Falava faz uns dias com um teólogo dogmático «progre»,
entendendo por tal uma pessoa que estudou teologia e que se dá ares de progressista
que se traduz numas formas e talante que pretendem passar por mais simpáticas,
mantendo no fundo e na superfície o mesmo discurso e a mesma mensagem obsoleta
de sempre e disse-lhe que a Igreja não tem um verdadeiro humanismo, entendendo
por tal uma conceição do ser humano que respeite e defenda a sua natureza
psicofisiológica integral. Ele retrucou-me dizendo que encontrara o verdadeiro
humanismo nas hostes católicas, entendendo por humanismo umas relações
cordiais. Tive que responder-lhe que infelizmente as minhas experiências não
foram nesse aspecto mui gratificantes, e, por outra parte, esse não é o tema
porque não se trata onde um estabeleceu relações de amizade, senão qual é a
ideologia cristão sobre o ser humano.
A natureza humana é uma realidade terreal, quer dizer,
que o humano é um ser que vive neste mundo, vive no planeta terra e tem como
missão lutar para fazer este mundo mais habitável para si e legar-lho também mais
habitável para às próximas gerações. Isto significa que o ser humano deveria
ser um ser radicalmente ecológico, um ser preocupado pola preservação da
diversidade da espécies e pólo equilíbrio dos ecossistemas e dos seus
componentes e, portanto, do equilíbrio entre os animais, vegetais, recursos
hídricos e composição gasosa da atmosfera.
Um verdadeiro humanismo tem que tomar o ser humano como
centro e não seres alheios que rejam a sua vida. O ser humano tem que ser
autônomo, quer dizer, com um centro de decisão desde si mesmo, e não
heterônomo. É cada um de nós quem tem que decidir se deve referir a sua vida e
o seu ser a seres transcendentes ou à própria natureza pessoal e/ou cósmica. A
nossa razão e o nosso ser nunca se podem hipotecar. Quando o Renascimento começou
a centrar a sua cosmovisão no ser humano, é quando se fala do humanismo, porque
antes era outra cousa, era um anjo-teologismo, uma óptica que aspirava a
converter o ser humano em anjo e centrada em Deus.
A natureza humana é uma natureza pulsional, que tem como eixo
a natureza sexual. O ser humano não é um anjo, senão que é um ser sexuado
dotado de libido; tampouco é um diabo, um ser pérfido e malvado, senão que é
uma mistura de ambos, ou seja, que tem tendências destrutivas, disruptivas, dissociativas
e tendências altruístas, construtivas e cooperativas, e muitas vezes depende da
própria história pessoal que predominem umas ou outras.
O cristianismo sempre condenou este mundo e esta vida
como indigna de ser vivida. É um claro expoente disto o que dizia o bispo de
Iria Flávia-Santiago de Compostela, natural de Curtis, São Pedro de Mezonzo,
que compôs o cântico Salve Regina, no qual afirma que este mundo é um vale de
bágoas. Segundo a Igreja, os inimigos da alma são três: o demônio, o mundo e a
carne, entendida esta última como sexo, porque os clérigos nunca se recataram
da boa mesa. É também bem eloqüente o que rezava a mística castelhana Santa
Teresa de Jesus: “ven muerte tan
escondida que no te sienta venir porque el placer de morir no me vuelva a dar
La vida”. Esta doutrina é puro platonismo, filosofia que considera que a
vida é uma aprendizagem para morrer, aprendizagem que consiste em que a alma se
desprenda das aderências terreais para assim retornar ao seu verdadeiro mundo,
o mundo ideal.
O cristianismo condenou a natureza e quebrou a natural
sintonia do home com ela, que estava e está profundamente arraigada no nosso
ser galaico, naturalmente panteísta. O culto às pedras, às fontes, aos montes, às
arvores, formava parte da nossa maneira natural de ser, e teve que ser um bispo
alienígena, um mais entre os muitos que suportamos, São Martinho de Dume ou Braga, natural de Panônia, Hungria, quem véu
rachar essa religião natural, que, porém, qualquer cristão deveria cultivar
também, porque o culto à natureza é o culto a uma obra do divino artista, que
se vinha praticando no nosso país desde tempos pré históricos. Ao seu livro que
serviu como guia para praticar uma dura repressão chamou-lhe: De correctione rusticorum, Da correção
dos rústicos, um título desprezativo, que associa a religião natural com o
atraso e a rusticidade, que é uma jogada mestre para desarmar ao adversário. O
segundo passo foi qualificar de idolatria estas práticas naturalistas. Esta
obra foi continuada tenazmente pólos seus seguidores que foram cambiando as
práticas naturalistas por celebrações cristãs: o 25 de dezembro passou, de ser
o dia de culto ao sol, a situar nele o nascimento o dia do nascimento de Jesus,
de quem não se sabe quando nasceu, ainda que se sabe que não foi que não foi no
inverno, porque os pastores dormiam ao raso. Quis eliminar o carnaval ou
entroido e a piques estivo de lográ-lo durante o período de conivência com o
regime ditatorial do general Franco. Pretendeu mudar, sem êxito, a festa dos
maios, celebrada no mês deste nome, pólo mês de Maria. Intentou substituir a festa
do lume, celebrada na noite do 23 de junho, pola festa de São João Batista, do
que quase não se sabe nada. Pretendeu substituir o Samaim pola festividade de
todos os Santos, etc. Num momento em que de seguida se invoca que se ferem os sentimentos
religiosos por atos pacíficos que se praticam ao amparo da liberdade de
expressão, como a protesta de Rita Maestre ou o Carnaval de Canárias,
pergunto-me se o cristianismo respeitava os sentimentos religiosos quando se
propôs eliminar o culto naturalista, quando massacrou os desviantes ideológicos
queimando-os vivos, quando forçava a conversão dos judeus, muçulmanos e índios
de América. Pergunto também se considera que respeitava os sentimentos não já religiosos
senão os elementares direitos humanitários quando reduzia a escravidão povos
inteiros. Lembremos, por se alguém tem dúvida, a bula do papa Nicolau
V, Dum diversas, o 18/06/1452, pela que autorizava o rei Afonso V de
Portugal a reduzir à escravidão perpétua os muçulmanos (sarracenos), pagãos e
os outros incrédulos, considerando como tais a todos os que não eram cristãos.
O cristianismo é uma religião que sempre considerou como
sinal de imperfeição a satisfação das pulsões sexuais, frente à vida de
abstinência e renuncia que seria o máximo de perfeição. Em vez de aceitar sem
reservas a obra divina que dotou o ser humano e os demais animais de
sexualidade, emendam-na de acordo com os seus preconceitos ideológicos
provenientes duma sociedade profundamente misossexual, que apresentam como a
palavra de Deus. Dizia São Paulo: “Matai,
pois os vossos membros terreais: a fornicação, a imundícia, a libido, a
concupiscência má e avareza que é serviço dos ídolos; pola qual véu a ira de
Deus sobre os filhos da incredulidade” (Col. 3, 5-6). Paulo possui uma
conceição radicalmente pessimista das pulsões humanas, da que diz que cumpre
extirpá-las, matá-las, porque o ideal é um home sem pulsões sexuais, ou seja,
um ser humano que não seja ser humano senão um ser abstrato imaginário, ao que
chamam anjo. A imundícia refere-se à impureza, à sujidade relacionada com o sexo,
visto como algo impuro pólos hebreus. Esta conceição vai influir muito
negativamente nos teólogos cristãos e na vida de toda a humanidade. A
fornicação compreende as relações entre pessoas não casadas, e, por tanto,
inclui também as relações sexuais pré-matrimoniais e as de parelhas de fato. Paulo
põe os fornicadores ao mesmo nível que a idólatras, adúlteros, efeminados,
homossexuais, ladrões,
avarentos, bêbedos, maldizentes, e de todos eles diz que não herdarão o reino
de Deus. (! Cor. 6, 9-10).
O
apóstolo Santiago condenava a sabedoria deste mundo, “Mas, se tendes amargo ciúme e
sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a
verdade. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e
diabólica” (Tiago, 3, 14-15). Associa o apóstolo, como
vemos, a sabedoria humana com o terreal, mundano, diabólico.
Jesus
aconselha os discípulos que se façam eunucos pólo reino dos céus, e muitas
vezes os fieis cristãos, tanto laicos como clérigos, recorreram a esta prática
e castraram-se porque consideravam que assim imitavam melhor o estado angélico,
que era o ideal. Com todo, a oposição das leis do Império Romano ao celibato e
à castração e ao celibato por impedir a reprodução biológica limitou muito esta
prática. A prática da castração manteve-se viva na Igreja até os tempos de Leão
XIII, que foi quem proibiu a castração dos pueri cantores da Capela Sixtina.
Não deixa de ser surpreendente que alguém diga que a Capela Sixtina não tem
nada que ver com a Igreja.
A
festa do entroido é uma festa de transgressões dos tabus impostos socialmente,
e creio que é assim como cumpre interpretar a representação polêmica de Drag
Ethlas em Canárias durante o entroido. Durante alguns dias a gente costuma
tomar certas licenças que não toma na sua convivência ordinária. Na atualidade
quase ficou reduzido a mero espetáculo, mas de vez em quando aparece alguma
sátira que quando falta o sentido da compreensão da festa, os afetados
pretendem reprimir amparando-se em leis que o beneficiam e discriminam com
respeito aos demais. Todos os seres humanos têm sentimentos e todos merecem o máximo
respeito dos demais, mas isto não deve ser obstáculo para que possa praticar a
liberdade de expressão, ainda que algumas vezes alcance um certo nível de
irreverência no seu afã de chamar a atenção. A ferida dos sentimentos
religiosos foi incluída no Código Penal para manter artificialmente o caráter
sacrossanto de certas instituições de caráter religioso, que consideram que a
melhor maneira de fazer-se respeitar é castigando a aqueles que façam bromas ou
sátiras com as suas crenças. Este recurso à repressão trai-nos à memória tempos
passados que deveriam estas já superados desde faz tempo.
Com
todo, esta sátira não é o objetivo principal deste artigo, senão a reação do
bispo de La Palmas, Francisco Cases, quem à pergunta, que dia foi o mais triste? respondeu: “Até agora o dia do acidente de
Barajas do avião que partia cara a Grã Canárias A partir de hoje direi que
estou vivendo agora o dia mais triste da minha estância em Canárias. Triunfou a
frivolidade blasfema na gala Drag do Carnaval de Las Palmas de Grã Canárias.
Triunfou nos votos e triunfou nos aplausos duma multidão exacerbada” Comparar uma sátira, por mui irreverente que
seja, com a morte de 154 mortos num acidente aéreo creio que é um despropósito,
que indica uma falta grave de empatia com os familiares das pessoas afetadas, é
uma afirmação que desqualifica a quem a faz e que põe em questão o suposto
humanismo do cristianismo. Isto somente pode explicar-se desde uma óptica que
parte do fato de que qualquer descortesia para com Jesus e a Virgem é mais
grave que centos de vida que perecem em acidente. Considero que mui poucas
pessoas aceitariam isto nos nossos dias.
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