridores e de maior elevação moral
que os que se declaram ateus ou agnósticos? É uma constatação empírica que os
homes de esquerda se confessam em maior medida ateus ou agnósticos e os de
direita mais crentes, mas todo indica que o valor da conduta moral dos humanos
de direita não ultrapassa o valor da conduta moral dos humanos de esquerda. Se
nos cingimos ao âmbito político, parece que é ao revés. Observamos grosso modo
uma maior corrupção e maior belicosidade e uma menor solidariedade nos home de
direita que nos de esquerda. Todo dá a entender que os políticos e os
militantes de esquerda têm uma ética superior aos da direita, e se isso é
assim, podemos perguntar-nos: para que serve a religião se não contribui a
fazer melhores as pessoas? Um fator causal importante no declínio moral dos
crentes cristãos é o adormecimento da consciência moral provocada pola absurda
teoria de que basta com confessar os pecados a um clérigo, ainda que seja tanto
ou mais criminal como o penitente, para que este fique limpo e possa tomar
possessão da poltrona que lhe permitirá ser feliz contemplando o ser divino no
céu por muito criminoso que tivesse na véspera da sua morte. Como dizia um
clérigo italiano pilhado in fraganti num prostíbulo: “Peco, mas logo
confesso-me”. A utilização fraudulenta da confissão deveria ser motivo
suficiente para eliminá-la duma vez, e se sobrevive é unicamente polo anseio do
clericato de não perder o controle das consciências que historicamente se fez
desde o confessionário, que lhe proporcionou pingues benefícios econômicos.
Ora
bem, o que não explicita Francisco é como concilia a sua afirmação de que Deus
não abandona as pessoas boas com o reiterado e solene pronunciamento
eclesiástico de que extra ecclesiam nulla salus (Fora da igreja nenhuma salvação),
que é considerado, em consequência, como um dogma de fé. Somente a título
indicativo, imos expor algumas destas manifestações.
O VI
Concílio de Toledo de 638, D. 493, disse: “Com
esta fé os corações são purificados (cf. Act 15, 9), com esta as heresias são extirpadas, nesta toda igreja
colocada já no reino celeste e vivendo no século presente se gloria, e não
existe salvação noutra fé: «nem se lhe deu outro
nome aos homes sob o céu, no que seja necessário ser salvos» (Act 4,12)”.
O papa Bonifácio VIII na Bula Unam Sanctam de 18/11/1302, D. 870, declara: “Estamos obrigados a crer e suster pola fé
premente uma santa igreja católica e apostólica e nós cremos firmemente e
simplesmente confessamos, que fora dela não existe salvação nem remissão dos
pecados”.
No IV Concílio de Latrão,
dozeno concílio ecumênico, D. 802) definiu-se: “Uma em verdade é a igreja universal dos fiéis, fora da qual ninguém em
absoluto se salva”. Os pronunciamentos tanto papais como conciliares
continuaram até o século XX. O concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática
Lumen Gentium, 14, declarou que Cristo “confirmou a um tempo a necessidade da Igreja, na que os homes entram polo batismo
como porta obrigada. Polo qual não poderiam salvar-se quem, sabendo que a
Igreja Católica foi instituída por Jesus Cristo como necessária, recusaram
entrar ou não quiseram permanecer nela”. Todos estes pronunciamentos têm
como objetivo apresentar a igreja católica como imprescindível e necessária, e
irão acompanhados de ameaças de condenas eternas por Jofre fervendo a quem não
entre na igreja ou ouse sair.
O posicionamento do papa Francisco é
mais racional e mais sensata que a expressada reiteradamente pola igreja, se
bem tem que pagar o preço para a instituição de que já não poderá suster o lema
“extra ecclesiam nulla salus”, senão que deve mudá-lo polo de “Extra ecclesiam
tota salus”, e, portanto, reconhecer que os homes podem salvar-se igualmente
ainda que militem noutra religião, não militem em nenhuma ou se declarem
abertamente ateus. As obras são as que salvam e não a militância numa ou outra
organização. Para que se imponha o posicionamento de Francisco no seio da
igreja, hoje impossível, tem que acompanhar-se duma reinterpretação histórica
tanto das Escrituras como dos dogmas, na que se considerem estes como
posicionamentos dum determinado momento histórico que nascem e morrem como
expressões duma determinada sensibilidade religiosa e moral, e, ao cambiar
esta, os dogmas também têm que cambiar necessariamente. Só desta maneira se
logrará uma sintonia entre a Igreja e a sociedade que converterá a igreja numa
instituição útil para as pessoas e para a sociedade, deixando de ser esse
cadáver elefantino que permanece em pé durante um tempo depois de morto, que
cumpre arrumar porque pronto fede e já não serve para nada. .
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