Marx desenvolveu a sua teoria
sobre a coroa em intercâmbio dialético com Hegel de quem comentou o seu livro Princípios
da Filosofia do Direito, comentário do que tiramos as seguintes reflexões.
O eixo da crítica de Marx á
teoria do Estado e da coroa em Hegel pivota sobre a sua teoria idealista, que
converte os sujeitos, os indivíduos, os homes,...em derivações dos conceitos
abstratos, como a subjetividade, a individualidade, o Estado, e nomeadamente a
Idéia, convertida no autêntico demiurgo do real. Hegel parte na Filosofia do
direito, do conceito de vontade, que aparece, em primeiro lugar, no Direito
imediato, como o elemento fundamental duma personalidade abstrata, e no Direito
absoluto apresenta-se como a personalidade do Estado e a certidão de si mesma,
personalidade encarnada no monarca que é a soberania personificada, para
terminar pelo eu quero com o qual começa toda ação e toda realidade.
Hegel afirma que “o poder
do monarca contém em si os três elementos da totalidade: a) a universalidade da
constituição e as leis; b) a deliberação enquanto relação do particular ao
universal; e c) o momento da decisão suprema como determinação de si da qual
todo o demais se deduz e tira o começo da sua realidade. Esta determinação
absoluta de si constitui o princípio distintivo do poder do monarca” (275).
Nesta formulação hegeliana expressa-se o poder totalitário do monarca, que
inclui no seu seio o poder legislativo, o poder executivo e o poder decisório
supremo, que expressa em si todo o demais. Marx prefere equiparar o poder
legislativo e o executivo com o poder do monarca, ao tempo que precisa que o
poder do monarca refere-se ao monarca constitucional e, por conseguinte, isto
indica que o monarca não está fora da constituição e as leis. Marx considera
que o poder do monarca é o momento da decisão suprema, a autodeterminação
absoluta na que todo o resto se resume e começa a devir uma realidade, mas,
desde o momento que a autodeterminação se separa da universalidade do conteúdo
(da constituição e as leis) e da particularidade da deliberação, a vontade real
é o arbitrário. “Dito doutra maneira, o arbitrário é o poder do monarca ou o
poder do monarca é o arbitrário” (275). Nas deduções mentais hegelianas
todo casa perfeitamente, mas a resultas de pagar o preço de desviar-se da
realidade empírica, muito mais complexa que o que se reflite no seu
conceito.
No parágrafo 276 dos Princípios,
Hegel estabelece que na unidade substancial, a idealidade, a legitimidade dos
diferentes poderes e funções não é independente senão determinada pela idéia do
todo. Segundo Marx, que isto deve ser assim está implicado na idéia de
organismo, e, por tanto, no organicismo defendido por Hegel, mas deveria
explicar a maneira de realizar este dever-ser, porque a configuração fortuita
dos poderes e funções não poderia ser apresentada como conforme á razão. Marx
não põe em questão o organicismo hegeliano que, porém, determina o alcanço da
sua conceição na que a dialética das relações horizontais desde a própria
autonomia das partes, a complementaridade e a distinção de competências, é substituída
pelas relações verticais hierárquicas de dependência e subordinação dumas
partes a outras.
No parágrafo 277, afirma Hegel
que as diferentes atividades não são atribuídas aos indivíduos em virtude da
sua personalidade imediata senão das suas qualidade universais e objetivas, e,
por isso, os funções e atividades do Estado não podem ser propriedade privada.
Marx considera uma tautologia afirmar que quando algumas funções são designadas
como assuntos públicos e como poderes públicos, não podem ser mais que
propriedade do Estado e não propriedade privada, mas o assunto parece mais
complicado do que Marx o indica. Que um Estado declare que uma função é assunto
público isso, de por si, não exclui que seja também privado, e somente se
cometeria uma tautologia se se indicasse que toda pertença duma competência a
um poder público exclui de por si que poda ser de competência privada. Noutras
palavras, no significado de público não está incluída a exclusividade, a
impossibilidade de que o público e o privado compartilhem uma competência.
Hegel considera que a vinculação das funções e atividades do Estado com os
indivíduos não depende da personalidade imediata destes senão das suas
qualidades universais e objetivas, que ele não precisa, e que têm um vínculo
puramente exterior e fortuito com a personalidade particular do indivíduo
enquanto tal. Marx, pela sua parte, manifesta as citadas funções e atividades
são encomendadas ao indivíduo não como realidade física senão estatal, na sua
condição política enquanto membro do Estado, e de ai que não poda ser uma
vinculação «extrínseca e acidental» «á personalidade particular como tal»,
senão que mantém com ela uma vinculação substancial, quer dizer que liga o
indivíduo ao Estado por uma qualidade essencial do indivíduo. Hegel “esquece
que a individualidade particular é uma individualidade humana e que as funções
e as atividades do Estado são assuntos humanos” (277). A personalidade
particular não é a sua barba, sangue, a sua natureza física abstrata senão a
sua qualidade social.
Se o vínculo com o indivíduo
se refere á ligação com o indivíduo «a» em vez do indivíduo «b» ou «c», parece
claro que o vínculo das funções e atividades do Estado com o indivíduo é algo
exterior e fortuito, no sentido de que todo indivíduo é prescindível enquanto
tal; mas se se refere ao vínculo com a individualidade, quer dizer, com um
indivíduo em geral, por uma parte é imprescindível, e, pela outra, a vinculação
só pode referir-se ás qualidade técnicas e morais necessárias para o desempenho
do cargo.
As diferentes atividades e
funções do Estado resenhadas nos parágrafos 276 e 277 “constituem a
soberania do Estado. Dito doutra maneira, para que haja soberania necessita-se
que os diferentes poderes públicos não somente se vejam na impossibilidade de
adquirir uma existência fixa e independente pela sua própria conta e por conta
dos indivíduos que os encarnam, mas também que enraízem na unidade do Estado e
que a vejam como a sua alma única” (278). A idealidade dos momentos
constitutivos do Estado manifesta-se, segundo Hegel, no estado de paz, por uma
parte, pela inconsciente necessidade objetiva que faz do egoísmo privado um
meio da supervivência de todos e do mantimento do conjunto e, pela outra, pela
intervenção direta do poder que lhes recorda o interesse geral. Em estado de
emergência, manifesta-se pelo simples conceito da soberania no que se concentra
o organismo social que no estado de paz aparecia dispersado nas esferas e
atividades particulares. Segundo Marx, este idealismo não se expressa como um
sistema racional e cognoscível. Em estado de paz, aparece como uma simples
constrição exterior ou como um resultado cego e inconsciente do egoísmo. “A sua «realidade própria», este idealismo
não a adquire mais que em caso de guerra ou de desamparo, de
maneira que a essência deste idealismo se expressa aqui como estado de guerra
ou de desamparo do Estado realmente existente, enquanto que o estado de paz é
precisamente a guerra e o desamparo do egoísmo” (278). A soberania, o
idealismo do Estado, existe, pois, só como unidade interna, como substância
cega e inconsciente, como Idéia. Aliás, acrescentamos, a independência dos
poderes que estabelece Hegel converte em mera ficção uma autêntica divisão de
poderes, porque o que proclama Hegel é que a única autêntica soberania reside
no monarca e todos os poderes do Estado lhe estão subordinados.
Marx divide o primeiro parágrafo
do parágrafo 279 de Princípios, em
duas proposições. Na primeira, Hegel declara que a soberania devém uma
realidade concreta somente como uma subjetividade segura de si, mas a
subjetividade não é verdadeira mais que como sujeito, a personalidade como
pessoa, e numa constituição que alcançou o estádio da racionalidade real, cada
um dos três momentos do Conceito constitui uma realidade separada e autônoma.
Marx desmembra este parágrafo em duas proposições. Na primeira frase da
primeira proposição Hegel diz simplesmente que o pensamento geral desta idealidade
deveria ser a obra consciente dos sujeitos, dos cidadãos, e, neste sentido, uma
realidade concreta. Se Hegel tiver tomado como ponto de partida os sujeitos
reais considerados como a base do Estado, não teria necessidade de subjetivar o
Estado desta maneira mística e mistificante. Também mistifica Hegel quando diz
que “a subjetividade é uma determinação
do sujeito, a personalidade uma determinação da pessoa”, mas em vez de
considerá-los simplesmente como predicados dos seus sujeitos, Hegel começa por
conferir-lhe aos predicados uma existência independente e termina por
transformá-los de maneira mística nos sujeitos. “A realidade dos predicados
é o sujeito: logo, o sujeito é a realidade da subjetividade, etc. Hegel
autonomiza os predicados, os objetos, mas autonomiza-os separando-os do seu
sujeito, da sua verdadeira autonomia. O sujeito real aparece em seguida como o
seu resultado, enquanto que cumpre partir do sujeito real e estudar a sua
objetivação” (279). Em Hegel a substância mística devém o sujeito real, e o
sujeito real aparece como alguma cousa doutro, como um momento da substância
mística. “Assim a soberania, a essência do Estado é considerada em primeiro
lugar como um ser independente, ela é transformada em objeto. A seguir, isto
cai de caixão, este elemento objetivo deve volver a ser sujeito. Mas então o
sujeito aparece como uma auto-encarnação da soberania, mentes que esta não é
nada distinto do espírito objetivado dos sujeitos do Estado (= dos cidadãos)”
(279).
Marx declara que na primeira
proposição significa simplesmente que a soberania, o idealismo de Estado
enquanto pessoa, enquanto sujeito, devém uma realidade concreta na medida em
que se encarne numa multidão de pessoas e de sujeitos, porque nenhuma pessoa,
nenhum sujeito pode representar exclusivamente a esfera toda inteira da
personalidade e da subjetividade. Mas em Hegel, em vez de encarnar-se a
soberania numa multidão de pessoas, encarna somente num certo indivíduo, o
monarca, que é a soberania encarnada, a consciência do Estado feita carne, o
qual implica que todos os demais são excluídos da soberania, da personalidade e
da consciência de si. “Curioso «idealismo» aquele que, em lugar de ser a
real consciência de si dos cidadãos e a alma comum do Estado, não se encarnou
mais que numa só pessoa, um só sujeito” (279).
Na segunda proposição Hegel
trata de apresentar o monarca como o «home-deus» real, como a encarnação real
da idéia. “O elemento do todo que se apresenta como o elemento absolutamente
decisivo não é a individualidade em geral, mas um certo indivíduo: o monarca”
(279). Hegel pretende inferir infrutuosamente a partir de premissas abstratas
que a soberania se encarna, não numa pessoa, senão na pessoa dum indivíduo
concreto, o monarca. O falho do
argumento hegeliano consiste, segundo Marx, no seguinte: “Dado que a
subjetividade não é real mais que como sujeito, que todo sujeito não é real
mais que como indivíduo, a personalidade do Estado não é real mais que sendo
uma pessoa. Bonita conclusão! Hegel poderia concluir também: dado que todo home
individual é uma unidade, o gênero humano é um indivíduo”. (279 nota)
A soberania tem um único conteúdo:
eu quero, o elemento arbitrário da vontade. O momento da decisão é o poder real
da vontade em geral. “A idéia do poder real, tal como Hegel a desenvolve,
não é outra cousa que a idéia do arbitrário, a idéia da decisão voluntária”
(279). Hegel antes “concebia a soberania como a idealidade do Estado como a
determinação real das partes pela idéia do todo, enquanto que agora converte-a
na «autodeterminação abstrata e sem motivos da vontade, da que depende a
decisão suprema»; e acrescenta: «é isto o que faz a individualidade do Estado
como tal»” (279). Antes falara da subjetividade «ideal», agora fala da
individualidade «real». O Estado enquanto soberano deve ser um, um indivíduo,
uma individualidade. Mas ao Estado o ser um não lhe vem da sua individualidade,
senão que o decisivo não é a individualidade senão certo indivíduo, o monarca.
De aqui segue-se que o cidadão, enquanto determina o geral, -é legislador;
enquanto que decide o singular, querendo realmente, é soberano.
Enquanto que a gente pensa que
o monarca tem o poder soberano, a soberania, Hegel afirma que a soberania do
Estado é o monarca. A gente manifesta que a soberania faz o que quer, e Hegel
declara que a soberania é a «autodeterminação abstrata» e sem motivo da vontade
da que depende a decisão suprema. Todos os atributos do monarca constitucional
na Europa contemporânea, Hegel transforma-os em autodeterminações absolutas da
vontade. Ele não diz: a vontade do monarca é a decisão suprema, senão: a
decisão suprema da vontade é o monarca. A primeira proposição é um facto
empírico, a segunda transfigura o facto empírico num axioma metafísico. Hegel,
segundo Marx, confunde vários sujeitos: a soberania como «subjetividade
consciente de si» e a soberania como «autodeterminação sem motivos da vontade»,
para deduzir a «Idéia» como «um indivíduo». A subjetividade consciente de si
deve também querer realmente e ninguém pus em dúvida que o Estado deve agir por
meio dos indivíduos, mas “se Hegel quis mostrar que o Estado deve ter um
indivíduo como representante da sua unidade, não demonstrou porque este
indivíduo é um monarca” (279). “O monarca é no Estado o elemento da
vontade individual, da autodeterminação sem motivos, do arbitrário” (279),
que termina a ponderação dos argumentos a favor e em contra “pelo Eu quero pelo qual começa toda ação
e toda realidade” (279 nota).
O monarca é a soberania
personificada, a soberania encarnada, a consciência do Estado feita carne, o
qual implica que todos os demais são excluídos da soberania, da personalidade e
da consciência do Estado, mas Hegel aceita que se poda falar de soberania
popular no sentido em que um povo é independente com respeito ao exterior e
forma um Estado próprio, mas, como diz certeiramente Marx, “se o monarca é a
«real soberania do Estado», cumpre que também com respeito ao exterior poda ser
considerado como um «Estado independente» incluso sem o povo. Mas se não é
soberano mais que na medida em que ele representa a unidade do povo, ele mesmo
não é mais que o representante, o símbolo da soberania do povo. A soberania do
povo não existe mercê a ele; é ele, ao contrário, quem existe mercê á soberania
do povo” (279 nota). Tampouco aceita Marx de Hegel a afirmação de que a
soberania reside no conjunto do povo, ou seja, no Estado. “como se o povo
não fosse o Estado real. O Estado é um abstrato. O povo só é concreto. É
destacável que Hegel não atribui ao concreto uma qualidade vivente como a da
soberania, senão após fortes hesitações e reticências, quando o faz sem
hesitação pelo abstrato” (279 nota).
Monarquia e democracia
Num posicionamento
organicista, tomado strictu sensu, não é possível a democracia e de ai que Marx
poda detectar várias eivas referentes á democracia na conceição hegeliana.
Segundo Marx, “a democracia é a verdade da monarquia; a monarquia não é a
verdade da democracia. Sé a monarquia é inconseqüente consigo mesma, pode ser
democracia; na democracia o fator monárquico não é uma inconseqüência. A
monarquia não é compreensível a partir de si mesma, a democracia si. Na
democracia nenhum fator recebe outro significado que o próprio; todos eles são
puros fatores do demos total. Na monarquia uma parte determina o caráter do
todo; a Constituição inteira tem que acomodar-se a esse ponto invariável. A
democracia é o gênero constitucional, a monarquia uma espécie e ademais
má. A democracia é conteúdo e forma; a monarquia, não deve ser mais que uma forma,
mas desnaturaliza o conteúdo” (279). Entendemos que o posicionamento de
Marx a respeito da democracia é acertado, e, a seguir, intentaremos aclarar o
que entendemos que afirma o filósofo materialista alemão. Para Hegel, a
monarquia era o valor substantivo, enquanto que a democracia tinha para ele um
valor secundário e adjetivo, enquanto que para Marx era á inversa. Uma
monarquia pode ser democrática ou não, e de ai que a democracia é a verdade da
monarquia, quer dizer, a pedra de toque para poder determinar se estamos ou não
ante uma autêntica monarquia. Esta de por si não é democrática e toda monarquia
só atraiçoando-se a si mesma pode ser democrática, enquanto que uma democracia
pode perfeitamente ser monárquica. A democracia é compreensível a partir de si
mesma, e todos os fatores têm somente o significado próprio, a monarquia, não.
Nesta, uma parte, que é o modelo de Estado, determina o caráter do todo. A
democracia é mais englobante que a monarquia; é o geral, o gênero, e a
monarquia, a espécie, o particular.
“Na monarquia o todo, o
povo, acha-se subordinado á Constituição política que não é mais que um dos
seus modos de existência; na democracia a Constituição ela - mesma
aparece simplesmente como uma determinação e mais precisamente como a
autodeterminação do povo. Na monarquia temos ao povo da Constituição; na
democracia a Constituição do povo. A democracia é o enigma decifrado de
todas as constituições. Aqui a Constituição é não somente em si, na sua
essência, senão na sua existência, na realidade, constantemente
reconduzida ao seu verdadeiro fundamento, quer dizer, ao home real, o povo
real, e apresenta-se como a sua obra própria. A Constituição aparece
como o que é verdadeiramente, a saber, um livre produto do home” (279). Na
monarquia o povo está subordinado á constituição política, é o povo da
Constituição, enquanto que na democracia o povo predomina sobre a Constituição,
que não é outra cousa que o fruto da autodeterminação do povo, é a Constituição
do povo. Na democracia a Constituição é referida ao seu verdadeiro fundamento,
ao home real e ao povo real, e apresenta-se como a obra do povo real, o produto
livre do home. A diferença que existe com a monarquia constitucional é que na
democracia a Constituição política não forma por si só o Estado. Hegel parte da
idéia de Estado e considera o home como uma subjetivação do Estado, enquanto
que a democracia parte do home e considera o Estado como uma objetivação do
home. Igual que na religião não é esta quem cria o home, senão que é o home
quem cria a religião, não é a Constituição quem cria o povo senão que é o povo
quem cria a Constituição. A democracia apresenta a essência de todas as
Constituições, ou seja, ao home socializado sob a forma duma Constituição
particular; é como o gênero com respeito ás suas espécies. Na democracia o home
não existe para a lei, senão que a lei existe para o home, enquanto que em
todos os outros regimes o home é uma afirmação da existência da lei.
Todas as outras estruturas
estatais são formas estatais determinadas, particulares. Na democracia o princípio
formal e o princípio material coincidem. É a verdadeira unidade do universal e
do particular. Na monarquia e na república o home político leva uma existência
particular ao lado de home não-político, do home privado. A propriedade, o
contrato, o matrimônio, a sociedade civil aparecem como modos de existência
particulares ao lado do Estado político, como o conteúdo frente ao qual o
Estado político aparece como uma forma organizativa, mentes que na realidade
não é mais que um entendimento sem conteúdo que determina, limita, umas vezes
afirma outras nega este conteúdo. “Em todos os Estados não-democráticos, o Estado,
a Lei, a Constituição dominam sem dominar realmente, quer dizer,
sem impregnar materialmente o conteúdo das outras esferas não-políticas. Na
democracia a Constituição, a Lei, o Estado mesmo não são mais que uma
autodeterminação do povo, um conteúdo determinado que o povo se dá enquanto que
é uma constituição política. É evidente, por outra parte, que a democracia é a
verdade de todas as formas de Estado; do que se segue que todos os Estados não
democráticos não são verdadeiros” (279).
O monarca
Hegel declara que o conceito
de monarca é o conceito mais difícil para a raciocinação, quer dizer, para o
modo de reflexão do entendimento (279). Não se pode derivar de nada porque tem
a origem em si mesmo. Eu diria que não só é difícil senão impossível e
inclusive absurdo, porque a realidade existencial nunca se pode derivar de
conceitos abstratos. No parágrafo 280 Hegel deduz que um indivíduo concreto
está destinado á dignidade monárquica por nascimento. “O Eu supremo onde se
encarna a vontade do Estado é na sua abstração um simples Eu e por conseguinte
uma singularidade imediata; o seu conceito mesmo implica o caráter da naturalidade;
também o monarca é essencialmente um indivíduo determinado, feita
abstração de todo outro conteúdo; e este indivíduo está destinado á dignidade
monárquica duma maneira imediatamente natural, por nascimento”(280)
Uma vez que Hegel pretendeu
demonstrar que a subjetividade é sujeito e que o sujeito é um indivíduo
empírico, único, agora intenta demonstrar que o conceito de singularidade
imediata implica o caráter da naturalidade, da corporeidade. Hegel, segundo
Marx, “não demonstrou mais que evidências: que a subjetividade não existe
mais que como indivíduo em carne e em osso; ora bem, vai de seu
que um tal indivíduo se carateriza também pelo facto de que nasceu” (280).
Mas Hegel não se limitou a pretender concluir que a subjetividade só existe
como indivíduo e que este indivíduo se caracteriza pela facto de que nasceu,
senão que pretende concluir que a subjetividade existe como este indivíduo e
que este indivíduo está destinado por nascimento a ser monarca. “Hegel crê ter
demonstrado que a subjetividade do Estado, a soberania, o monarca é «essencialmente»
um indivíduo «dado, feita abstração de todo outro conteúdo; e este indivíduo
está destinado á dignidade monárquica duma maneira imediatamente natural, por
nascimento». “a dignidade monárquica definir-se-ia pois pelo nascimento. O
corpo do monarca determinaria a sua dignidade. Na mais alta cimeira do Estado
não é, pois, a razão senão a só natureza que seria o elemento decisivo. O
nascimento determinaria a qualidade do monarca da mesma maneira que determina a
qualidade do gado” ((280). Segundo Marx, Hegel demonstrou que o monarca é
alguém que deve nascer, do qual ninguém duvida, mas ele não demonstrou porque o
nascimento faz de alguém um monarca. “O nascimento dum home e a sua
transformação em monarca deixa-se converter tão pouco em verdade metafísica
como a Imaculada Conceição. Se a crença nesta é um facto das consciência, o
nascimento do monarca é um facto empírico, mas os dous podem ser compreendidos
como um produto da ilusão humana e das circunstâncias” (280).
No comentário deste parágrafo
280 de Hegel, Marx considera que apresenta o irracional como o absolutamente
racional, enquanto que considera que a transição do conceito da pura
autodeterminação á imediatez do ser imediato, ou seja, da soberania ao
nascimento deste indivíduo, é um processo puramente especulativo e, por tanto,
a sua explicação corresponde á Lógica. Marx, pela sua parte, considera que o
único que há de especulativo é que se chama a todo isto «transição conceitual»
e que se apresenta a contradição absoluta como identidade e a mais grande
inconseqüência como conseqüência lógica. “Assim o monarca hereditário ocupa
o lugar da Razão que se determina a si mesma e o facto natural abstrato (o
nascimento) apresenta-se não como o que é, quer dizer, como um simples facto
natural, senão como a mais alta definição do Estado. Pode considerar-se esta
tese de Hegel como a confissão positiva de que a monarquia não pode conservar
mais a aparência de ser a organizadora da vontade racional” (280). Hegel
afirma que a transformação da soberania do Estado em corpo do monarca
hereditário é, no fundo, da mesma natureza
que a «transição» que tem lugar quando a vontade realiza um fim qualquer
que se propõe e faz passar um conteúdo á realidade. Mas Hegel diz: no fundo. A
diferença particular que ele sinala é até tal ponto particular
que suprime toda analogia e coloca a magia no lugar da «natureza
da vontade em geral».
7/08/2016
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