A palavra eutanásia deriva de dous
termos gregos: eu, que significa bem, bom, boa, e thanatos, que significa
morte. Portanto, a expressão completa significa boa morte, que nos nossos dias se
chama morte digna. Em realidade não se refere ao ato psicofisiológico mesmo de
morrer, senão ao tempo de vida que precede a morte, quando esta se considera já
inevitável e de curta duração, acompanhada de fortes dores, quando se trata
duma vida desvalorizada, como no caso de Ramón Sampedro, ou duma existência
inconsciente, como a duma pessoa em estado de coma de coma irreversível que
pode que não sofra, mas que é obrigado mantê-la com vida artificialmente apesar
da sua insensibilidade, dos sacrifícios dos seus achegados e das fortes
despensas que isso implica para a coletividade e que repercute num pior serviço
para os demais doentes.
Igual
que os outros temas morais, o da eutanásia refere-se aos valores e, portanto, a
um mundo muito distinto do mundo dos factos, do que existe, e referente a eles
sempre cabe a disparidade de opiniões, porque as proposições relativas aos
valores não se podem submeter a contrastação científica. Dizer isto não
significa que dependem do arbítrio puramente subjetivo das pessoas, algo
parecido ao que passa nos gostos, a respeito dos quais se diz que não há nada
escrito. Se uma pessoa manifesta que ela gosta da cor vermelha, carece de
sentido que alguém trate de convencê-la de que lhe deve gostar a amarela. Nos
valores morais não acontece isto, senão que se uma pessoa manifesta que prefere
um mundo no que os brancos têm mais direitos que os negros, sempre podemos
intentar convencê-lo de que a sua opinião não é a correta, e portanto,
aceitável, recorrendo a uma série de argumentos tirados da etnologia,
psicologia, sociologia, lógica ou a ética. Isto não significa, por outra parte,
que as proposições relativas aos valores sejam universais, de caráter absoluto
e válidas para todo tempo e lugar, pois variam em função das condições socioeconômicas,
políticas, e culturais da comunidade que lhes deu a vida. O quarto mandamento
da Lei de Deus manda honrar aos pais, mas o conceito de pai não é agora essa
autoridade veneranda de que fala a Bíblia, senão que um pai é um ator que
interatua num plano horizontal muito mais igualitário com os seus filhos.
Nos
nossos dias a eutanásia costuma estar proibida em praticamente todas as
legislações, proibição que foi imposta num tempo de forte influência das
religiões na vida pública. Estas costumam suster que a vida é sagrada enquanto
proveniente de Deus, e, portanto, o homem não pode fazer outra cousa que
respeitar a proibição divina. Hoje a tese científica mais aceite em biologia
afirma que a vida surgiu dum jeito espontâneo e azaroso na terra sem necessidade
de nenhuma intervenção divina, e, por conseguinte, existe uma mentalidade mais
receptiva a introduzir pequenos câmbios legislativos num tema sempre difícil e
propenso ao abuso, se não se precisam muito claramente as circunstâncias em que
pode levar-se a cabo, pois não se pode abrir a porta ao assassinato bem-dito
pola lei.
Quando
se abre a porta à legalização da eutanásia levanta-se a questão de quem deve
decidir sobre a sua legalização e se nesta decisão a pessoa tem algo que dizer
ou se mantém a via impositiva atual na que a decisão individual não conta para
nada. Deve ser a coletividade social por meio dos seus representantes, em base
a «um homem, um voto», ou a coletividade social na que certos atores, individuais ou grupais,
tem um voto qualificado? As religiões são organizações totalitárias, dito seja,
sem ânimo desprezativo, ou seja, são instituições que pretendem abarcar todos
os aspectos da vida do indivíduo, e, como seria de esperar não podiam deixar os
últimos momentos em mãos da pessoa individual. Desde a Reforma protestante, o
indivíduo constituiu-se em eixo da vida pública em detrimento da coletividade,
e seria de esperar que os partidos políticos mais defensores do rol do
indivíduo na vida pública, que são os partidos liberais, defendessem o direito
do indivíduo a decidir sobre como deve ser a sua morte se se dão certas
condições, mas os partidos políticos não se movem sempre pola coerência senão
também polo interesse da sua massa de votantes, neste caso de tendência
conservadora e mais receptivos à ideologia religiosa imperante. Isto leva a que
direitos de caráter individual como o do aborto e da eutanásia sejam defendidos
por partidos coletivistas, como são PSOE e UP,e não por partidos liberais como
Vox, PP, C’s.
A
igreja católica, como tal, posicionou-se sobre a eutanásia por primeira vez no
Concílio Vaticano II, na constituição Gaudium et Spes de 1965, na que considera
que a eutanásia, igual que o homicídio, genocídio, aborto e suicídio
deliberado, é moralmente inaceitável enquanto que é contrária à vida mesma. A
este respeito cumpre dizer que é indicativo duma grande insensibilidade moral
meter no mesmo saco infrações tão dispares como a do aborto e a do genocídio ou
dum assassinato, igual que não se pode meter no mesmo saco a consideração moral
da ação dum rouba galinhas que a duma pessoa que viola e mata uma mulher. Ambas
são moralmente inaceitáveis, mas metê-las no mesmo saco só pode levar à
confusão e a distorcer a realidade. Em segundo lugar, não toda ação contrária à
vida é moralmente inaceitável, pois uma execução que implica a morte do reio
também é contrária à vida, e, não obstante, a pena de morte sempre foi
defendida polo catolicismo até tempos muito recentes, em base ao argumento de
que há crimes que somente se podem coibir com a morte do reio, utilizando
claramente um argumento teleológico ou consequencialista, apesar de que a
igreja condenou o teleologismo moral ao que tanto recorreu na sua praxe
histórica. Portanto, teria que explicar que num caso uma morte é boa e se
bem-diz um mal para obter um bem, e, noutro caso, em que também se efetua um
mal para conseguir um fim é moralmente inaceitável. Na sua história a igreja
praticou homicídios a eito do que são um testemunho eloquente o que passou nas
Cruzadas, a Inquisição, e as diversas guerras nas que ela interveu ou
participou ativamente.
A igreja defende uma mística do
sofrimento totalmente inaceitável por ser contrária à razão e ao anseio dum
mínimo de bem-estar ou felicidade por parte dos seres humanos e inclusive diria
que de todo o reino animal. Regodear-se do sofrimento alheio é um claro indicativo
de masoquismo e de baixeza moral. Como diz Tomás de Aquino, o homem aspira dum
jeito inato à felicidade e esta aspiração foi inserida nele polo seu criador,
segundo a mesma religião cristã, e o sofrimento é inexplicável mesmo no projeto
divino. Mas o que nunca se pode fazer é adotar uma mística do sofrimento que o
bendiga e que insensibilize as pessoas perante o seu problema tanto no ser
humano como em todos os animais que são capazes de sofrer, e perante o qual a
instituição eclesial deu provadas mostras de falta de empatia. A igreja
considera que a ação mais meritória de Jesus não foram os seus milagres ou a
sua rebelião contra a injustiça, senão o seu sofrimento e morte na cruz em
cumprimento dos desejos dum Deus sedento de sangue humana e desejoso de
contemplar a submissão, rebaixamento, aniquilação e obediência das suas
criaturas mais elevadas, para ressaltar o seu poder e a sua glória. Igualmente,
as ações mais meritórias do santos não são as ações em benefício da comunidade,
senão o seu sofrimento e, já como ato culmen, o martírio. Ë bem pequeno este
Deus que necessita que tantos sofram e morram por ele. A Igreja não pode
pretender que também todos os seres humanos sofram inutilmente pretendendo
emular ao Cristo que sofre em contra da sua vontade.
A igreja defende que nunca se devem
interromper os cuidados ordinários que se lhe devem ao paciente, ainda que a
morte seja iminente, por muito que este sofra ainda que sim se podem omitir os
cuidados extraordinários onerosos, perigosos ou desproporcionados, sempre que o
aceite o paciente ou os que decidem por ele. Admite o uso de cuidados
paliativos, ainda que possam encurtar a vida do paciente, mas isto não resolve
problema e não afeta a casos como o de Sampedro ou os dum doente em estado de
coma.
Numa
época como a atual, marcada pola noção de autodeterminação pessoal e de
laicismo social, a eutanásia tampouco se pode deixar em mãos das confissões
religiosas, inimigas viscerais de qualquer classe de auto-determinação sob o
pretexto de que representam a voz do Altíssimo, e, portanto, a cidadania
institucionalizada deve recuperar a sua voz e a sua decisão a nível comunitário
para estabelecer um marco legal no que as pessoas concretas possam exercer o
seu direito de autodeterminação sob certas condições. Esta autodeterminação
deve desenvolver-se a um duplo nível: a) Como autodeterminação conjunta junto com todos os demais cidadãos para
fixar o marco legal no que se insere a prática da eutanásia, e b) Autodeterminação individual para que a
pessoa decida se quer ou não acolher-se a este marco ou decide sofrer
estoicamente para seguir vivendo ou pôr fim a um sofrimento que considera
inútil e sem sentido. Por conseguinte, qualquer cristão que quer imitar o
sofrimento de Cristo, mas que tem, ao mesmo tempo, tendências democráticas não
teria por que opor-se a esta regulação social da morte digna. O seu plano de
vida fica respeitado e ele deve também permitir que o seja o dos demais, sem
pretender impor a sua conceção ao resto da sociedade. Portanto, a decisão sobre
os casos em que os cidadãos podem recorrer à eutanásia tampouco deve ficar ao
albur de cada um dos cidadãos a título individual senão que deve ser obra de
todos os cidadãos em referendo ou dos seus representantes políticos e desde
logo num contexto democrático e participativo de todos. Numa sociedade plural
como a dos nossos dias, somente uma ética de caráter laico pode dar, nos dias
de hoje, uma resposta socialmente apropriada a este problema.
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