Os que, pola nossas
circunstâncias vitais estudamos em Seminário e em universidades católicas,
recebemos um ensino desfasado, antiquado, carente do mais mínimo rigor,
autoritário e antipedagógico. O ensino lecionava-se em latim e a grande maioria
do professorado não explicava e limitava-se a perguntar a lição a uns alunos
aos que não se lhe dava possibilidade nenhuma de participação. As matérias de
filosofia focavam-se dum modo apologético para servir de base á teologia.
O
evolucionismo, que se estudava-se em psicologia filosófica, era considerado
como uma teoria gratuita e não comprovada cientificamente. Em cosmologia admitia-se
o atomismo democrítico para a composição dos corpos, junto com a teoria
peripatética do hilemorfismo, ou seja, a teoria que diz que todos os corpos
estão compostos de matéria e forma. Punha-se, por tanto, uma vela a Deus e
outra ao diabo e assim todos contentos, sem importar que ambas teorias fossem
contraditórias.
A
teologia reduzia-se a uma justificação dos dogmas e com esta finalidade
interpretavam-se os textos bíblicos e os escritos dos Santos Padres para que
dissessem o que mais tarde disseram os concílios aceitos pola facão dominante
na Igreja, porque os outros eram rebaixados á categoria de conciliábulos e não
se lhe concedia o mais mínimo valor.
As
vicissitudes e o devir intelectual dos que partilhamos essa formação foram mui
distintos e, enquanto uns permaneceram ancorados nesse esquema dogmático e
acrítico, outros, adentramo-nos em mares muito mais procelosos e abertos,
exploramos alternativas que antes nos foram vedadas e construímos novos ideais
e novas cosmovisões.
Quando nos encontramos com
teólogos que permaneceram nas posições que nós abandonamos e dialogamos entre
nós, muitas vezes ficamos surpreendidos de certas teses que os nossos
interlocutores defendem. Isto foi o que me passou a mim faz algum tempo
conversando com um teólogo galego com quem abordamos, entre outros, o tema do
papado e o dogma da Trindade. Entre outras teses dignas de comentário,
espetou-me que o papa era elegido democraticamente, que era infalível se ele
avisa que vai falar dum modo infalível e que a Trindade já estava nos
evangelhos. A isto é ao que me proponho responder neste artigo.
Parece que o meu interlocutor
não se precatou de que presta obediência a um estado estrangeiro, que se chama
Estado do Vaticano, que tem como modelo de Estado uma monarquia absoluta de
caráter medieval, que se carateriza por ser, na atualidade, o único estado no
mundo que carece da mais mínima separação dos poderes legislativo, executivo e
judicial, pois estes três poderes são exercidos pola mesma pessoa que é o Chefe
do Estado do Vaticano, ou seja, o Romano Pontífice. Por certo, o título de
Pontífice, ou construtor de pontes, era um título que se arrogavam os
imperadores romanos e que o criminal papa São Dámaso se apropriou para si,
apesar de não ter nunca construído ponte alguma. Isto não é de surpreender
quando vemos como se apropriam nos nossos dias de Igrejas e mesquitas, apesar
de não tenham posto um cêntimo na sua construção. O Estado do Vaticano é muito
pequeno e só tem jurisdição sobre a cidade do Vaticano, resto dos Estados
Pontifícios medievais, cuja possessão foi legitimada pola Igreja em base a
documentos falsificados, neste caso, mercê á chamada Doação de Constantino, documento inventado nos séculos VIII-IX e
atribuído falsamente ao papa Silvestre I (314-335). Neste documento, além de
reconhecer a Silvestre I como soberano, se lhe doava todo o Império Romano de
Ocidente, incluída a cidade de Roma, para constituir o Patrimônio de São Pedro,
apóstolo do que não se sabe que tivesse patrimônio algum. Deveria, pois, saber
também o meu apreçado interlocutor que a Igreja pretendia criar na Idade Média
uma teocracia que dominasse sobre todo o Ocidente e que constituísse a base dum
domínio universal do clero vaticanista. Um Deus no céu e um Pontífice na terra,
e todo ad majorem Dei gloriam.
A
Igreja nunca pretendeu ser uma democracia, porque considera que lhe vai melhor
guiando-se polo seu advogado, que é o Espírito Santo, que ainda que não se
possa demonstrar que existe, tampouco se pode demonstrar que não existe, e
então erre que erre que existe porque já o dizem os Santos Padres. Como a democracia
é governo do povo, o mínimo que podem fazer os membros de qualquer sociedade
para ser democrática, é que os seus membros participem na eleição dos seus
dirigentes e que a autoridade destes derive dos citados membros. Pois bem, Pio
VI qualificou como herética em 1794 a afirmação do sínodo de Pistoia, que dizia
que “da comunidade dos fieis se deriva
aos pastores a potestade do ministério e regime eclesiástico” (D. 1502). O
Romano Pontífice recebe de Cristo, na pessoa de Pedro, e não da Igreja, a potestade
de ministério pola que tem poder em toda a Igreja. (D. 1503). A Igreja tem
poder, segundo ela, para exigir obediência coativamente incluso além das
questões referidas á fé e costumes (D. 1504-1505). E se ficava alguma dúvida
véu dissipá-la o concílio Vaticano I, que estabelece o primado de jurisdição
universal e não só de honra do Romano Pontífice sobre todos os demais bispos,
quer tomados individualmente quer coletivamente. (D. 1822-1823). Portanto, o
papa tem um poder que ultrapassa ao de todos os bispos isolados ou reunidos em
concílio, e pode desmontar o que neles se acorda, como fizeram João Paulo II e
Bento XVI com o Vaticano II. A Igreja, pois, não só não é democrática, senão
que não pode ser democrática se respeita a sua própria doutrina, mas isto que é
um princípio que todos os membros de qualquer sociedade deveriam ter claro,
resulta que para alguns não só não é evidente, senão que se atrevem a
qualificar de democrática a eleição dum governante dum estado que é elegido por
uns quantos septuagenários que não representam a ninguém. Isto é um puro
masoquismo mental produzido por um itinerário intelectual totalmente acrítico.
À
minha afirmação de que a infalibilidade, também nas questões de fé e costumes,
do Romano Pontífice foi falsada amplamente pola história, como se desprende da
sua atuação que se detalha em O
cristianismo contra a ciência, da minha autoria, retruca-me o meu afável
interlocutor que o papa é infalível, mas para que os seus vereditos sejam
infalíveis ele tem que advertir previamente que vai falar infalivelmente, e
que, de momento, somente o fez quando declarou o dogma da Imaculada Conceição.
Como vemos, não se consola quem não quer e inventiva não falta, porque alguns
para demonstrar algo que não tem o mínimo apoio bíblico e que repugna à razão e
vai contra os dados históricos, não duvidam em inventar pretextos extravagantes
para sair do apuro. Os documentos eclesiais dizem que o magistério infalível refere-se
a questões de fé e costumes e exerce-se polo juízo solene ou polo magistério
ordinário, e em nenhum documento se diz que tenha que anunciar a golpe de
corneta que vai falar infalivelmente, o qual, por outra parte, seria absurdo e
ridículo. Se fosse um exemplo de juízo infalível o dogma da Imaculada
Conceição, creio que o papa integrista Pio IX faria muito melhor em ficar
calado, porque para esta viagem não se necessitavam semelhantes alforjes,
porque este é um dos dogmas mais questionados nos nossos dias, porque a gente
resiste-se já a aceitar qualquer cousa por absurda que seja. Tenho previsto
falar deste dogma num livro de próxima aparição, e já não descendo a uma
análise polo miúdo.
Diz
o meu interlocutor que o dogma da Trindade já figura nas Escrituras, e eu retruquei-lhe e retruco-lhe que não só não está
nas Escrituras, entendendo por tais
tanto o Antigo como o Novo Testamento, senão que não está
tampouco na patrística pré-nicena. Foi definida pola primeira vez polo concílio
de Alexandria do ano 362 e ratificada polo concílio ecumênico de Constantinopla
do ano 381. Em Niceia define-se a consubstancialidade do Filho e deixou-se no limbo
o status do Espírito Santo. É certo que no evangelho se fala de triadas
formadas polo Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas isto não significa que se
defina a trindade cristã, que é um dogma que afirma que existem três pessoas
divinas numa única substância, e isto foi uma proposição da autoria do fanático
e intransigente Santo Atanásio de Alexandria, que dividiu a comunidade cristã
em duas facões: a dos nicenos e a dos arianos, que se saldou com um dos maiores
etnocídio que recordam os séculos. As
triadas foram muito freqüentes tanto nas religiões antigas como na
filosofia, surgidas polo especial apego ao número três, e a triada cristã
foi copiada dos gregos, e em concreto de
Filão de Alexandria. Em nenhum caso estas triadas implicavam que os seus
componentes tinham a mesma substância, como diz o cristianismo da Trindade, e
isto é a novidade e, por outra parte, o que a dota de total impenetrabilidade e
opacidade para qualquer mente racional.
Contudo,
se os argumentos anteriores não lhe parecem suficientes, devo dizer que no
concílio de Sírmio do ano 357 somente se fala de duas pessoas porque a
consubstancialidade do Espírito Santo ainda não estava definida. “E todos sabem
a doutrina católica, que há duas pessoas do Pai e do Filho, que o Pai é mais
grande, o Filho submetido com todas as cousas que o Pai lhe submeteu”. Este foi um concílio que imos as teses
semi-arianas, se bem pretendia também contentar a Ário reconhecendo que o Pai é
superior ao Filho, tal como defenderam sem exceção de nenhuma classe todos os
Padres pré-nicenos, compromisso que não seria aceito polos nicenos que se
consideravam em possessão da verdade plena, mas que, deixa constância, sem
dúvida nenhuma que a esta altura só se reconheciam duas pessoas da divindade,
tratava-se, pois, duma Bindade e não uma Trindade. Eu rogaria-lhe, pois, ao meu
amável discrepante que, além dos escritos que lhe ofereciam no ensino filtrador,
limitador e manipulador que recebemos, leia também os dos que nos ocultavam
e/ou criticavam, e seguro que chegaremos a aproximar as nossas posições. De todo isto falo no meu próximo
livro de próxima aparição e convido o meu interlocutor a que refresque a sua lembrança
dos temas dogmáticos para criticar por ativa, passiva e perifrástica o que nele
afirmamos. Para isto é para o que temos a mente e não para espalhar incenso aos
quatro ventos.
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