29 feb 2016

Demanda contra Rita Maestre



O grande poeta Curros Enríquez teve também que comparecer a juízo por ter escrito a sua poesia de protesta social frente á injustiça Mirando ao chão, na que, entre outras cousas, Deus dizia “-Que leis, nem que raios! (Deus disse entre dentes). Se valem três pitos, que o demo me leve”, mas foi absolto porque singelamente era um desatino a perseguição desatada contra ele por pessoas que não querem entender as figuras retóricas da criação literária. O caso de Rita Maestre é outro exemplo de judiciarização de temas que nunca deveriam seguir esta via. A demanda contra ela, presuntivamente por ter cometido atos de profanação em ofensa dos sentimentos religiosos, é sintomático do estado de decadência e perversão moral e jurídica a que chegou a sociedade espanhola sob a égide da classe oligárquica dominante com a comparsa do monolitismo ideológico imposto pela Igreja católica. É difícil entender como se chegou a esta perversão ou inversão dos valores morais e dos códigos jurídicos que os consagram, deixando-os de patas para o ar, castigando com penas abusivas a quem comete atos nímios ou insignificantes, ao tempo que os grande delitos contra os interesses coletivos ficam impunes ou são indultados os seus autores.

Foi demandada pela via penal pelo partido ultra-direitista herdeiro de Força Nova, AES, (Alternativa Espanhola _ A Alternativa Social Cristã), que se declara defensor da vida, valores humanos e unidade de Espanha; é de tendência ultra-conservador, católico, neo-franquista, centralista, democrata cristã, euro céptico e ultra-nacionalista espanhol; e pelo Centro Jurídico Tomás Moro, de orientação conservadora cristã, com sé nos EEUU, que pretende defender a liberdade religiosa dos cristãos e restaurar os valores humanos de todos os tempos e proteger a santidade da vida humana, que costuma fazer interpondo demandas a eito contra os médicos que pratiquem abortos. Tem como lema «A espada e o Escudo para as Pessoas de Fé», o qual já nos remete á tradicional conivência do trono e o altar da história espanhola. Acusam-na de infringir o estabelecido no artigo 524 ou, alternativamente, o 525 do Código Penal, que se insere no cap. IV, Sec. 2ª: que se intitula “Dos delitos contra a liberdade de consciência, os sentimentos religiosos e o respeito aos defuntos”.

 O artigo 524 estatui: “Quem num lugar destinado ao culto ou em cerimônias religiosas executar atos de profanação em ofensa dos sentimentos religiosos legalmente tutelados será castigado com a pena de prisão de seis meses a um ano ou multa de 12 a 24 meses”. O artigo 525 estabelece: “1. Incorrerão na pena de multa de oito a doze meses os que, para ofender os sentimentos dos membros duma confissão religiosa, façam publicamente, de palavra, por escrito ou mediante qualquer tipo de documento, escárnio dos seus dogmas, crenças, ritos e cerimônias, ou vexem, também publicamente, a quem os professam ou praticam. 2. Nas mesmas penas incorrerão quem façam publicamente escárnio, de palavra ou por escrito, de quem não professam religião ou crença alguma”. Na redação do Código de 1983, já em plena democracia não figurava o apartado 2, e, por tanto em realidade não tratava para nada da liberdade de consciência em geral senão somente da proteção das crenças religiosas, que é outro cantar. Tão-pouco protegia em geral os sentimentos religiosos, nem muito menos os sentimentos humanos, senão somente os sentimentos religiosos das confissões reconhecidas, nisto em concordância com o atual. Parece que os não praticantes das religiões não reconhecidas e os ateus não tinham sentimentos que proteger, e, por tanto que se podem calcar impunemente. Os ateus que em Europa já são um trinta por cento e com tendência crescente, os defensores das religiões naturalistas, também em ascenso e outros grupos como os mações, não tinham nenhum direito á proteção dos seus sentimentos. Na redação atual eu intuo os efeitos da pressão dos terroristas do Estado Islâmico, e creio que é uma normativa que pode prestar-se para os maiores abusos..

Os factos, segundo o fiscal, são que a acusada, junto com outras mulheres se despiu o dorso, ou seja, que amostrou o busto e pôs as tetas ao descoberto, em presença do sacerdote e vários estudantes que se encontravam rezando, ao tempo que proferiram algumas frases: "Imos queimar a Conferência Episcopal", "O papa não nos deixa comer-nos as ameixas", "Menos rosários e mais bolas chinas", "Contra o Vaticano poder clitoriano", "Ardereis como no 36" e "Sacai os vossos rosários dos nossos ovários". A acusada nega que disser em nenhum momento "Ardereis como no 36". Em primeiro lugar, deveríamos ter uma definição operativa do que é profanar, porque em caso contrário as sentenças vão depender do critério subjetivo do julgador, e não a temos. Um dicionário Larousse francês de 1954 define-a como “tratar com desprezo as cousas santas, empregá-las num uso profano”. Parece evidente que mostrar o busto despido não significa tratar com desprezo o santo, e não é nenhum delito nem falta, e, por tanto, não pode, de por si, constituir uma profanação dum lugar sagrado, e se não é uma profanação não pode ser uma profanação em ofensa dos sentimentos religiosos. Se fosse uma profanação entrar despido numa Igreja, haveria que pedir-lhe contas a Deus por ter criado aos seres humanos despidos e com os órgãos sexuais ao descoberto, e, por tanto, a situação normal do home querida por Deus seria andar despido. Em realidade, a vestidura é algo que, entre os animais, somente os seres humanos se dotaram dela, porque nascem mais desprotegidos pela natureza contra o frio que os demais animais, mas é algo cultural, e ainda há sociedades no dia de hoje, que vivem total ou quase totalmente despidas, cada vez menos porque o sector têxtil quere vesti-los a toda custa e quanto mais melhor. Andar despido é algo que pode atentar contra o pudor nas nossas sociedades, e muitos sentimo-nos incômodos nestas situações, especialmente eu que sempre fui mui pudibundo, mas não é algo imoral em si. É uma regra de trato social vestir como acontece em cada situação, que devemos respeitar habitualmente, mas isto não implica que devamos considerá-lo como algo sagrado obrar assim ou imoral o seu incumprimento. Os seres humanos destes povos primitivos não poderiam entrar numa Igreja? Alguém se atreve a dizer que ofenderiam a Deus? Em que consistiria a ofensa contra Deus se entram numa igreja como Deus os traiu ao mundo? Não se pode combater o intrusismo religioso nos espaços laicos quando deveria estar instaurado desde faz já muito tempo? Os que pedem algo legítimo, como que se respeite o seu direito a viver num estado a-confessional, não tem legitimidade para fazê-lo? Entrar na Igreja vestido como um o faz habitualmente não pode ser indecente, e somente pelo puritanismo paulino se pode explicar essa obsessão porque as mulheres se cubram, em sinal de respeito e submissão ao seu marido. Todos fomos testemunhas de como entravam as nossas mais ou avós nas igrejas e o hábito que utilizavam para banhar-se, mui parecido ao que hoje fazem as muçulmanas, e que nos nossos dias ninguém aprovaria. Todo isto é fruto da religião misosexual judeu-cristã que considera o sexo como algo pecaminoso e toda relação sexual que não tenda á procriação como algo moralmente desordenada. Agostinho de Hipona inventou o pecado original e defendeu algo tão insensato como afirmar que as relações sexuais, no que tem de libidinosas, são fruto do citado pecado. 

Alguns dizem que no caso de Maestre há uma colisão entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, mas isto é totalmente incorreto, porque ninguém lhes negou aos católicos praticar o legítimo exercício do seu culto e religião senão que somente se protestou pela facto de que querem ocupar espaços públicos que não lhe correspondem. A liberdade religiosa não implica que um poda realizar as práticas de culto e oração em qualquer lugar, senão que têm direito a professam a religião dentro dos limites fixados pela lei. O que se observa é uma dicotomia entre o que estabelece a CE sobre a liberdade de expressão e o que estabelecem os artigos 524 e 525 citados, que a limitam. Disto pode concluir-se que a liberdade de expressão deve sempre prevalecer, naturalmente se é pacífica e a finalidade é lícita, o qual implica que o Código Penal pode ser inconstitucional, e isso é o que eu opino. A CE, com mui bom critério, não fala para nada dos sentimentos, nem muito menos dos sentimentos religiosos, e se entramos por esta via estamos perdidos. Quem mede os sentimentos? Tão pouco se pode dizer que o ato se fizer para ofender a ninguém senão que se fez para reclamar um direito legítimo que é a separação do âmbito religioso e o âmbito civil, por parte de pessoas que se sentem molestas porque não se cumpra a lei e se termine duma vez com o nacional catolicismo. A religião tem que circunscrever-se ao âmbito do privado e voluntário e não impor-se de facto socialmente. Ainda que fossem verdade as frases pronunciadas, somente se pode dizer que constituem o sintoma dum descontento com a política da Igreja sobre a sexualidade, que se quer impor a todos os demais coativamente.  Aliás, todo o mundo sabe que as proclamas num contexto duma manifestação de protesta não há que tomá-las num sentido literal, senão que se fala numa linguagem hiperbólica. Se se tomassem na sua literalidade todo o que se diz nas manifestações, haveria que meter no cárcere á metade dos espanhóis, pois todos proferem habitualmente frases semelhantes nestas protestas, e quase nunca desencadeiam ações de violência.

Os demandantes são grupos radicais, extremistas, que querem manter uns valores pré-constitucionais e alheios ao sentir da grande maioria da população. Foram desautorizados mesmo pelo arcebispo de Madrid, Carlos Osoro que disse que "a vezes, a uma idade determinada, todos fazemos cousas que depois descobrimos que não deveram fazer-se assim ou que deveríamos respeitar outras cousas". Evidentemente, é uma posição mais aberta que a dos denunciantes, mas cumpre perguntar se não pode fazer nada para que estes grupos ultra não proliferem no seio da Igreja. Aliás, eu considero que o arcebispo não tem nada que perdoar ou desculpar, porque isso implicaria reconhecer que há uma culpa ou pecado prévio, e isso, segundo o meu critério, não é certo. De todo este assunto, a mim pessoalmente o que mais me molestou foi ver a uma moça nervosa e medrosa de ser condenada por um tribunal ante o qual nunca deveria ter comparecido. 

Respeito temos que praticá-lo com todos e em todo momento, mas, tocante á crítica e á profanação dos sentimentos religiosos, não vale que a Igreja intente converter-se num gueto protegido frente á primeira, e com poder omnímodo para criticar a todos os demais, e, por outra parte, em mestre de respeito para com a segunda. Quiçá deviam praticar um pouco a memória histórica e compreenderiam que as suas petições a este respeito não estão justificadas. Só por citar alguns textos, podemos constatar que o fundador do cristianismo, Jesus de Nazaré, e João o Batista, não aforraram desqualificações arreio, a respeito das quais se pode dissentir da sua respeitabilidade, contra as elites religiosas judias, como quando o segundo, “Vendo vir muitos fariseus e saduceus ao batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira iminente?”. E Jesus proclamava: “Porque eu digo-vos que se a vossa justiça não é maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus”. “¡Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que purificais por fora a copa e o prato, mentes por dentro estão cheios de rapina e intemperança! Fariseu cego, purifica primeiro por dentro a copa, para que também por fora fique pura”. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais aos homes o Reino dos Céus! Vós certamente não entrais; e aos que estão entrando não lhes deixais entrar. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que recorreis mar e terra para fazer um prosélito, e, quando chega a sê-lo, fazei-lo filho de condenação o dobre que vós! Ai de vós, guias cegos, que dizeis: «Se um jura pelo Santuário isso não é nada; mas se jura pelo ouro do Santuário, fica obrigado”» Insensatos e cegos! Que é mais importante, o ouro ou o Santuário que faz sagrado o ouro?”. Isto vai ou não contra os sentimentos de confissões legalmente tuteladas?

A partir do Edito de Tessalonica, do ano 380, que declarou como religião oficial a facção cristã que se impôs em Niceia, vai desencadear-se a maior repressão dos dissidentes, incluídos outras facções cristãs, e a maior profanação em ofensa contra os sentimentos religiosos que recordam os séculos. Não só se perseguia aos maniqueus e pagãos e se destruíam os seus templos senão que eram todos eles, junto com os irmãos cristãos doutras tendências, excluídos de qualquer âmbito da conivência humana. Numa dessas perseguições, incitada pelo patriarca de Alexandria, Cirilo, perderia a vida a reputada filósofa e astrônoma Hipátia. Como exemplo, imos citar somente um texto que resume as penalidades a que eram submetidos pelos chamados católicos, dos que os atuais hierarcas são herdeiros diretos, os que dissentiam do dogma oficial no Império Romano. O 24/02/484 o rei vândalo Humerico, de tendência ariana,  publica um edito no que censura os bispos ortodoxos, ou seja, os católicos,  reunidos no concílio de Cartago, porque nem no primeiro nem no segundo dia de reunião provaram o homoousion, ou seja, a consubstancialidade do Filho e do Padre ou noutras palavras que Jesus é filho de Deus com a mesma natureza que o Padre, desde as Sagradas Escrituras ainda que foram intimados a fazê-lo, senão que, pelo contrário, ocasionaram uma revolta e um tumulto entre a população. Em conseqüência ordenou que as suas igrejas permanecessem cerradas até que viessem e tomassem parte na discussão. E, em represália com o comportamento da Igreja romana e dos imperadores, decidiu aplicar no seu reino africano contra os católicos as mesmas medidas que o imperador romano, em conivência com a Igreja, aplicavam nos territórios que controlavam: “Além disso, as leis que os imperadores romanos, desencaminhados pelos bispos, promulgaram contra os heréticos, seriam dirigidas agora contra os defensores do homoousion. Assim, foi-lhes proibido ter reuniões onde quer que fosse; não teriam nenhuma igreja em nenhuma cidade ou vila; não tomarão parte em nenhum batizo, ordenação, ou cousa semelhante; e no caso de que continuem na sua perversidade, serão castigados com o exílio. Aliás, as leis dos imperadores romanos contra os laicos heréticos estarão em vigor, e serão privados do direito a vender, testar, e suceder em legados, heranças, depósitos, etc.; os que ocupem dignidades e ofícios serão despojados deles, e serão declarados infames. Todos os livros nos que defendem os seus erros (a doutrina nicena) serão queimados. Porém, qualquer que desista do seu erro antes do primeiro de junho, será livre de todos os castigos. Finalmente, todas as igrejas, junto com as propriedades eclesiais, em todo o reino, serão transferidas ao verdadeiro (proprietário) isto é, os bispos e sacerdotes arianos. Além disso, o rei Humerico buscou os bispos católicos presentes em Cartago nos seus alojamentos, privou-nos das suas propriedades, os seus criados, e cavalos, e expulsou-nos da cidade. Quem quer os recebesse ser-lhe-ia queimada a sua casa. Mais tarde foram todos excomungados; a maioria sendo enviados a diferentes partes de África, onde teriam que viver como a gente do lugar sem nenhuma função espiritual, enquanto que quarenta e seis foram enviados á ilha de Córsega, onde tinham que cortar mata para as ovelhas reais”. (HEFELE, CHARLES JOSEPH, A Hstory Of The Councils Of The Church, liv.12, sec. 214). Podemos também perguntar-nos se as cruzadas, inquisição ou extermínio dos índios americanos vai ou não contra o sentimento religioso. Vocês que pensam?




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