Uma vez definida a noção de Estado e assentadas
as bases dum estado forte e auto-consciente de si, Hegel estabelece a divisão
de poderes como garantia da liberdade pública, se se toma no seu verdadeiro
sentido, rejeitando dous posicionamentos inaceitáveis: por uma parte, a da absoluta
independência dos poderes que os coloca a uns enfrente dos outros; e, doutra parte,
a divisão que considera as suas relações como negativas, como uma limitação
recíproca; a divisão de poderes contém em si a diferenciação mas não de
qualquer jeito, senão como a concebe o entendimento abstrato. Não é mais que a
determinação do conceito em si mesmo e não qualquer outro fim ou qualquer outra
utilidade quem fornece a origem absoluta dos poderes separados, e somente é por
ela que a organização do Estado é o racional em si e a imagem da razão eterna. O
conceito, e, a seguir a idéia, determinam-se e põem assim os seus momentos de
universalidade, particularidade e individualidade. O momento de universalidade,
de definir e estabelecer o universal, é o poder legislativo; o de
particularidade, a subsunção das esferas particulares e os casos individuais
sob o geral, é o poder executivo, e o de individualidade, ou a subjetividade
como decisão suprema da vontade, que é o poder do príncipe. “Nele os poderes separados são reunidos numa
individualidade que devém a cimeira e o começo do todo que forma a monarquia
constitucional” (273). A antiga classificação em monarquia, aristocracia e
democracia distinguem-se da atual monarquia constitucional em que nesta os
poderes estão diferenciados, enquanto que nessas constituições antigas os
poderes ainda não alcançaram a diferenciação interior. Estas formas antigas,
que pertencem a totalidades concretas, são reduzidas na monarquia constitucional
ao rol de momentos; o monarca é único, no poder governamental intervêm alguns e
no poder legislativo intervém a multidão em geral, mas estas são diferenças
quantitativas e não fornecem o conceito do objeto.
Hegel constrói toda a sua andaimaria intelectual,
digna de melhor causa, para bendizer o rol da monarquia absoluta que ele coloca
como a cimeira do Estado e que reúne em si todos os poderes separados, que
perdem o seu caráter de órgãos realmente independentes sob o pretexto de que
isso conduz a deslocação do Estado. Na realidade é uma diferenciação interna meramente
pensada, mas que não se traduz numa dialética de oposição e de possível
confrontação, porque o monarca que ele defende é um monarca absoluto e sem
limites no seu poder. De facto, este pesador não desenvolve os tipos de relação
que mantêm entre si estes três poderes. Aliás, nos nossos dias vemos que a
evolução da monarquia absoluta em monarquia parlamentar não só não integra em
si os três poderes, senão que se reduz a uma instituição representativa sem
poderes reais. Hegel defende uma conceição organicista do Estado, segundo o
qual os diversos poderes mais que partes são membros do todo e devem estar e
somente funcionam se mantêm a sua relação com o todo. Esta conceição somente
pode conduzir a uma organização piramidal e verticalista da sociedade que faz
impossível um trabalho horizontal, em rede, mais próprio das sociedades mais
ilustradas dos nossos dias.
Segundo Hegel, a soberania é a personalidade do
Estado e todas as funções deste têm um caráter derivado. O caráter fundamental
do Estado político é “a unidade
substancial como idealidade dos seus momentos” (276). Nesta unidade
substancial “os diferentes poderes e as
diferentes funções são á vez dissolvidos e mantidos e somente são mantidos se a
sua legitimidade é, não independente, senão determinada unicamente pela idéia
do todo. Devem sair da sua potência (puissance) e formam dela a articulação
móvel como os membros em relação á unidade simples do eu pessoal” (276). Este
autor qualifica o Estado pela unidade substancial que é um conceito mui pouco
operativo e mui pouco esclarecedor, próprio duma filosofia felizmente
periclitada. Apela ao símile do organismo humano para considerar o Estado como
um macro-organismo no qual os diversos poderes obedecem ao todo e carecem de
independência própria a respeito dele. O uso destes símiles é, por uma parte,
revelador da ideologia dum autor e, pela outra, corre o risco de ocultar a
diferença que existe entre um fenômeno fisiológico e outro sociológico. O
organicismo cósmico remonta a Platão, que considerava o universo como um ser
vivente e inteligente; defensor também do organicismo sociológico, corrente
próxima ao corporativismo com tendência ao verticalismo e dirigismo, que
concebia a cidade por analogia com um organismo. A teoria aristotélica da
substância guarda certa relação conceitual e histórica com o organicismo
platônico. Segundo Hegel, a diferença destes poderes é uma diferença puramente
conceitual sem implicações reais na prática. “As diferentes funções e atividades do Estado são-lhe próprias como
momentos essenciais e não estão ligadas aos indivíduos que as exercem em virtude
da sua personalidade imediata, senão somente segundo as suas qualidades
universais e objetivas, se bem que não se referem á personalidade particular
enquanto tal mais que duma maneira exterior e contingente. Pois as funções e os
poderes do Estado não podem ser uma propriedade privada” (277). Este
razoamento exclui, segundo Hegel, que uma função do Estado seja propriedade
privada, mas deveria excluir também que ninguém se considera-se com
legitimidade para desempenhá-las em virtude do seu nascimento, o qual
invalidaria qualquer direito sucessório dinástico, e também a predestinação a
ocupar este cargo em virtude do seu nascimento, e, por tanto, em virtude da
reprodução animal. Apelar a qualidades universais e objetivas é mui pouco
operativo por carecer de referente claro ou pelo menos não claramente
explicitado.
A conceição organicista é utilizada por Hegel
para negar-lhe ao Estado medieval a soberania frente ao interior, porque as
funções e poderes particulares do Estado e da sociedade civil estavam agrupadas
em torno ás corporações e comunidades independentes, do qual resultava que o todo
era mais um agregado que um organismo. “O
idealismo que constitui a soberania é a mesma condição que faz que, num organismo animal, as chamadas partes
são não as partes senão os membros, os momentos orgânicos, dos quais o
isolamento e a existência por si são a doença. Por outra parte, eram a
propriedade privada de indivíduos, e então o que estes deviam fazer em consideração
do grupo dependia da sua opinião e do seu bel prazer” (278). A soberania é
a afirmação do caráter ideal de toda legitimidade, mas isto não implica,
segundo Hegel, que seja uma força absoluta e que se confunda com o despotismo,
senão que “a soberania do Estado
constitucional legal representa o que há de ideal nas esferas e atividades
particulares, quer dizer que uma tal esfera não é algo autônomo, independente,
nos seus fins e modalidades, fechado em si mesmo, dado que é definido nos seus
fins e modalidades pelos fins do conjunto” (278).
Uma vez definida a soberania, do que se trata é
de buscar a maneira de concretizá-la na pessoa do monarca. A soberania que é o
pensamento universal desta idealidade somente “adquire existência como subjetividade segura de si e como determinação
abstrata e por conseguinte sem motivo da vontade por si, do que depende a
decisão suprema. É o lado individual do Estado que é único, que somente se
manifesta então como único. Mas a subjetividade não é verdadeira mais que como
sujeito, a personalidade como pessoa, e numa constituição que alcança a
realidade racional, cada um dos três momentos do conceito tem a sua encarnação separada
e real para si. Este elemento decisivo, absoluto do conjunto não é pois a
individualidade em geral senão um indivíduo: o monarca” (279). Ë evidente que a soberania implica
subjetividade, pois o poder de mando implica um sujeito ou indivíduo que mande,
mas este sujeito não tem porque ser único nem, por tanto, um indivíduo, e muito
menos tem que ser um monarca. Tampouco o mando se produz por numa decisão sem
motivo da vontade, senão que toda decisão tem que ser motivada, explicitem-se
ou não estes motivos. Hegel declara que o conceito de monarca é o conceito mais
difícil para a raciocinação, quer dizer, para o modo de reflexão do
entendimento (279). Não se pode derivar de nada porque tem a origem em si
mesmo. Eu diria que não só é difícil senão impossível e inclusive absurda a
citada raciocinação, porque a realidade existencial nunca se pode derivar de
conceitos abstratos.
O defensor do idealismo absoluto observa não
sem certo mal-estar que nos seus tempos se começou a falar de soberania do povo
em contraposição com a soberania do monarca, mas ele considera que falar de
soberania do povo somente tem sentido se se identifica soberania do povo com
soberania do Estado, e, por outra parte, falar de soberania do povo em oposição
á soberania do monarca “pertence aos
pensamentos confusos, fundados numa conceição bárbara do povo. O povo sem o seu
monarca, e sem a articulação que lhe vai unida necessária e imediatamente é uma
massa informe, já não é um Estado e não possui nenhuma das determinações que
somente existem num todo organizado em si: soberania, governo, justiça,
autoridade, ordens, etc.” (279). Hegel parte da premissa de que a soberania
reside no monarca, e de ai conclui que se não há monarca não há soberania. Reconhece
que nas tribos patriarcais, nos estados primitivos nos que são possíveis as
formas de democracia e aristocracia, e nos povos arbitrários e inorgânicos é possível
que a soberania não resida no monarca, mas considera que num povo concebido
como uma verdadeira totalidade orgânica a soberania existe como pessoa do monarca.
Uma vez concluído que a subjetividade tem que
dar-se num sujeito, num indivíduo, Hegel pretende demonstrar que ao monarca lhe
corresponde governar por nascimento. “Esta
individualidade suprema da vontade do Estado é sob esta forma abstrata, simples
e em conseqüência é uma individualidade imediata. No seu conceito mesmo reside
a condição que seja natural; o monarca é, pois, essencialmente em tanto que
tal, indivíduo fora de todo outro conteúdo e este indivíduo está destinado á
dignidade de monarca duma maneira imediatamente natural pelo nascimento”(280).
Já temos assim toda uma construção filosófica encaminhada a justificar a
monarquia hereditária, na que, segundo Hegel, se passa da pura determinação de
si da vontade ao ser imediato, e, a seguir, á natureza, e faz-se duma maneira
puramente especulativa, correspondendo o seu descobrimento á filosofia lógica,
de Hegel, se sobre-entende. “É a transformação imediata da pura determinação de
si da vontade num este e numa
existência natural sem a mediação dum conteúdo particular (um fim á ação)”
(280). É impossível uma determinação concreta da vontade sem que o sujeito se
proponha um fim a alcançar e, por tanto, uma determinação abstrata, sem um fim
a alcançar, não é determinação de nenhuma classe. Segundo Hegel, a passagem é
algo parecida ao que acontece no argumento ontológico no qual se passa do
conceito absoluto ao ser.
Este modo de argumentar somente seria válido
numa filosofia como a hegeliana na que a Idéia determina o ser que se reduz a
uma manifestação sua. Pelo que diz respeito ao argumento ontológico, e, por
tanto, também á dedução da individualidade a partir do conceito, podemos dizer
que nele se produz um trânsito ilegítimo do pensamento ao ser, muito mais grave
neste caso porque não estamos ante o conceito dum ser oniperfeito no que se
identificam a essência e a existência. O cometido do pensamento deve reduzir-se
a desvelar o ser e não a determiná-lo.
Para Hegel, os dous elementos: a autonomia
absoluta e suprema da vontade e a existência também absoluta enquanto confiada
á natureza, na sua unidade inseparável, inacessível ao arbitrário, constituem a
majestade do monarca. “Nesta unidade reside
a unidade real do Estado que, mercê a esta imediação exterior e interior,
escapa á possibilidade de ser degradada á esfera do particular no que reinam o
arbitrário, os interesses e as opiniões. Ela escapa também aos combates entre
partidos pela corona, ao debilitamento e
á deslocação da potência do Estado” (281. O Estado vem determinado em Hegel
dum jeito especulativo em base a uma pretendida essência eterna deduzida duma suposta
Idéia que se desenvolve no tempo, á margem dos interesses, opiniões e preocupações
dos cidadãos, dando lugar a um Estado puramente ideal.
O direito de nascimento e o direito hereditário
são o fundamento da legitimidade tanto no direito positivo como desde o ponto
de vista da Idéia. A evitação da divisão em facções é uma conseqüência da
herança bem estabelecida e se se constitui como princípio rebaixa-se a
majestade á esfera do razoamento abstrato e dá-se-lhe por fundamento não a
idéia de Estado que lhe é imanente, senão alguma cousa exterior a ela, como,
por exemplo a vantagem do Estado ou do povo. A eleição aparece facilmente como
a idéia mais natural, quer dizer, a mais próxima da frivolidade do pensamento, porque o monarca deve preocupar-se dos
interesses e assuntos do povo e deve deixar-se que o povo eleja a quem deve
preocupar-se da sua salvação, mas esta opinião, assim como a do monarca como
funcionário supremo do Estado e a idéia dum contrato entre ele e o povo,
procedem da vontade concebida como bom prazer, opinião e querer arbitrário da
maioria, que é menosprezada por Hegel,que não se recata em lançar um ataque
denodado contra o império eletivo que “é
mais bem a pior das instituições. No Império eletivo, a natureza do regime segundo
o qual o princípio decisivo é a vontade particular, faz que a constituição
devenha uma capitulação eleitoral, quer dizer, que a potência do Estado é
livrada á discrição da vontade particular, os poderes particulares do Estado transformam-se
em propriedade privada, a soberania do Estado debilita-se e perde-se; uma
dissolução interior e uma deslocação exterior produzem-se” (281). Da
soberania do monarca deriva o direito de graça “porque ela só pode possuir esta realização do poder do espírito que
volve não acontecido o que passou e que anula o crime no perdão e olvido”
(282).
No tocante ao poder executivo, o monarca
necessita “conselhos ou indivíduos que
levem diante do monarca, para decisão, o conteúdo dos assuntos de Estado que se
apresentam ou as disposições legais que são necessárias a causa das
necessidades presentes com os seus aspectos objetivos: motivos da decisão, leis
que lhe concernem, circunstâncias, etc. A eleição dos indivíduos encarregados
desta função e a sua revogação dependem do seu bom querer sem restrições dado
que dizem relação á pessoa imediata do monarca” (283). Seria, por tanto, um
governante com poder absoluto e irresponsável politicamente porque somente
podem ser submetidos a responsabilidade os aspectos objetivos da decisão, dos
que devem responder os conselhos ou indivíduos afetados. Mas se o príncipe
vulnera a constituição e as leis deixa de existir consoante com a constituição
e, por conseguinte, terminaria a sua irresponsabilidade, se bem foram estas
leis, esta constituição as que o fizeram irresponsável.
Pelo que diz respeito ao poder legislativo, o
monarca aparece como o guarda da constituição. “O terceiro fator da Coroa refere-se ao universal em si e para si. Este
consiste subjetivamente na consciência do monarca objetivamente no todo da
Constituição e as leis. Neste sentido a Coroa pressupõe os outros fatores. O
mesmo que é pressuposta por cada um deles”(285). Os dous primeiros fatores
são a soberania do monarca e a sua particularidade. Hegel não se refere nunca
ao poder judicial, mas se temos em conta que considera o poder judicial como
parte do executivo, retornando aos posicionamentos de Locke, em claro
retrocesso com respeito ao que propusera Montesquieu, e já podemos concluir que
não há faceta alguma do poder que escape ao controle absoluto do monarca,
convertido num governante totalitário enquanto que controla todas as facetas da
vida dos indivíduos.
6/08/2016
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