Que é a democracia?
Parece que se avizinham tempos
de câmbio, tempos em que cumpre substituir o sistema constitucional espanhol,
obsoleto e caduco, por outro distinto. Para afrontar este processo cumpre ter
as idéias claras e que cada um exponha as linhas diretrizes por onde deve
decorrer o processo para assentar uma democracia de maior qualidade.
Proponho-me expor ao longo dalguns artigos, quais são as reformas que cumpriria
introduzir nesse hipotético câmbio normativo. Antes de nada, creio que devemos
ter claro que queremos uma democracia de qualidade, um sistema político permita
canalizar corretamente as aspirações dos indivíduos e povos que conformam o
Estado espanhol, em plena igualdade de direitos e deveres.
A democracia não é questão de
todo ou nada, de democracia plena ou de carência de democracia, senão que a
democracia admite grãos; e assim, um país pode ter um sistema político que se
chama democrático e ser pouco ou mui pouco democrático. Por tanto, há
democracias avançadas, de nível médio e democracias raquíticas.
Etimologicamente, a palavra
democracia está composta de duas palavras gregas: demos (povo) e kratos (poder,
governo). Seria, por tanto, a nível etimológico, o poder ou governo do povo.
Contrapunha-se na sociedade grega á aristocracia, ou governo dos melhores; á
oligarquia, ou poder duns poucos que têm muito dinheiro; timocracia, ou governo
dos militares, e tirania, ou governo arbitrário e que utiliza a violência
institucional para lograr o assentimento dos cidadãos. O povo não é outra cousa
que o conjunto dos cidadãos duma determinada comunidade, e, como tal, não pode
governar-se a si mesmo no sentido de que cada qual ocupar postos no poder
executivo ou judicial, que requerem, especialmente nos nossos dias, importante
preparação técnica e rapidez na tomada de decisões. Se todos fossem iguais para
ocupar postos dirigentes, o procedimento de eleição deveria ser, como dizia
Castelao, o sorteio.
O rol principal que cumpre o
povo nas nossas sociedades consiste em participar na eleição dos seus
representantes e, indiretamente dos governantes, e também, com a aparição das
redes sociais, a participação política por meio da manifestação da sua opinião,
atuando como ativistas políticos, expressando as deficiências socioeconômicas,
... Esta democracia representativa atribui a tomada de decisões a
representantes populares, que, nas democracias atuais, não estão submetidos a
mandado imperativo, ou seja, que não têm porque responder ante os cidadãos das
decisões adotadas, o qual afasta os representantes das aspirações populares.
Outra forma de participação mui importante é a participação em referendos, que
são uma manifestação de democracia direta, mas, em geral, as democracias atuais
são renitentes a utilizar este sistema.
O filósofo, jurista e
politólogo italiano Norberto Bobbio dá por sentado que a democracia, em
contraposição com a aristocracia, está "caracterizada por um conjunto
de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está
autorizado a tomar as decisões coletivas e com que procedimentos".
(BOBBIO, NORBERTO, El futuro de la democracia, Planeta Agostini,
Barcelona, 1994, p. 21). Segundo este autor, um regime democrático
carateriza-se: a) por atribuir o poder de tomar decisões a um número
muito alto dos membros do grupo, e quanto maior seja o número mais democrática
será a sociedade. No caso das democracias representativas, isto deve
entender-se da participação nas eleições de grande quantidade de votantes, e,
por tanto, podemos dizer que uma alta participação implica maior compromisso
cidadão e maior democracia. Isto já nos faz ver que países onde a participação
é baixa, como nos EEUU de Norte-América, a identificação dos cidadãos com o
sistema democrático é insuficiente. b) a regra fundamental da tomada de
decisões é a da maioria, como mínimo e a do consenso como ótimo. Isto somente
pode entender-se como concorrência maior ou menor dos representantes na tomada
de decisões; e c) os chamados a eleger ou decidir devem ser postos frente a
alternativas reais, ou seja, que devem estar representadas todas as opções, os
interesses dos diversos grupos contendentes. Isto já nos indica que os sistemas
proporcionais que permitem que estejam representadas mais opções são mais
democráticos que os majoritários. Por tanto, países como o Reino Unido ou
Estados Unidos de Norteamérica têm problemas neste sentido e podemos dizer que
são democracias menos perfeitas que as que têm sistemas proporcionais.
Para Anthony Arblaster a
essência da democracia "é o poder dos povos para conformar governos e
fazer que os seus representantes acedam á vontade e ás demandas populares".
(ARBLASTER, ANTHONY, Democracia, Alianza Editorial, Madrid, 1992, p.
143.). Por conseguinte, um governo no que os seus dirigentes se guiam por
critérios pessoais, como pode ser o cumprimento do próprio dever á margem das
aspirações populares, ou polas próprias crenças religiosas, não seria um
governo democrático. Igualmente, tão-pouco é democrático um governo que, em vez
de cumprir o seu programa, aplica o que lhe ordenam ou insinuam prebostes
alheios, como poder ser a Sra.. Merkel; nem tão-pouco um parlamento que legisla
sob ordens de instituições forâneas. Em todas as definições de democracia
subjaz a idéia de poder popular, duma situação na que o poder e quiçá a autoridade
descansam no povo. Em que medida existe «governo» do povo? O povo só elege os
deputados que conformam o Parlamento, mas a governança não recai neste senão no
executivo, que deve poder ser controlado não só polo grupo majoritário, que
normalmente atua de comparsa do governo de turno, senão pola oposição. Mas,
agora, no nosso país, o Governo, em vez de ser controlado pola oposição e
responder da sua gestão, utiliza as sessões de controle para controlar e
desautorizar a mesma oposição. Quando um governo se nega a dar conta da sua
gestão ante os representantes do povo, ainda que constituam uma minoria,
está-lhe a negar o direito a intervir, sem motivos que o justifiquem, na
governança, por mais que só seja por meio de representantes. As modernas sociedades
democráticas vem o seu poder diminuído pola existência de múltiplos polos de
poder com enorme poder de decisão -empresas multinacionais, ...- que caem fora
do domínio e do controle dos governos eleitos, minguando o poder popular e, por
conseguinte, debilitando a democracia.
A democracia é identificada, a
miúdo, com o regime da maioria, pois, como sublinha Arblaster, pretender a
unanimidade nas atuais sociedades pluralistas não é realista, mas neste caso,
se o povo é o corpo completo dos cidadãos e a democracia é o governo do povo,
surge a questão de decidir até que ponto os que se opõem se estão governando a
si mesmos. Pode responder-se que "estão comprometidos com esta decisão
na medida em que aceitam tanto o princípio das decisões majoritárias como a
justiça dos procedimentos a través dos quais se chega á decisão. Se se aceita
que a unanimidade é praticamente impossível e que a decisão majoritaria é o
mais aceitável, também há que reconhecer como regra geral que um se pregará á
decisão majoritária ao encontrar-se em minoria. ... Sem embargo, numa sociedade
tão dividida que contenha uma ou mais minorias permanentes que sabem que nos
assuntos que mais lhe incumbem jamais poderão sair-se com a sua, precisamente
devido ao princípio de maioria, esse princípio deixa de ser adequado".
(Ibid., p.106). Este autor tem
presente a problemática de Irlanda do Norte, mas por extensão também seria
aplicável ao problema da reforma constitucional pedida insistentemente, antes
por catalães, vascos e galegos, e,
agora, praticamente por todo o mundo. A sua conclusão é que há "razões
sólidas para rejeitar qualquer equiparação grosseira da democracia com um
princípio qualificado de governo da maioria. ... As minorias também são parte
do povo e, na medida do possível, os seus interesses, posições e convicções
devem ser tomados em conta nos processos de desenho de políticas e tomada de
decisões. ... Mas uma democracia onde alguns grupos étnicos, religiosos ou
políticos estão permanentemente em minoria, e por tanto na oposição, tende a
ser instável e a perder legitimidade. Em circunstâncias extremas, uma minoria,
e especialmente uma minoria nacional, ao achar-se numa posição tal, pode
decidir simplesmente separar-se e criar uma sociedade e um Estado onde forme
maioria". (Ibid., pp. 109-110). Por outra parte, a exigência de
maiorias qualificadas pode converter a maioria em refém da minoria, e parece
que isso é o que pode passar agora com a reforma constitucional, que um partido
como o PP se nega em redondo a reformar. Rousseau apresentava a questão de se o
voto majoritário ou inclusive unânime garante a melhor alternativa para a
comunidade, pois a vontade de todos os indivíduos, ou seja, o que todos querem,
não concorda necessariamente com a vontade geral, quer dizer, com o que devemos
querer se buscamos o bem da comunidade,
mas isto supõe colocar a ética por acima das necessidades e aspirações dos
indivíduos reais e concretos, e isto não se pode aceitar. A ética em geral e a
justiça em particular, não são distintas dessas aspirações concretas dos
membros duma comunidade, se estão devidamente informados, se bem,
historicamente, os ostentadores do poder ou os seus acólitos apresentaram os
seus interesses particulares como idênticos com o bem comum, por acima das
aspirações populares.
A democracia exige uma certa
igualdade social, pois, como sustinha Rousseau, "um grão demasiado alto
de desigualdade numa sociedade impedia o desenvolvimento da vontade ou o
interesse comum". (Ibid., p. 115). As desigualdades sociais e
econômicas, se são grandes e excessivas, não só ameaçam a coerência da
sociedade, senão que negam o princípio de igualdade política, da que é
expressão a democracia. "A desigualdade na riqueza e no poder econômico
é, noutras palavras, uma forma de desigualdade política que contradiz o
princípio de igualdade expressado no lema «uma pessoa um voto»". (Ibid.,
p. 119). "Há, por tanto, uma tensão entre a existência continuada das
desigualdades econômicas e sociais que conferem vantagens políticas a alguns
grupos e desvantagens a outros e o princípio democrático de igualdade política
que deve, em princípio, significar, não meramente a igualdade na urna
eleitoral, senão também igualdade de acesso á tomada de decisões políticas,
assim como igualdade de oportunidades para influir sobre a direção que deve
tomar a sociedade no seu conjunto
(Continuará)
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