24 ago 2016

A monarquia em Hegel



Uma vez definida a noção de Estado e assentadas as bases dum estado forte e auto-consciente de si, Hegel estabelece a divisão de poderes como garantia da liberdade pública, se se toma no seu verdadeiro sentido, rejeitando dous posicionamentos inaceitáveis: por uma parte, a da absoluta independência dos poderes que os coloca a uns enfrente dos outros; e, doutra parte, a divisão que considera as suas relações como negativas, como uma limitação recíproca; a divisão de poderes contém em si a diferenciação mas não de qualquer jeito, senão como a concebe o entendimento abstrato. Não é mais que a determinação do conceito em si mesmo e não qualquer outro fim ou qualquer outra utilidade quem fornece a origem absoluta dos poderes separados, e somente é por ela que a organização do Estado é o racional em si e a imagem da razão eterna. O conceito, e, a seguir a idéia, determinam-se e põem assim os seus momentos de universalidade, particularidade e individualidade. O momento de universalidade, de definir e estabelecer o universal, é o poder legislativo; o de particularidade, a subsunção das esferas particulares e os casos individuais sob o geral, é o poder executivo, e o de individualidade, ou a subjetividade como decisão suprema da vontade, que é o poder do príncipe. “Nele os poderes separados são reunidos numa individualidade que devém a cimeira e o começo do todo que forma a monarquia constitucional” (273). A antiga classificação em monarquia, aristocracia e democracia distinguem-se da atual monarquia constitucional em que nesta os poderes estão diferenciados, enquanto que nessas constituições antigas os poderes ainda não alcançaram a diferenciação interior. Estas formas antigas, que pertencem a totalidades concretas, são reduzidas na monarquia constitucional ao rol de momentos; o monarca é único, no poder governamental intervêm alguns e no poder legislativo intervém a multidão em geral, mas estas são diferenças quantitativas e não fornecem o conceito do objeto.

Hegel constrói toda a sua andaimaria intelectual, digna de melhor causa, para bendizer o rol da monarquia absoluta que ele coloca como a cimeira do Estado e que reúne em si todos os poderes separados, que perdem o seu caráter de órgãos realmente independentes sob o pretexto de que isso conduz a deslocação do Estado. Na realidade é uma diferenciação interna meramente pensada, mas que não se traduz numa dialética de oposição e de possível confrontação, porque o monarca que ele defende é um monarca absoluto e sem limites no seu poder. De facto, este pesador não desenvolve os tipos de relação que mantêm entre si estes três poderes. Aliás, nos nossos dias vemos que a evolução da monarquia absoluta em monarquia parlamentar não só não integra em si os três poderes, senão que se reduz a uma instituição representativa sem poderes reais. Hegel defende uma conceição organicista do Estado, segundo o qual os diversos poderes mais que partes são membros do todo e devem estar e somente funcionam se mantêm a sua relação com o todo. Esta conceição somente pode conduzir a uma organização piramidal e verticalista da sociedade que faz impossível um trabalho horizontal, em rede, mais próprio das sociedades mais ilustradas dos nossos dias.

Segundo Hegel, a soberania é a personalidade do Estado e todas as funções deste têm um caráter derivado. O caráter fundamental do Estado político é “a unidade substancial como idealidade dos seus momentos” (276). Nesta unidade substancial “os diferentes poderes e as diferentes funções são á vez dissolvidos e mantidos e somente são mantidos se a sua legitimidade é, não independente, senão determinada unicamente pela idéia do todo. Devem sair da sua potência (puissance) e formam dela a articulação móvel como os membros em relação á unidade simples do eu pessoal” (276). Este autor qualifica o Estado pela unidade substancial que é um conceito mui pouco operativo e mui pouco esclarecedor, próprio duma filosofia felizmente periclitada. Apela ao símile do organismo humano para considerar o Estado como um macro-organismo no qual os diversos poderes obedecem ao todo e carecem de independência própria a respeito dele. O uso destes símiles é, por uma parte, revelador da ideologia dum autor e, pela outra, corre o risco de ocultar a diferença que existe entre um fenômeno fisiológico e outro sociológico. O organicismo cósmico remonta a Platão, que considerava o universo como um ser vivente e inteligente; defensor também do organicismo sociológico, corrente próxima ao corporativismo com tendência ao verticalismo e dirigismo, que concebia a cidade por analogia com um organismo. A teoria aristotélica da substância guarda certa relação conceitual e histórica com o organicismo platônico. Segundo Hegel, a diferença destes poderes é uma diferença puramente conceitual sem implicações reais na prática. “As diferentes funções e atividades do Estado são-lhe próprias como momentos essenciais e não estão ligadas aos indivíduos que as exercem em virtude da sua personalidade imediata, senão somente segundo as suas qualidades universais e objetivas, se bem que não se referem á personalidade particular enquanto tal mais que duma maneira exterior e contingente. Pois as funções e os poderes do Estado não podem ser uma propriedade privada” (277). Este razoamento exclui, segundo Hegel, que uma função do Estado seja propriedade privada, mas deveria excluir também que ninguém se considera-se com legitimidade para desempenhá-las em virtude do seu nascimento, o qual invalidaria qualquer direito sucessório dinástico, e também a predestinação a ocupar este cargo em virtude do seu nascimento, e, por tanto, em virtude da reprodução animal. Apelar a qualidades universais e objetivas é mui pouco operativo por carecer de referente claro ou pelo menos não claramente explicitado.

A conceição organicista é utilizada por Hegel para negar-lhe ao Estado medieval a soberania frente ao interior, porque as funções e poderes particulares do Estado e da sociedade civil estavam agrupadas em torno ás corporações e comunidades independentes, do qual resultava que o todo era mais um agregado que um organismo. “O idealismo que constitui a soberania é a mesma condição que faz  que, num organismo animal, as chamadas partes são não as partes senão os membros, os momentos orgânicos, dos quais o isolamento e a existência por si são a doença. Por outra parte, eram a propriedade privada de indivíduos, e então o que estes deviam fazer em consideração do grupo dependia da sua opinião e do seu bel prazer” (278). A soberania é a afirmação do caráter ideal de toda legitimidade, mas isto não implica, segundo Hegel, que seja uma força absoluta e que se confunda com o despotismo, senão que “a soberania do Estado constitucional legal representa o que há de ideal nas esferas e atividades particulares, quer dizer que uma tal esfera não é algo autônomo, independente, nos seus fins e modalidades, fechado em si mesmo, dado que é definido nos seus fins e modalidades pelos fins do conjunto” (278).

Uma vez definida a soberania, do que se trata é de buscar a maneira de concretizá-la na pessoa do monarca. A soberania que é o pensamento universal desta idealidade somente “adquire existência como subjetividade segura de si e como determinação abstrata e por conseguinte sem motivo da vontade por si, do que depende a decisão suprema. É o lado individual do Estado que é único, que somente se manifesta então como único. Mas a subjetividade não é verdadeira mais que como sujeito, a personalidade como pessoa, e numa constituição que alcança a realidade racional, cada um dos três momentos do conceito tem a sua encarnação separada e real para si. Este elemento decisivo, absoluto do conjunto não é pois a individualidade em geral senão um indivíduo: o monarca (279). Ë evidente que a soberania implica subjetividade, pois o poder de mando implica um sujeito ou indivíduo que mande, mas este sujeito não tem porque ser único nem, por tanto, um indivíduo, e muito menos tem que ser um monarca. Tampouco o mando se produz por numa decisão sem motivo da vontade, senão que toda decisão tem que ser motivada, explicitem-se ou não estes motivos. Hegel declara que o conceito de monarca é o conceito mais difícil para a raciocinação, quer dizer, para o modo de reflexão do entendimento (279). Não se pode derivar de nada porque tem a origem em si mesmo. Eu diria que não só é difícil senão impossível e inclusive absurda a citada raciocinação, porque a realidade existencial nunca se pode derivar de conceitos abstratos.

O defensor do idealismo absoluto observa não sem certo mal-estar que nos seus tempos se começou a falar de soberania do povo em contraposição com a soberania do monarca, mas ele considera que falar de soberania do povo somente tem sentido se se identifica soberania do povo com soberania do Estado, e, por outra parte, falar de soberania do povo em oposição á soberania do monarca “pertence aos pensamentos confusos, fundados numa conceição bárbara do povo. O povo sem o seu monarca, e sem a articulação que lhe vai unida necessária e imediatamente é uma massa informe, já não é um Estado e não possui nenhuma das determinações que somente existem num todo organizado em si: soberania, governo, justiça, autoridade, ordens, etc.” (279). Hegel parte da premissa de que a soberania reside no monarca, e de ai conclui que se não há monarca não há soberania. Reconhece que nas tribos patriarcais, nos estados primitivos nos que são possíveis as formas de democracia e aristocracia, e nos povos arbitrários e inorgânicos é possível que a soberania não resida no monarca, mas considera que num povo concebido como uma verdadeira totalidade orgânica a soberania existe como pessoa do monarca.

Uma vez concluído que a subjetividade tem que dar-se num sujeito, num indivíduo, Hegel pretende demonstrar que ao monarca lhe corresponde governar por nascimento. “Esta individualidade suprema da vontade do Estado é sob esta forma abstrata, simples e em conseqüência é uma individualidade imediata. No seu conceito mesmo reside a condição que seja natural; o monarca é, pois, essencialmente em tanto que tal, indivíduo fora de todo outro conteúdo e este indivíduo está destinado á dignidade de monarca duma maneira imediatamente natural pelo nascimento”(280). Já temos assim toda uma construção filosófica encaminhada a justificar a monarquia hereditária, na que, segundo Hegel, se passa da pura determinação de si da vontade ao ser imediato, e, a seguir, á natureza, e faz-se duma maneira puramente especulativa, correspondendo o seu descobrimento á filosofia lógica, de Hegel, se sobre-entende. “É a transformação imediata da pura determinação de si da vontade num este e numa existência natural sem a mediação dum conteúdo particular (um fim á ação)” (280). É impossível uma determinação concreta da vontade sem que o sujeito se proponha um fim a alcançar e, por tanto, uma determinação abstrata, sem um fim a alcançar, não é determinação de nenhuma classe. Segundo Hegel, a passagem é algo parecida ao que acontece no argumento ontológico no qual se passa do conceito absoluto ao ser.

Este modo de argumentar somente seria válido numa filosofia como a hegeliana na que a Idéia determina o ser que se reduz a uma manifestação sua. Pelo que diz respeito ao argumento ontológico, e, por tanto, também á dedução da individualidade a partir do conceito, podemos dizer que nele se produz um trânsito ilegítimo do pensamento ao ser, muito mais grave neste caso porque não estamos ante o conceito dum ser oniperfeito no que se identificam a essência e a existência. O cometido do pensamento deve reduzir-se a desvelar o ser e não a determiná-lo.

Para Hegel, os dous elementos: a autonomia absoluta e suprema da vontade e a existência também absoluta enquanto confiada á natureza, na sua unidade inseparável, inacessível ao arbitrário, constituem a majestade do monarca. “Nesta unidade reside a unidade real do Estado que, mercê a esta imediação exterior e interior, escapa á possibilidade de ser degradada á esfera do particular no que reinam o arbitrário, os interesses e as opiniões. Ela escapa também aos combates entre partidos pela corona,  ao debilitamento e á deslocação da potência do Estado” (281. O Estado vem determinado em Hegel dum jeito especulativo em base a uma pretendida essência eterna deduzida duma suposta Idéia que se desenvolve no tempo, á margem dos interesses, opiniões e preocupações dos cidadãos, dando lugar a um Estado puramente ideal.

O direito de nascimento e o direito hereditário são o fundamento da legitimidade tanto no direito positivo como desde o ponto de vista da Idéia. A evitação da divisão em facções é uma conseqüência da herança bem estabelecida e se se constitui como princípio rebaixa-se a majestade á esfera do razoamento abstrato e dá-se-lhe por fundamento não a idéia de Estado que lhe é imanente, senão alguma cousa exterior a ela, como, por exemplo a vantagem do Estado ou do povo. A eleição aparece facilmente como a idéia mais natural, quer dizer, a mais próxima da frivolidade do pensamento,  porque o monarca deve preocupar-se dos interesses e assuntos do povo e deve deixar-se que o povo eleja a quem deve preocupar-se da sua salvação, mas esta opinião, assim como a do monarca como funcionário supremo do Estado e a idéia dum contrato entre ele e o povo, procedem da vontade concebida como bom prazer, opinião e querer arbitrário da maioria, que é menosprezada por Hegel,que não se recata em lançar um ataque denodado contra o império eletivo que “é mais bem a pior das instituições. No Império eletivo, a natureza do regime segundo o qual o princípio decisivo é a vontade particular, faz que a constituição devenha uma capitulação eleitoral, quer dizer, que a potência do Estado é livrada á discrição da vontade particular, os poderes particulares do Estado transformam-se em propriedade privada, a soberania do Estado debilita-se e perde-se; uma dissolução interior e uma deslocação exterior produzem-se” (281). Da soberania do monarca deriva o direito de graça “porque ela só pode possuir esta realização do poder do espírito que volve não acontecido o que passou e que anula o crime no perdão e olvido” (282).

No tocante ao poder executivo, o monarca necessita “conselhos ou indivíduos que levem diante do monarca, para decisão, o conteúdo dos assuntos de Estado que se apresentam ou as disposições legais que são necessárias a causa das necessidades presentes com os seus aspectos objetivos: motivos da decisão, leis que lhe concernem, circunstâncias, etc. A eleição dos indivíduos encarregados desta função e a sua revogação dependem do seu bom querer sem restrições dado que dizem relação á pessoa imediata do monarca” (283). Seria, por tanto, um governante com poder absoluto e irresponsável politicamente porque somente podem ser submetidos a responsabilidade os aspectos objetivos da decisão, dos que devem responder os conselhos ou indivíduos afetados. Mas se o príncipe vulnera a constituição e as leis deixa de existir consoante com a constituição e, por conseguinte, terminaria a sua irresponsabilidade, se bem foram estas leis, esta constituição as que o fizeram irresponsável.

Pelo que diz respeito ao poder legislativo, o monarca aparece como o guarda da constituição. “O terceiro fator da Coroa refere-se ao universal em si e para si. Este consiste subjetivamente na consciência do monarca objetivamente no todo da Constituição e as leis. Neste sentido a Coroa pressupõe os outros fatores. O mesmo que é pressuposta por cada um deles”(285). Os dous primeiros fatores são a soberania do monarca e a sua particularidade. Hegel não se refere nunca ao poder judicial, mas se temos em conta que considera o poder judicial como parte do executivo, retornando aos posicionamentos de Locke, em claro retrocesso com respeito ao que propusera Montesquieu, e já podemos concluir que não há faceta alguma do poder que escape ao controle absoluto do monarca, convertido num governante totalitário enquanto que controla todas as facetas da vida dos indivíduos.

6/08/2016
 

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